CAPÍTULO XIX
Uma coisa que Melina reparou: estavam jantando muito cedo.
O sol apenas começava a se pôr e ela se perguntou se era dali que seu pai havia herdado o hábito de jantar às seis da tarde. Estava acostumada, mas iria sentir fome mais tarde.
Haviam dormido todos no palácio, para poupar o trabalho de ir embora e ter de retornar para a reunião. Mas já tinham retornado para suas casas, com exceção da família de Nicolao, que estava ali para a janta e não planejava deixá-lo tão cedo.
Melina simpatizava cada vez mais com Hektor, que havia feito questão de cozinhar um banquete para todos. Já que sabia que o velho tritão ali estava com saudades de sua comida.
— Eba, peixe! — falou Joe, forçando empolgação ao ver uma enorme bandeja de lula assada ser posta sobre a mesa.
— Também cozinhei massa, caso alguém não seja um apreciador de frutos do mar.
— Já disse que eu te amo, Hektor?
— Já, senhor Joseph, mas fico feliz em ouvir novamente!
Com um sorriso no rosto, serviu o que deveria ter levado o dia inteiro para preparar e se retirou.
Desfrutavam da refeição em harmonia quando, em meio a garfadas de carne branca, Melina lembrou-se de perguntar:
— E como vai ficar o negócio que o Kallias falou?
— Tu não vai não. — Joe foi o primeiro a responder. — É suicídio.
— Não usaria um termo tão forte — disse o príncipe Calisto. — Mas, sim, é insensatez.
— Ele tá sugerindo que eu faça um tour por Anamar sorrindo e acenando pro povo?
— Sim, basicamente isso. Conhecendo famílias importantes, sacerdotes, etc. — esclareceu sua mãe.
— É pra fazer sala — resumiu Joe.
— De fato, faria muito bem para sua imagem e reputação. Mas, como eu acabei de dizer, é insensatez!
— E se eu quiser ir?
Agatha e Ikaro a olhavam como se ela fosse uma completa desmiolada. Os outros também a analisavam em silêncio e com curiosidade até Nicolao exclamar:
— Vai ficar querendo! Eu, hein. Tá doida, é? Enlouqueceu de vez?
— Não, uai! Não é minha função? Ou eu sou uma princesa só de enfeite?
— Sim, mas baseado no que aconteceu da última vez em que foi circular por Anamar, é uma imprudência sem tamanho — falou a skopós da rainha.
— Não sou mais uma criança, sei me cuidar sozinha!
Joe riu de desespero. — Não sabe, não.
— Sei, sim!
— Sabe lutar com uma espada? — perguntou Augustus.
— Não.
— Sabe dar um soco? — indagou Thálles.
— Mais ou menos.
Viu seu pai abaixar o rosto, com o cotovelo na mesa, passando a mão no cabelo e sacudindo a cabeça em negação. Lembrou de todas as vezes em que ele ia até ela sugerindo matriculá-la em alguma aula de luta. Sempre parecia inconsolavelmente chateado quando ela negava. Fez defesa pessoal apenas para aliviar o peso na consciência de vê-lo tão triste por aquilo. Agora, lamentava não ter aceitado que ele pagasse aulas de muay thai.
— E vai fazer o que se alguma coisa acontecer? — questionou Joe. — Tacar uma cadeira?
— Pode ser! Mas esse não é o seu emprego? Me proteger?
— É, mas é tipo bombeiro, né. A gente torce pra não ter que trabalhar.
— Santa Hera, como vocês são insuportáveis! — bradou Agnes, amaciando a voz logo em seguida. — Não o senhor, Alteza. Perdoe-me o desrespeito. Mas qual é exatamente o propósito em trazê-la de volta para mantê-la como prisioneira?
— Obrigada! Esse é o ponto. Sei dos riscos, mas quero viver minha vida. Me esconder seria uma demonstração de medo!
Todos voltaram o olhar para Cibele, aguardando uma decisão de sua parte. Ela, porém, olhava para filha como se ela fosse uma incógnita.
— Tem certeza de que quer fazer isso?
— Tenho.
— Certo. Mas não ouse sair das nossas vistas.
Calisto e Agatha a observavam com uma expressão de derrota e ninguém ali, além de Agnes e Melina, parecia satisfeito com a decisão.
— Obrigada, mãe! E quando vamos?
— Amanhã.
Joe a olhava de maneira suspeita, como havia feito a reunião toda, mas se assustou ao ouvir Cibele.
— Como assim amanhã?
— Deixei minha agenda livre pelos próximos dias. Irei aproveitar para resolver essa formalidade.
— Tá... Mas a gente pode começar por Iliakós?
— Por que quer começar por lá, Joe?
— Daria um pouco de paz pro meu coração. Não jogar a menina direto na terra de um estranho E é aqui do lado.
— Sim, de lá podemos ir para Zoe. Se acalma seu coraçãozinho.
— Tu é um anjo, Agnes! Acalma, sim.
— Tudo bem, faremos esse trajeto inicial, então! — a rainha finalizou o assunto, sem abertura para discussões.
Decidido isso, conversavam os nove sobre os acontecimentos do dias, parecendo uma família quase normal. Ikaro já parecia muito menos ressentido, Augustus conseguia se mostrar um tanto mais amável quando estava apenas com a família e Thálles não parava de falar um minuto. Melina sentia que era como se as três faces de seu pai tivessem sido divididas entre os três filhos. Agnes não era tão mais velha do que ela, mas parecia querer adotá-la como filha. Encheu Melina de perguntas sobre como era a vida no Brasil, coisa que chamou a atenção de Calisto para a conversa. Sua mãe e Agatha a ouviam com atenção, enquanto ela contava algumas situações que viveu, sobre seus amigos humanos, o que estudava e coisas do tipo. Joe comia seu conchiglioni com ricota e nozes feliz da vida enquanto ria de algumas coisas que ela contava e das piadas idiotas de Thálles.
Não estava acostumada a ter uma família grande e uma mesa de jantar lotada, nem mesmo no natal. Mas pensou que poderia se acostumar com aquela atmosfera.
Quando a conversa acalmou, Nicolao tossiu, fazendo com que todos os olhos se voltassem para ele.
— E a coroação? Já começaram a cobrar. Fiquei preocupado.
— Sim... — Joe colocou o garfo de volta ao prato, Melina já havia perdido as contas de quantas vezes ele havia repetido, mas seu apetite pareceu sumir naquela hora.
— Não tem motivo para preocupação, podemos marcar para junho — disse Cibele. — O solstício é uma boa data.
— Ou para o solstício de dezembro... — murmurou Agatha.
— Não acredita que Melina seja capaz de estar pronta até vinte e um de junho? — indagou Calisto. — São mais de três meses até lá.
— Não foi isso que eu quis dizer. Sabe bem como é difícil se provar nessa nação. Veja o que aconteceu com o pobre Flavio.
— Tenho certeza de que a princesa vai se sair bem, Agatha — disse Ikaro, em seguida sorrindo e tomando um gole de vinho.
Melina queria acreditar que aquilo era um incentivo, nada no seu tom de voz indicava sarcasmo. Mas a garota havia passado tempo demais assistindo Metaforando para deixar de perceber que aquele sorriso não era genuíno.
— Flavio é o irmão mais velho da Chloe — explicou Agnes. — Todos achavam que ele seria o senhor de Seliniakós até ele falhar no teste. Lucca já era skopós naquela época, por sorte a Chloe foi bem sucedida.
— Se não fosse, o governo passaria para alguém mais forte quando o pai deles morresse. Uma completa desgraça para o nome da família — Augustus completou a fala da esposa.
— E o que aconteceu com ele? —Melina quis saber.
— Ficou tão envergonhado que mudou de ilha e foi ser agricultor —respondeu Thálles. — Nem mesmo fala com a família.
— Mas fica tranquila — disse Joe, ao ver um pouco de pânico em seus olhos. — Casos assim são raros. E é bem improvável que aconteça na família real.
— Somos uma linhagem real intacta desde a primeira rainha — declarou Calisto. — Nunca tivemos um galho fraco. Duvido muito que esse seja você.
— E se eu for?
— Não é. Sei reconhecer potencial quando vejo — replicou o príncipe, com firmeza na voz, passando confiança à princesa. — Mas, se você for, então eu a tornarei forte. A falta de talento é compensada com esforço.
— Seu tio, por exemplo, sempre foi um excelente telepata. Mas sempre perdia para mim em um confronto direto quando éramos crianças. — Cibele contou e riu, recordando os velhos tempos. — Mas, hoje é o homem mais forte de Anamar.
— Ainda perco para você.
— Está sendo humilde! Mas é verdade.
— E como conseguiu isso? — questionou Melina.
— Cinco mil metros abaixo da superfície, forçando meu corpo ao limite.
Nicoalo gargalhou. — Esse menino sumia por meses. Nereu ficava pra morrer.
Ninguém havia citado esse nome antes. Mas percebeu que se tratava de seu avô, o irmão gêmeo do seu pai. Percebeu também a confusão que era aquilo e resolveu voltar ao assunto.
— Passava meses debaixo d'água? Matando peixe no dente?
— Não gosta de sushi?
— Gosto. Mas pelo menos tem um molhinho, né?!
Conseguiu arrancar uma risada do tio e dos demais. Voltaram a conversas leves e descontraídas que lhes tomaram algumas horas sentados à mesa em família e agregados.
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Quando finalmente decidiram que já era hora de se recolher, Melina foi abordada por Nicolao enquanto virava o corredor com Joe para ir ao quarto.
— Acho que vou te esperar ali perto daquele quadro. — O garoto se retirou, percebendo que ele queria um momento à sós com a filha.
— Thálles me disse que não queria ir almoçar com a gente.
Cruzou os braços, em pose de interrogatório enquanto encarava a menina.
— Já expliquei, uai. Já ia almoçar com minha mãe.
— E você acha mesmo que me engana?
Sabia que não conseguiria rebater o argumento. Ele a conhecia bem demais para saber que aquele não era o real motivo. Se dando por vencida, encostou as costas na parede, com as mãos para trás e os ombros baixos.
— Queria que você passasse mais tempo com seus filhos.
— E você não é minha filha?
— Acho que sim...
— Acha? Acho bom você ter certeza! Vou ter que botar juízo na sua cabeça depois de velha?
Riu meio sem graça. — Desculpa. Mas é sério. Não queria ser o centro das atenções. Já basta ter roubado você deles por doze anos.
—Não tá se achando demais, não?
— Tô me baseando naquela propaganda que fez de mim mais cedo. Exagerou bastante, não acha, não?
— É como eu te vejo. Só não falei que é doida e estressada.
— Ah, eles vão descobrir...
Ouviu a gargalhada de seu pai, o que a confortou. Desencostou da parede e recebeu um boa noite seguido de uma bagunçada no cabelo. O jeito dele de ser carinhoso.
Nicolao tomou um caminho diferente e ela se direcionou ao corredor onde Joe a esperava. Ele perguntou se estava tudo bem, ainda a olhando de maneira estranha, e ela apenas concordou com a cabeça e um sorriso.
Saiu na frente dele pelos infinitos corredores e escadas afora, mas parou quando percebeu que o rapaz estava parado atrás dela de braços cruzados e impressão incrédula.
— Você lembrou!
— O quê?
— Sua memória voltou! Por que não disse nada?
— Porque ela não voltou!
— Voltou, sim!
— De onde tirou isso, menino?
— Como sabe o caminho pro quarto? Tá indo na frente e na direção certa.
— Porque eu passei por aqui mais cedo, né?!
— Não, não! Não vem com essa pra cima de mim. No navio você não lembrava como chegar na cabine, sua memória espacial é péssima. Agora lembra como chegar no quarto? Sendo que aqui é muito maior do que o cruzeiro?
Bufou de frustração ao ser pega no pulo. Mas não estava mentindo, não cem por cento. Escorou-se no parapeito. Estavam em algo que parecia uma pequena ponte. Entre as grossas colunas, Melina podia ver uma pequena circulação de pessoas no pátio interno do palácio, se recolhendo para ir dormir. Já estava escuro, mas conseguia ver tudo melhor do que de dia.
— Não é que eu lembrei, lembrei. Não veio um flashback na minha cabeça. Eu só... sei de algumas coisas.
— Como assim?
— Tipo — apontou para trás do garoto —, se a gente seguisse reto por ali ao invés de virar pra cá, e depois virasse à esquerda naquele vaso de cerâmica, ia ter uma biblioteca no final do corredor?
— Ia.
— Então! É tipo isso. Quando falaram do sequestro, não lembrei de ser sequestrada, mas a informação tava lá. E com a coroação e o nome do povo todo. Tipo, quando falaram "Nereu", eu sabia que era meu avô.
— Lembrou de mais alguma coisa? — Escorou-se no parapeito, ao lado dela.
— Sim. Mas é tudo aleatório.
— Quando começou?
— Hoje cedo. Também lembrei porque você fica me chamando de "Linda".
— Por isso tu tá toda estranha?
— Eu não tô estranha!
— Tá, sim. Mas, enfim. E a sua cauda?
— Minha... Ah! Não faço ideia. Acho que só testando.
— Então vamos testar, ué! — disse, quase saltando, tomado por uma nova energia motivadora, como uma criança indo comprar doces.
— Agora?
— É. Não vai tomar banho pra dormir, não, sua porca?
Melina deu um leve tapa — não tão leve — no braço do rapaz e também desencostou do parapeito.
— Claro que vou! Mas isso não significa que você vá me ver seminua — falou, já voltando ao trajeto rumo aos quartos.
O garoto revirou os olhos e tornou a seguí-la.
Chegaram à sua oikós com Melina sentando-se em um dos bancos do hall de entrada e arrancando os sapatos assim que atravessaram as portas. Eram botas confortáveis até demais, mas lembrou do porquê havia deixado de usar salto. Sentia-se estranha em estar com mais de um metro e oitenta.
— Já desistiu de manter a pose?
— Não, eu só... não gosto de parecer um avatar.
Olhando-a de cima abaixo, disse:
— Acho elegante. — Deu de ombros. — Mas, enfim, lembra daqui também?
Melina olhou em volta e se levantou. Andou até o pátio onde estava a mini piscina de enfeite, com a luz da lua refletida na água. Virando a cabeça para a esquerda, apontou para a porta que ficava bem na lateral do ambiente.
— Aquele ali é o banheiro social — afirmou com noventa e oito por cento de certeza.
— Exatamente.
Olhou para a direita, onde havia uma porta na mesma direção da outra.
— Aquilo ali eu já não faço ideia.
Joe a levou até o cômodo que era mais espaçoso do que aparentava do lado de fora. Era bem aconchegante com sofás ao estilo divã repletos de almofadas, tons alegres e uma parede de pedras com iluminação dourada.
— Aqui é uma área pra receber visita, dar uma festinha privada, um café da tarde, uma coisa assim.
— Nossa, não tem uma TV nesse lugar? Não quero tomar café da tarde, quero maratonar Harry Potter.
— Até tem, mas não tem conexão com o mundo lá fora. Mas tu pode montar um cineminha. Vim preparado com um HD de 8TB cheio de coisa.
— Tem Harry Potter?
— Tem Harry Potter.
— Então eu amo você.
O garoto riu e seguiram no mesmo corredor, passando pelo quarto dele, que não era muito diferente do dela. Subiram para o terraço repleto de plantas. Haviam flores por todo o lado e um jardim suspenso. Espreguiçadeiras bem convidativas e uma vista para o restante do palácio de um lado, e para o oceano do outro.
Desceram e foram até a sala de jantar, que ela já conhecia, mas entraram pela porta que havia ali e dava para a cozinha e para a dispensa. Era a área mais moderna ali, com quase tudo em inox e impecavelmente limpo. Melina imaginou que o chef Jacquin teria orgulho de ver aquilo, só faltava a Philco equipando tudo.
Por fim, o último cômodo.
Ao lado de seu quarto, havia um pequeno santuário, sem muitas coisas dentro. Apenas duas estatuetas em um altar na extremidade da sala.
Melina não sabia direito como os antigos distinguiam quais deuses eram em cada escultura quando estes não carregavam objetos que os representassem. Sempre julgou que todos tivessem a mesma aparência.
Porém, ao andar até a imagem e segurá-la, soube de quem se tratava mesmo que ela não estivesse com seu arco ou acompanhada de algum animal selvagem.
— Ártemis!
— A própria — falou Joe, se achegando ao lado dela. — Quanto tu era criança, falava que queria entrar pra caçada. Vinha aqui todo dia queimar comida.
— Sério? — perguntou, virando a cabeça para olhá-lo e logo retornando a atenção para a mini estátua. — Desculpa te desapontar, tia, mas eu gosto de homem.
— Acho que vai ter que arrumar outro deus para prestar culto — disse após uma gargalhada. — Ou deixa Apolo aí sozinho. Ele vai gostar de ter a atenção toda pra ele.
Melina ainda estranhava o fato de que ele parecia conhecer seu pai muito bem, quando ela ainda não tinha uma única memória dele. Mas resolveu relevar e apenas concordar com a cabeça.
Devolveu Ártemis para o lado da estátua de seu gêmeo.
— Tô com fome.
— Hektor já foi dormir, mas a gente pode atacar a cozinha.
— Então vamos!
— Não tá esquecendo de nada, não?
— Do quê?
Joe apontou para suas pernas, agora desnudas, já que ela levava o par de botas pendurado em um dos braços.
— Ah, claro! Cauda...
— Vou tomar um banho. Vai lá e vê o que acontece. Depois a gente come.
— Beleza!
Saíram os dois do cômodo e foram cada um para seus respectivos quartos.
Melina soube imediatamente que alguém havia se ocupado em limpar o local pois o cheiro de casa limpa invadia suas narinas.
Anastasia também já não estava em canto nenhum então resolveu pegar seu celular para ver que horas eram. Chocou-se ao ver que se aproximava a meia noite, não imaginou que a conversa à mesa de jantar tivesse rendido tanto assim. Mas isso justificava a sua fome.
Guardou as botas e se despiu com um certo receio. A mesma sensação que sentira de manhã. Mas também experimentou do mesmo alívio ao ver que suas pernas continuavam ali. Intactas.
Terminou seu banho e vestiu um short de pijama com uma regata e saiu do quarto. Joe já a esperava na cozinha, escorado na bancada, com os olhos carregados de expectativas.
Bufou em frustração quando ela logo negou com a cabeça.
— Então, tá, né. Quer comer o quê?
— Alguma coisa normal, por favor.
Dirigiu-se até a geladeira, abrindo a porta e analisando o que tinha disponível. Melina sentou-se na bancada onde ele estava, reparando que o eletrodoméstico estava abarrotado de coisas que definitivamente haviam sido levadas pelo garoto. Ali tinham opções até demais do que comer. Joe não parecia estar olhando para a geladeira em si, apenas encarando cegamente, esperando uma ideia aparecer.
— Quer um macarrãozinho ao molho branco? — perguntou, virando o pescoço para encará-la.
Tinha voltado ao traje de dormir da noite anterior. Melina lamentava internamente vê-lo fora de um traje social onde ele parecia ter saído diretamente de uma música romântica da Taylor Swift. Mas também não era nenhum tipo de tortura vê-lo apenas de short moletom.
— Pode ser. Vem cá, tu não tá com frio, não?
— Tá doida?! — disse, entrando na dispensa. — Deve tá uns dezoito graus.
— Isso pra mim é frio — Melina retrucou, quando ele voltou trazendo nas mãos mais temperos do que ela julgava ser necessário para um simples molho branco. — Quando fazia vinte graus lá em Minas eu já botava um casaquinho.
— Acontece, que eu nasci e cresci na fronteira com a Argentina. Pra mim isso é temperatura ambiente. — Arrumou os temperos na mesa, encheu uma panela com água e voltou para a dispensa. — Mas se tu tá com frio, por que não bota um pijama de moletom? - falou lá de dentro.
— Não tô com frio. Parei de sentir.
Joe voltou, despejando a massa, alho e cebola ao lado dela, a olhando de maneira estranha.
— Isso não faz o menor sentido.
— O que não faz o menor sentido?
— Seu cabelo voltou ao normal, suas memórias tão voltando e agora seu corpo também. Por que só sua cauda que tá faltando?
— Não sei. Também não sei se já aguento tomar uma facada e sobreviver.
Uma ideia passou subitamente pela sua cabeça.
— Não! — exclamou o rapaz. — Tu não vai fazer uma merda dessas!
— Mas eu não disse nada!
— Acha que eu não sei o que tu tá pensando.
— Eu não quero que você me meta a faca! Só um cortezinho pra testar.
— Não vou fazer isso. Tenho cara de psicopata?
— Sim.
Ergueu uma sobrancelha para ela com uma expressão de indignação.
— Ah, vai! Por favor!
— Nem pensar.
— Tudo bem, então eu faço sozinha.
Saltou da bancada e fitou as gavetas abaixo de onde estava sentada. Instintivamente, abriu uma delas, se deparando com uma coleção de facas de carne. Pegou a menor delas e voltou a se sentar. Ao seu lado, no fogão, Joe a olhava incrédulo.
Pousou a faca sobre a palma da mão, com a ponta entre o dedão e o indicador, reunindo coragem.
— Tu não vai fazer isso! — disse, tomando a faca de sua mão.
— Você esfaqueou meu pai! O que é um cortezinho na mão?
— Seu pai é seu pai e você é você, bah!
— Não confia no meu histórico de atleta?
— Não é isso. Do jeito que você tá fazendo, tá pedindo pra ter um dedo amputado! Além do que, eca! Vai sujar uma faca de cozinha de sangue.
— Você sujou a minha faca de cozinha de sangue.
— É, mas ninguém nunca mais vai usar aquilo. Essa aí vai ser usada pra fazer nosso almoço e não tem nem onde esterilizar isso direito aqui.
— E o que você sugere? Porque pode ter certeza que eu vou esperar você ir dormir pra testar isso.
Respirou fundo, rendido à teimosia e foi até uma das gavetas, de onde tirou um canivete.
— Tem certeza?
— Absoluta!
Pegou a mão direita da garota e fez uma incisão. Funda o suficiente para que o processo de cura fosse visto, mas não tanto para que não precisasse de ponto caso tudo desse errado.
Melina esperava que doesse, mas sentiu apenas um leve incômodo. Para o alívio do garoto, assistiram a ferida se curar instantaneamente, sem deixar nenhum vestígio de que um dia a pele foi cortada.
— Não me sinto uma sereia. Me sinto uma vampira. A própria Katherine Pierce.
Ponderou por alguns segundos. — Talvez esse seja o problema.
— Me sentir uma vampira?
— Não. — Riu e prosseguiu. — É que tu é uma mestiça, sabe. Você só se transforma quando quer. Talvez seu subconsciente não queira.
Jogou o canivete na lixeira e lavou as mãos para colocar o macarrão na água fervente.
Pensou sobre o que ele havia dito e se levantou. Saiu da cozinha sem falar nada, mas ele entendeu que deveria seguí-la.
Foi até o pátio da casa e entrou na piscina decorativa que havia ali. Era rasa, indo apenas até pouco acima dos joelhos.
— Como é que a Barbie diz mesmo? — perguntou em voz alta, mas falando sozinha enquanto o rapaz a observava, parado na porta da sala de jantar.
— Ah, lembrei! — fechou os olhos e cruzou as mãos atrás do corpo já que não tinha um colar de concha para segurar. — Quero ser sereia!
Esperou alguns segundos e tornou a abrir os olhos. Ainda de pé dentro da piscina.
— Acho que não é assim que funciona
O rapaz se limitou a sacudir a cabeça em resposta e voltar para a cozinha.
Melina foi até seu quarto secar as pernas e voltou para onde Joe estava. Assim que entrou, pôde vê-lo debruçado sobre a bancada, cortando variados tipos de cheiro verde, ao lado de uma tigelinha de queijo já ralado.
— Não acho que precise de tanta coisa pra um molho branco.
— Só fala isso quem não sabe cozinhar.
— Pois é, eu não sei.
— Não tô acreditando nisso! — parou o que estava fazendo e se virou para encará-la.
— Que foi?
— 142 pontos de QI e não sabe fritar um ovo?
— Eu sei fritar ovo! - contestou, comicamente indignada. — Ele só fica... queimado... e com alguns pedacinhos da casca.
O garoto ria sem a menor intenção de esconder que a piada era sobre ela.
— Pra sua informação, eu não preciso saber cozinhar! Uso meus pontos de QI dentro de um laboratório.
Esperou que ele retrucasse, mas ele comunicou que o jantar estava pronto. Estavam morrendo de fome. Então, logo esqueceram do assunto para se concentrar na comida.
Resolveram comer no terraço, no chão mesmo, apreciando a vista do mar.
Beberam o restante de vinho quente que havia sobrado da noite anterior enquanto conversavam sobre absolutamente qualquer coisa. A presença dele era confortável.
Melina acabou por descobrir — ou, se lembrar — que Joe era uma excelente companhia. Fosse para falar mal da última temporada de Game Of Thrones ou para debochar de metade das pessoas que estavam na reunião. Descobriu que ele fazia uma imitação impressionante de Athenion e que era completamente obcecado por séries de investigação criminal.
Era essa a sensação. Chegar em casa, abraçar o cachorro, tomar banho e deitar na cama.
Estar com ele era a coisa mais natural do mundo.
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