CAPÍTULO LVIII
Saíram da sala do trono, aos poucos, primeiro a rainha, sua skopós e o príncipe. Doris e Aristeu logo atrás, seguidos de todos os senhores de ilha. Exceto Joe, que ficou aguardando com Melina até que os guardas liberassem sua saída e, então, foram também até o teatro — o local escolhido pela que seria testada. Se era um show o que queriam, era um show o que teriam.
Quando chegaram ao local, separou-se do garoto e foi sozinha até a parte de trás do palco, onde sua mãe a aguardava. Saíram juntas, mostrando-se à multidão que já estava acomodada nas fileiras. Um completo silêncio se instalou quando elas apareceram, em sinal de respeito.
Toda a sua família havia se acomodado na primeira fila, onde o semideus também sentou. Os governadores estavam na segunda, onde ele deveria ter se sentado. Percebeu Tyro, no canto, tentando não ser notado, alisando o próprio queixo. Melina já não considerava o seu jeito de se apagar e quase nunca se pronunciar como sendo atos inocentes. Sua vontade era esmurrar sua cara até que sua pele branca ficasse roxa. Mas, tinha que se conter e não demonstrar nenhuma aversão ao homem. Ele não sabia que ela sabia o que sabia. Era uma vantagem.
— Como todos já sabem, hoje é o dia em que minha filha, Melina, provará o seu valor e firmará um compromisso com todos vocês, povo de Anamar — declarou a rainha. — É uma imensa honra, para nós, tê-los aqui nesse dia para presenciar a magnitude do poder de sua futura princesa e, um dia, rainha. Para que testemunhem do que ela é capaz e tenham ciência de sua força, que será usada para a proteção de vocês.
— O que a maioria de vocês não sabem, entretanto, é que minha filha é uma exímia telepata. — Um burburinho leve pode ser ouvido e a garota viu algumas pessoas virando a cabeça para cochichar com quem estava ao seu lado. — Nossa estimada conselheira e cidadã mais do que fundamental à este país, idônea e íntegra, de caráter conhecido por todos, Doris, se voluntariou. — Melina teve de se segurar para não arregalar os olhos. Não haviam contado para ela que mente leria. — Doris — chamou, olhando diretamente para a convocada —, pode vir até aqui.
Doris subiu ao palco e, prontamente, esticou as mãos para que Melina as tomasse. A garota as segurou com um tanto de nervosismo. Preferiria uma mente mais jovem. Cento e oitenta anos de história não eram pouca coisa. Demorou algum tempo para achar algo que fosse um segredo e ao mesmo tempo, fosse interessante. Quando achou, abriu os olhos, soltou as mãos dela e disse:
— Você resgatou um soldado americano durante a guerra da Coreia. — Os olhos dela se arregalaram. — O caça que ele pilotava, um P-51 Mustang, foi atingido e caiu na água. Você o resgatou e o levou até a Coreia do Sul. Você nadou naquela região durante toda a guerra, só para o caso de alguém precisar de socorro. Você nunca contou isso para ninguém. Por que? — A pergunta saiu como um sussurro.
— Bondade é algo a ser praticado, nunca exibido — respondeu baixinho e Melina assentiu. — A garota diz a verdade — virou-se para o povo e disse bem alto. — Testemunho que ela é uma telepata. Juro por todos os deuses.
— Se alguém duvida — disse Cibele para o público, com um sorriso desafiador —, sinta-se à vontade para dirigir-se até o palco e tirar a prova.
Cerca de oito pessoas se levantaram. Melina fechou os olhos para não os revirar, porém, já tinha sido avisada de que isso provavelmente aconteceria. Foi do mesmo jeito com Calisto. Logo de início, Melina ficou um tanto irritada. Contudo, a irritação logo passou. Acabou por achar divertido vasculhar a mente de pessoas aleatórias e descobrir seus segredos mais obscuros.
Quando, enfim, ninguém mais tinha dúvidas de que ela era, de fato, uma telepata. Melina ainda tinha algo a mais a mostrar. Sabia que apenas o fato de ser uma telepata já era grande coisa. Era um talento raro que, por certo, lhe garantiria a coroa. Mesmo assim, queria calar a boca de certas pessoas.
— Antes que se deem por satisfeitos — falou a rainha ao povo —, há mais uma coisa que seus olhos precisam presenciar.
Cibele se afastou um pouco, deixando apenas ela no centro do palco, e acenou a cabeça, indicando que ela poderia começar. Então, Melina olhou para o céu ainda azul, onde já se podia ver a lua brilhando, tímida, enquanto o sol ainda se fazia presente. Por hora.
A beleza pitoresca do pôr do sol foi ocultada por espessas nuvens negras que se juntaram em menos de sessenta segundos. O céu negro era a coisa que todos olhavam admirados. Assustaram-se quando o primeiro trovão foi ouvido. Tiveram de se acostumar quando perceberam que o som não iria embora tão cedo. Um estrondo atrás de outro invadiu todos os ouvidos presentes, junto ao barulho do mar batendo violentamente contra a rocha sobre a qual o palácio fora erguido. Mas foi quando raios cortaram os céus que a multidão teve coragem de expressar sua fascinação em palavras. As palavras indecifráveis que diziam foram um incentivo.
Melina encerrou o show de raios que caíam no outro extremo do palácio — onde certificou-se de que não havia ninguém — para que os olhos de todos se concentrassem no que viria a seguir.
Virando a cabeça para a direita, todos seguiram seu movimento para olhar na direção do oceano, onde uma onda grotesca se aproximava. O palácio estava a duzentos metros da água. Por isso, a onda que chamou tinha trezentos metros. O bastante para destruir aquele lugar.
As águas tempestuosas se agitavam da forma mais feroz possível. Algumas dezenas de pessoas que estavam sentadas na ponta, mais perto do mar, levantaram e correram para o outro lado. Temiam que Melina não conseguisse controlá-la e, sendo uma criatura do mar ou não, o impacto da onda quebrando também quebraria todos os ossos de seus corpos, juntamente com tudo que havia ali.
Melina esperou até que a onda estivesse a uma distância próxima o bastante para assustar, mas ainda segura, para erguer a palma de sua mão e pará-la no ar, arrancando uma respiração presa da maioria dos espectadores.
Desfez a onda com muito cuidado e sem nenhuma pressa. Não queria acabar causando um mini tsunami em lugar nenhum. Havia escolhido aquele lugar porque sabia que não havia casas naquela direção, apenas o mar jônico que se conectava com o mar mediterrâneo, mesmo assim, seria melhor não arriscar.
Todos assistiram em silêncio até que a onda estivesse completamente dissipada e tivessem confiança o suficiente para voltar aos seus lugares, conforme o céu azul reaparecia, revelando o sol em seus últimos minutos.
Cibele não precisou dizer mais nada. A resposta dada à Melina foi ser aplaudida de pé por todos.
☼
Melina foi mandada para a sala atrás da sala do trono, onde eram realizadas as reuniões, enquanto o conselho votava. Nicolao foi lhe fazer companhia. Enquanto seu pai sentou-se relaxadamente em uma das cadeiras, Melina sentou-se sobre a mesa em formato de U e começou a bater os dedos nervosamente contra a madeira. Aquilo era tortura.
— Não tem motivo pra se preocupar — disse o velho tritão, com toda a certeza do mundo.
— E se eles não me acharam forte o suficiente?
— Não tem jeito de você não ter conseguido. Pelo menos, a gente já sabe que você tem quatro votos garantidos.
— Isso é menos da metade do que preciso.
— Cinco se contar aquele seu amiguinho, o Kallias. Seis com a sua outra amiga, a Dorothea. Sete com a mãe da Agatha.
— Ainda não é mais da metade.
— Quase certeza que são oito com o Tyro.
Assim que aquelas palavras foram ditas, Doris e Aristeu entraram na sala e Melina saltou imediatamente da mesa. Os dois entreolharam-se antes de Aristeu dizer:
— O conselho já tomou sua decisão. Por favor, nos acompanhe. — Inspirando uma boa quantidade de ar, os seguiu.
O sorriso no rosto de toda a sua família indicava que tudo havia corrido bem. Sua mãe fez um convite com a cabeça para que ela se aproximasse. Doris e Aristeu, assim como Nicolao (que aproveitou a oportunidade para entrar disfarçadamente), ficaram próximos à porta. Assim que parou próxima ao trono, foi a vez de Calisto comunicar:
— Todos os dezesseis votantes decidiram, em unanimidade — pronunciou sem disfarçar o orgulho que sentia —, que é digna do título e merecedora de exercer autoridade sobre essa nação. — Não precisava, mas acrescentou: — Meus parabéns!
Todo o peso em seus ombros desapareceu após aquilo. Sorriu, contendo as lágrimas e, conforme fora ensaiado, ajoelhou-se aos pés de Sua Majestade. Cibele caminhou até a coroa e a retirou da redoma, pegando as nas mãos. Os cristais eram do mesmo formato que os de Calisto, mas em tons de azul ao invés de cinza. Sua base era formada por pequenas conchas, pérolas e diamantes. O detalhe que mais lhe chamou atenção foram as três finas correntes que ornavam a coroa, a do meio, sustentava um sol.
— Você se compromete com essa nação? — perguntou a rainha.
— Sim — respondeu prontamente.
— Está disposta a dedicar a sua vida ao povo, zelando sempre pela justiça e bem estar da população?
— Estou.
— Jura ser íntegra em todas as suas decisões?
— Juro.
— Jura prezar por nossa fé e ser leal aos nossos deuses?
Essas últimas palavras pareceram pesar mais do que quaisquer outras. Não sabia dizer o porquê, mas sua voz saiu quase como uma confissão forçada quando respondeu:
— Eu juro.
— Então eu, Cibele, soberana do povo do mar, serva dos deuses antigos, governante das treze ilhas, senhora do mar gracioso, rainha de Anamar, coroo você, Melina, filha de Apolo, mãe das tempestades — pronunciou seu novo título com um sorriso divertido —, princesa de Anamar.
Melina levantou-se — com o maior sorriso que já havia dado em toda a sua vida — e virou para trás, lentamente, onde viu todos os joelhos presentes dobrados diante dela, com suas cabeças abaixadas. Cibele tomou sua mão e a conduziu pelo corredor de pessoas até as portas. Enquanto caminhavam, Melina olhou para Joe que, ainda ajoelhado, levantou a cabeça e lhe deu uma piscadinha, arrancando uma risada dela.
Quando estas se abriram, a multidão que aguardava em frente foi tomada por um súbito silêncio. Todos aguardavam o pronunciamento da rainha para manifestar qualquer emoção. Com exceção de Anastasia que sorria como uma criança.
Cibele, então, com os olhos inundados de lágrimas de felicidade e orgulho, deu um leve e breve aperto na mão de Melina, olhou para a filha e anunciou a plenos pulmões:
— Saúdem Sua Alteza Real, princesa Melina, de Anamar.
O alvoroço alegre e contagiante que aquela frase desencadeou só não era mais empolgante do que o que viria em seguida.
Quando todos saíram da sala do trono, Melina virou-se para o semideus, que a abraçou por alguns bons segundos.
— Queria que você pudesse vir comigo — ela disse, levantando o rosto para vê-lo.
— Eu também, mas te encontro lá. Capaz de eu chegar primeiro.
— Melina — Calisto a chamou —, já está na hora de irmos. Ela concordou com a cabeça e seguiu sua mãe e seu tio em direção à escadaria, onde um barco esperava por Joe na lateral. Virou-se para ele e deu um último aceno antes de ser a primeira a pular na água.
Nunca havia se sentido tão bem. Ouviu — e sentia a agitação da água — todos os outros pularem atrás dela, mas seguiu nadando, na liderança, como em uma procissão. Cibele e Calisto iam quase ao seu lado, atrás deles, todos os convidados. A população da Capital, e apostava que até de outras ilhas, já estava os esperando dentro do mar, abaixo das casas, observando ela passar. Não havia como gritarem, mas era possível ver suas expressões empolgadas e sua agitação em comemoração. Aquele era o segundo melhor nado de sua vida.
A sensação extasiante os seguiu até Ilíakos. Não havia um único espaço vazio entre as duas ilhas, todos estavam aglomerados, formando um espaçoso corredor.
Quando, enfim, chegaram ao templo, Melina não queria sair da água, mas era obrigada. Era tradição que os membros da realeza escolhessem um deus para prestar culto, se coroados príncipes ou princesas (se coroados reis ou rainhas, o culto era nacional). Cibele havia escolhido Apolo em sua vez. Calisto havia escolhido Atena. Melina, obviamente, havia escolhido seu próprio pai.
Como dito, Joe já os esperava lá, perfeitamente seco.
Quando todos já estavam organizados, a (oficialmente) princesa deu início à cerimônia. Tomando aquilo como uma honra, Melina derramou vinho aos pés do deus da música. Outros fizeram o mesmo. Passaram ali um par de horas em festa, cultuando e celebrando, até que boa parte foi dispensada e uma parte selecionada seguia para a continuação da noite.
Algumas dezenas de pessoas seguiram para a mansão de Joseph, onde a festa seguiria pela madrugada adentro. A casa estava decorada exatamente ao seu gosto. Um piano no centro da sala. Luzes amarelas e margaridas por toda a parte. As comidas que ela mais amava seriam servidas. Apresentaria àquele povo uma iguaria chamada pão de queijo. Açaí era servido em vasilhas de prata como se fosse o doce mais refinado do mundo (ninguém precisava saber). Sua noite tinha tudo para dar certo. Havia abraçado e interagido com Dorothea como se não soubesse de nada. Havia entornado o caldo com Nicolao e Cibele. Fofocado com Anastasia. Conversado com Calisto. Tudo estava certo — até Memnon aparecer.
A interditou enquanto ela cruzava o local e falou: — Juro que achei que não iria conseguir.
— Surpreso? — indagou com deboche.
— Muito surpreso. — Sua cara retorcida a irritava mais do que qualquer coisa. — Não dava nada por você, menina.
— Alteza! — corrigiu. — Pra você é Vossa Alteza.
— Ora, Memnon, deixe disso! — Sabia que tudo havia piorado quando reconheceu a voz de Tyro. — Todos nós já sabíamos que ela conseguiria. A princesa é excepcional desde criança — falou, saindo de trás de Memnon e colocando-se ao lado dele. — Perdão, Alteza, não pude deixar de ouvir a conversa. Esse homem já está muito velho, não sabe o que fala — brincou.
A música que a banda tocava mudou para algo mais lento enquanto Melina percebia que Memnon não ousou responder à altura, ao invés disso, afastou-se com o rabo entre as pernas. Era fácil deduzir o porquê.
— Me concede essa dança, Alteza? — perguntou o senhor de Mínyma.
Dançar com o inimigo? Por que não? Aceitou.
— Devo dizer, princesa, a senhorita me surpreendeu esta tarde.
— Não disse que eu sou excepcional desde criança? — forçou um sorriso.
— Sim, mas hoje ultrapassou minhas expectativas. Aquela onda... — olhou para a parede, pensando, e logo voltou a olhar para ela. — Será uma excelente rainha.
Ele a girou. Assim que ficou novamente de frente para ele, afirmou: — Não tão cedo.
— Sinto lhe informar, senhor Tyro — disse Joe, chegando e colocando uma mão no ombro da pessoa que Melina mais odiava no momento —, mas eu vou ter que roubar a princesa por alguns minutos. Talvez um pouco mais do que isso.
Tyro gargalhou. — Mas é claro. Fiquem à vontade, vocês dois.
Quando ele se afastou, Melina respirou aliviada e disse: — Obrigada por me salvar dessa.
— Ah, não me agradeça ainda. Eu realmente vim te roubar pra um negócio.
Ela o olhou um tanto confusa. Ficou mais confusa ainda quando ele a puxou para o meio da sala, onde estava o piano, a posicionou ao lado do instrumento e a banda parou de tocar. Todos os olhares se voltaram para o dono da casa quando ele começou a falar:
— Alguns de vocês já sabem que eu tenho uma paixão pela música que já me acompanha há alguns anos. E, hoje, nessa ocasião tão especial, gostaria de apresentar uma nova música. Uma harmonia que já toco há alguns anos, sem letra. Mas, há alguns dias atrás, durante uma madrugada, finalmente consegui escrever alguma coisa. Espero que gostem — sentou-se no banco do piano. — E quem não gostar vai ser expulso da festa.
Essa última frase arrancou uma gargalhada de todos os presentes. Menos de Melina. Ela estava focada no padrão familiar que os dedos do garoto percorriam pelas teclas.
Uma melodia que ela conhecia, agora, incrementada com uma nona no F#7. Seu coração não conseguia decidir se acelerava ou se parava de bater. Estava tão cheio de amor que parecia prestes a explodir. Sabia o que viria daquilo, por isso sorriu antes mesmo de ele começar a cantar:
Talvez eu não devesse
Talvez não seja sábio
Talvez não devesse dizer:
Tu é a minha mais doce memória
Mas eu sei, agora
Tu é a minha flora
Não a rosa mais bela
Mas toda a beleza
De tu, eu tenho certeza
Mesmo com minha aspereza
Minha alma quebrada
Se sente em casa
Porque eu sei, agora
Mesmo que chova lá fora
Tu é o meu sol
Quero seu cheiro no meu lençol
E te amar em todo acordar
Enquanto eu respirar
Enquanto eu tiver fôlego para dizer
Que eu amo você
Tu é o meu sol
Aqueceu a minha vida
Me incendeia todos os dias
Te quero pra toda vida
De repente, ele interrompeu o som do piano, se levantou e ajoelhou aos pés dela. Tirou do bolso uma caixinha de veludo, contendo duas alianças de compromisso. Para a cultura de Anamar, não fazia sentido nenhum usar uma aliança se não fossem casados. Mas aqueles dois haviam sido criados em solo brasileiro. Era algo que não podiam deixar de fazer.
Antes que ele abrisse a boca, ela já sabia qual era a pergunta e estava pronta para dizer "sim".
— Quer namorar comigo?
— SIM! — gritou, sem se importar com o que pensariam.
Os ombros de seu namorado caíram aliviados. Como se existisse alguma possibilidade de ela dizer não.
Os momentos seguintes não podiam ser lembrados com clareza. Sabia de uma comemoração à sua volta. Thálles zoando os dois de algum modo. Sua mãe chorando. Nicolao ameaçando Joe de três formas diferentes, mas com um sorriso no rosto. Porém, a coisa que Melina se lembraria com clareza pelo resto de seus dias, foi de correr com Joe para seu quarto, fugindo dos olhares curiosos. Se lembraria também de perguntar, muito seriamente.
— Por que fez tudo isso?
Ele deu de ombros. — Foda-se, sou emocionado mesmo. Romântico incorrigível.
— É sério! — gargalhou, mas insistiu: — O que mudou? Por que decidiu que está preparado para um compromisso?
— Eu não estou — admitiu. — Não completamente. Mas acho que ninguém nunca está, não de verdade. Ninguém consegue se preparar para o desconhecido. Eu só... percebi que se caso tudo dê errado, eu quero que tu tenha a certeza do que somos um pro outro. Sendo só "alguma coisa" — fez o sinal de aspas com os dedos.
Ela colou seus lábios e se afastou com um sorriso. — A gente vai fazer dar certo.
Parecia que era seu novo lema. Beijou-o outra vez. E outra. E também outra. Até que viu uma pequena forma preta parada na janela do quarto.
Assim que avistou o corvo, ele voou. Correu para a janela, inclinando a cabeça para ver para onde ele ia. Seu namorado parou ao seu lado, também espiando.
— Por favor — implorou —, me diga que também viu.
Joseph riu. — Eu vi, sim. Acho que quer que tu vá com ele.
Seu estômago embrulhou de expectativa. Temia que aquela criatura quisesse lhe falar mais alguma coisa, porém, sabia que não era aquilo.
— Pra onde ele foi?
— Parece que voou pra parte de trás da casa. Tem um jardim lá. — Melina assentiu, energicamente, e saiu correndo até o local indicado.
Quando chegou ao jardim, antes mesmo que seus olhos avistassem qualquer pessoa, teve certeza. A forma melódica como o vento agitava as folhas e as flores, o calor em seu peito e a sensação de pertencimento que só sentia no mar lhe confirmaram o que seu coração já sabia.
Apolo estava ali.
Caminhou pelo jardim até seus olhos encontrarem a forma de um jovem homem parado de costas, encostado na amurada, em pose relaxada. Sua pele bronzeada, como se tivesse sido banhada em ouro líquido, reluzia mesmo na noite escura. Seus cabelos dourados eram agitados pelo vento como chamas de uma fogueira. Mas foi quando ele virou a face para ela que Melina entendeu o porque lhe foi dado o sol para ser o deus. Seus olhos eram dourados como a estrela mais preciosa e incandescente. Do tipo que levaria humanos a guerras sangrentas e sem fim apenas para ter posse daquilo. Mas jamais conseguiriam. Não se pode tomar posse do próprio sol.
— Você está aqui?! — Não era possível dizer se era uma pergunta ou uma afirmação. Ela própria não sabia.
— Eu não perderia a coroação da minha filha preferida — sorriu. — Não conte aos outros que eu disse isso.
Aquilo a tirou de seu torpor. — Quantos irmãos eu tenho?
— Não quer saber — respondeu com divertimento enquanto ela se aproximava e parava ao seu lado, timidamente. — Como anda o seu namoro? — brincou.
— Tenho que pedir sua permissão para namorar com ele? — franziu o cenho. — É sério. Eu realmente não sei.
Apolo gargalhou alto. — Não é necessário. Ele é a pessoa ideal. Não há mais ninguém que extrapolaria tantos limites para te manter segura.
— Por isso o escolheu?
— Por isso o escolhi... Mas ele fez por merecer. Temos de lhe dar o devido crédito. Claro, imagino que namorar com você seja um bônus no salário.
— Você já sabia dessa parte? — Apolo continuou calado. Seu rosto não entregava uma resposta. — Poderia me contar o que sabe — insistiu —, facilitaria em muito a minha vida.
— Não é tão simples assim. O destino deve percorrer seu caminho sem intervenções. Eu já arrisquei demais.
— Com os sonhos...
— Exato. E, mesmo antes...
Apolo suspirou enquanto encarava o horizonte.
— Sabe que não pode confiar em Hades — perguntou, abaixando o tom de voz e voltando o olhar para ela —, não sabe?
— Eu sei — ciciou, encarando o chão. — Só tenho medo de não ter opção a não ser aceitar a oferta que ele me fez.
— Sempre temos opção.
Ergueu os olhos para ele. — O que aconteceu com a conversa sobre destino?
— Algumas coisas são invioláveis. Vão acontecer e não há nada que se possa fazer a respeito. Mas.... o caminho até lá, quem faz é você. E, quanto a isso, eu só posso ter alguma ideia das suas possíveis escolhas.
— Poderia, pelo menos, me dar um conselho?
Sua feição transformou-se em algo ainda mais sério. — Prepare suas malas.
Melina sentiu seu sangue gelar. Não precisava de um espelho para ter certeza de que toda cor havia sumido de seu rosto. O chão, de repente, parecia não mais ser capaz de segurá-la em pé, sem que afundasse eternamente. Forçou-se a lembrar-se de como falava para inquirir:
— Eles não vão esperar estar em posse da pérola, vão?
Apolo não respondeu nada, apenas sorriu tristemente para ela; aquilo dizia tudo.
E foi naquele momento, enquanto o deus do sol desaparecia no ar noturno — como uma brisa quente de verão —, que ela soube o que precisava ser feito. Sua ideia ousada ganharia vida naquelas próximas horas. Não daria chances a Tyro de sair vitorioso daquilo. Conseguiria a prova definitiva. Já não importava o custo.
☼
Por todo o resto da noite, Melina não pôs mais nenhuma gota de álcool na boca. Precisava estar sóbria para o que faria. Não disse nada sobre a conversa que tinha tido com seu pai, mesmo sob a pressão de Joe para saber o que o corvo queria. Ele já imaginava que Apolo estivera ali, mas, à certa altura, desistiu de perguntar. Também não contou à ninguém o que faria, por certo, seria impedida.
Quando todos foram embora, todos de sua família estavam bêbados demais para ter disposição para voltar ao palácio — ou às suas próprias casas — às quatro da manhã, então, decidiram dormir ali mesmo, na mansão do governador de Ilíakos. Encerrou a noite com o seu melhor sorriso fingido e tratou de ir para cama o mais cedo possível — o que não era nada cedo.
Arrancou seu vestido e vestiu uma camisa do semideus, que não tampava muita coisa, mas serviria de pijama. Fingiu dormir até ter certeza de que ele estava dormindo. O ronco de cansaço denunciou que não acordaria tão cedo. Mesmo assim, esperou por mais quarenta minutos, para ter certeza de que todos ali estariam desmaiados em sono pesado.
Saltou da cama e foi até seu closet, em busca de qualquer calça que a servisse. Achou um jeans claro escondido ali. Ficou um tanto largo, mas fingiria que era calça boyfriend (o que, pensando por outro lado, não era mentira). Colocou a blusa preta que vestia para dentro do jeans. Os sapatos dele não serviam nela, teve de usar a rasteira escandalosamente brilhante da noite anterior. Fez um rabo de cavalo com o próprio cabelo, correu até a sala de música, pegou emprestada uma das quatro liras e saiu da casa, furtivamente.
Aquela seria a primeira vez que usaria a sua autoridade para lhe abrir portas.
Nenhum dos guardas questionou sua saída. O piloto do barco não questionou quando foi acordado no meio da noite. Também não questionou quando ela disse para onde ia. Do mesmo modo, os guardas da prisão de Thalássa não questionaram o que ela fazia ali às seis da manhã. Igualmente, não questionaram quando ela pediu para ver Nero.
Quando a cela se abriu, Melina pediu ao guarda que se afastasse para bem longe. Queria ficar a sós com o homem que já estava acordado.
Dizer "olá, vamos colaborar", seria em vão, então, tratou logo de começar a tocar a lira; a mesma canção da vez anterior.
Estava mais forte. Sabia. O fracasso da última tentativa havia sido sua culpa. Não estava preparada na época. Tentaria mais uma vez e tentaria com tudo que havia em si. Cantou como se sua vida dependesse disso, porque, de fato, dependia.
Não funcionou.
A frustração que a tomou foi o suficiente para tirá-la de seu perfeito juízo.
Mas, ao invés de chutá-lo e sair esperneando como da última vez. Ousou colocar as mãos sobre a cabeça do homem. Ousou ir contra os desejos de sua mãe. Ousou invadir — com muita força — seus pensamentos.
Viu o rosto do antigo general se contorcer em dor. Se fosse honesta consigo mesma, saberia que não se importava. Pelo menos, não naquele momento, quando vinha diante dela todas as memórias de que precisava. Todas as reuniões com Tyro, o dia em que a ordem do sequestro fora dada, o nome de grande parte dos envolvidos e todas as provas de que precisava.
Ouviu seus gritos de dor e soube que estava exagerando quando sentiu seus olhos se tornarem completamente brancos. Aquilo era um indicativo de que estava usando sua capacidade máxima de poder. O som angustiante e gutural — expressão vocal da mais pura forma de desespero — giraram a chave em seu cérebro que a dizia que já era hora de parar. Já tinha o bastante. Libertaria a mente dele. Porém, já era tarde demais para voltar atrás.
Sentiu a cabeça de Nero vacilar quando seu corpo velho caiu sobre o chão. A sensação mais apavorante e paralisadora que já havia sentido, até então, tomou conta dela. Levou a mão à boca para conter um grito de surpresa. Forçou seus joelhos a dobrarem e sua mão direita a se esticar, tocando o pescoço do homem, bem um uma artéria deveria estar pulsando. Mas não estava.
Nero estava morto.
E era ela quem havia o matado.
Levantou-se devagar, completamente alheia a tudo que não fosse o seu coração acelerado. Suas mãos tremiam e lágrimas escorriam de seus olhos sem o seu consentimento. Foi, também, sem seu consentimento que algo a trouxe de volta para a realidade.
Olhou para baixo, para sua própria barriga, onde, do lado direito, próxima ao seu quadril, podia ser vista, atravessando-a, a ponta de uma lança.
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Outro capítulo gigante... prometi a mim mesma que não deixaria passar de 4 mil palavras, mas esse não teve como.
Espero que tenha compensado. ❤️
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