Capítulo 36: Erik
Já se passaram dois dias que estou em casa. Ainda estou um pouco fraco, mas as dores diminuíram. Flora tem me ajudado com os curativos, os pontos foram feitos com fios absorvíveis e, por isso, não devo precisar ir ao hospital para retirar.
Hoje eu quis tomar banho sozinho e foi tudo bem. Não precisei da ajuda de Flora. Eu também tenho andado um pouco pela casa, de tarde, nós dois temos tomado café no jardim. Eu não sei direito como estamos, nem ela e nem eu falamos sobre nossa discussão, também não falamos que daqui a cinco dias ela vai embora, mas estamos bem.
Nós conversamos sobre tudo, Zoé vive mandando mensagens para atualizar sobre a pousada e Flora não tem escondido nada de mim. Não há silêncios bizarros e incômodos, pelo contrário, nós dois parecemos dispostos a falar. Só não falamos de nós. E isso, cara, tem me matado mais que um ataque cardíaco - ok, sou péssimo com metáforas. Uma batida na minha porta me tira dos meus pensamentos.
— Pode entrar.
Eu digo achando que é Flora, mas é Graça quem aparece e eu estranho um pouco porque Flora disse que viria verificar se deu tudo certo com meu banho sozinho.
— Hum… Erik, a Flora pediu para eu verificar se você está bem para ir até a sala. Você tem uma visita.
Eu estranho porque Charlene, Bernardo e minha mãe estão acostumados com meu quarto.
— Quem está aí? - Pergunto.
Graça parece hesitar um pouco.
— A Penélope.
Eu arregalo os olhos. O que Penélope está fazendo aqui?
— Ela acabou de chegar?
— Ela chegou há um tempinho, mas você está no banho e ela ficou com Flora na sala. A Flora pediu para eu vir verificar se você já tinha acabado.
Ah, inferno! O que essas duas conversaram durante esse tempo? E desde quando Penélope está no Brasil?
— Certo, eu já vou indo.
— Você precisa de ajuda com algo?
— Não. Eu estou bem.
Graça sai e fecha a porta novamente. Eu suspiro. Penélope foi a única que conseguiu me fazer acreditar que eu poderia esquecer Flora. Não durou muito. Apenas uns meses. Acabou no dia em que ela fez um jantar para mim e perguntou se eu queria dormir lá. Eu não tive a mínima vontade e ela percebeu. Então, nós viramos apenas amigos. No ano passado ela se mudou para Paris.
Levanto e vou devagar para a sala. Quando me aproximo, vejo que elas estão falando sobre Paris e eu espero que a conversa tenha sido apenas sobre amenidades mesmo.
— Olá.
Eu digo quando entro, Penélope abre um sorriso enorme ao me ver. Eu sorrio de volta porque, mesmo que eu não a tenha amado como homem, nós somos bons amigos.
— Você está proibido de dar qualquer susto como esse nas pessoas novamente, ok?
Ela se aproxima de mim, não me abraça e eu sei que é só por causa da cirurgia, mas ela toca meu ombro quando diz isso.
— Tudo bem, eu prometo.
Digo isso e sento no sofá. Eu olho para Flora e não consigo decifrar o que seu olhar está me dizendo agora.. Penélope senta na poltrona que estava.
— Eu não sabia que você estava no Brasil.
— Cheguei semana passada. Vim ver minha família e vi as notícias sobre você. Desculpa vir sem avisar, mas eu não tinha planejado. Apenas vim numa cafeteria aqui perto e resolvi aparecer. Não vou demorar, só queria saber como você está.
— Você não precisa avisar e nem mandar mensagem, sabe disso.
Ouço Flora fazer um barulho com a garganta e olho para ela. Ela está se levantando.
— Vou deixar vocês conversando.
— Você pode ficar. - Eu digo e ela sorri, mas eu sei que é um sorriso falso. Eu conheço esse sorriso porque eu a conheço minha vida inteira.
— Vou tomar um banho e deixar vocês mais à vontade. Você fica para o café, Penélope?
— Não, eu acabei de comer. Obrigada!
Flora sorri de novo e sai. Um pequeno silêncio se instala e Penélope diz sem graça:
— Desculpa, eu não sabia que você tinha uma namorada, se eu soubesse, eu realmente teria avisado.
— Você é minha amiga, não precisa mesmo avisar. Está tudo bem.
Eu não digo que Flora é minha namorada porque a própria Flora vive dizendo que não somos nada, mas também não desminto porque mesmo que ela não admita, é minha garota.
— Flora e eu… Eu a conheço a vida inteira, nos reencontramos há pouco tempo.
Ela sorri.
— Eu sei.
— Como assim?
— Quando você resolveu parar de sair comigo, eu sabia que você amava outra garota. Então, fiz algo que eu devia ter feito antes e não fiz.
— O quê?
— Te procurei no Google. A história de vocês está toda lá, os filhos dos donos das Casas A&B, o noivado, a morte dos pais e o sumiço dela. Eu entendi na época porque você não tinha conseguido se entregar mais e hoje quando cheguei, eu a reconheci de imediato. Não sabia que ela tinha voltado.
— Ninguém sabe. É complicado. Flora não mora aqui. Ela mora em outra cidade, refez sua vida e o trabalho dela não permite que ela se mude
.
— Que pena! Espero que vocês dois achem um jeito. Embora ela tenha tentado disfarçar o ciúme, deu para perceber que minha presença a surpreendeu.
— Eu disse a ela que nunca namorei no tempo que estivemos longe, provavelmente ela está agora me achando um mentiroso.
E ela não vai falar comigo porque não quer me aborrecer, eu concluo mentalmente.
— Bom, um pouco de discussão não faz mal, desde que vocês se acertem. Agora, me diz… Como você está?
— Estou bem. Foi só um susto.
— E a empresa?
— Isso está me causando outro ataque, minha mãe proibiu todos os funcionários de me responderem. Eu não faço ideia. E estamos no meio de uma investigação.
— Eu fiquei sabendo sobre o incêndio, sinto muito.
— Já iniciamos a reforma da loja, nós alugamos um espaço num shopping para que os funcionários não fiquem sem emprego até lá.
— Então, se você tem isso resolvido, apenas descanse. Curta sua garota, seus amigos, sua mãe… Erik, você precisa ter uma vida.
Algumas vezes, Penélope e eu nos encontrávamos de madrugada porque eu sempre saía tarde da empresa. Eu desmarquei alguns fins de semana para trabalhar e em outros, eu estava tão cansado que dormia e não a chamava para sair.
— Desculpa, fui um merda com você.
Ela dá de ombros e sorri.
— Você não era meu namorado, não tinha que me dar atenção assim.
Penso em Flora, em como as coisas só estão complicadas por minha causa. Maldito ataque cardíaco. Isso me paralisou. Minha vida está num hiato por causa dessa merda e eu sei o que tenho que fazer, mas não posso.
— Desculpe mesmo assim.
— Tudo bem, se isso te acalma, está tudo certo. E veja, para te provar isso, vou te contar um segredo.
— Qual?
— Vim para o Brasil porque eu precisava dizer a minha família que vou ficar definitivamente em Paris.
Penélope é estilista, ela se mudou para Paris e queria ficar apenas dois anos. Ela queria ganhar experiência na área e vir exercer sua profissão aqui.
— Você vai?
— Sim, eu conheci um cara… Ele é viúvo e tem duas filhas maravilhosas e eu… Eu não posso afastá-las da família delas, então vou ficar. Ele me pediu em casamento. Ele estava disposto a vir, mas eu… - Ela balança a cabeça - Eu sei que o melhor para todos é ficar lá. E agora, vou ser casada e serei madrasta de duas crianças que me conquistaram antes mesmo do pai delas.
Eu sorrio.
— Isso é maravilhoso, Penélope, parabéns!
— Você não está me achando louca? Minha irmã está.
Penso em Flora e na minha decisão.
— Não é fácil decidir isso, mas… Quando a gente ama alguém, acho que o que importa é saber que essa pessoa estará feliz. Quer dizer, você não deve ficar triste em nome desse sacrifício, mas tenho certeza que não é o caso. É?
— Não. Eu estou feliz lá e consigo me ver feliz daqui a 30 anos. É apenas um caminho diferente do que pensei.
— Eu entendo. Quer saber um segredo também?
— Claro.
— Ainda não tive a chance de contar a Flora, sabe, o ataque cardíaco e tudo mais…
— O quê?
— Eu resolvi desistir. Eu não consigo ficar aqui e ela lá. O ataque cardíaco mostrou isso, eu adorei que ela veio e estou odiando que ela tem que ir. Eu não quero isso para o resto da minha vida. Eu quero ter filhos com elas, quero dormir junto todos os dias e tudo mais. Essa distância, mesmo que pequena, não é boa para mim.
— Erik… Eu sinto muito.
— Não sinta, me pergunte do que eu desisti.
Ela levanta uma sobrancelha.
— Do que você desistiu?
— Da empresa.
Depois que Penélope foi embora, eu fui para o quarto. Passei em frente ao quarto de Ana Flora e a porta fechada me indicou que ela ainda devia estar no banho. Ela tem dormido comigo todas as noites, mas durante o dia, usa o quarto que minha mãe preparou para ela.
Eu me deito na cama pensando na conversa com Penélope e fico ansioso para Flora aparecer aqui. Eu não menti. Eu sei que ela deve estar achando que sim e quero esclarecer isso logo. O problema é que eu ando um merda esses dias e meus olhos começam a pesar de sono, eu durmo sem perceber.
Acordo tempos depois com Flora me chamando para tomar meus remédios. Ela está sentada no meu lado.
— Você está me saindo um grande de um dorminhoco.
Ela tenta brincar quando me dá os comprimidos, mas ela evita me olhar nos olhos e eu posso ver os seus levemente inchados, como quem chorou. Eu suspiro.
— Flor, o que houve?
— Nada, por quê?
— Não mente pra mim. - Eu digo. - Por favor, não mente para mim, se tem uma coisa que nós dois não fazemos é isso.
— Nós não mentimos?
Ela pergunta baixinho.
— Você está assim por causa da Penélope?
— Você disse que nunca teve ninguém. - Ela diz triste, não há raiva e ela não parece estar brigando, isso me destrói um pouquinho, mas fico tranquilo porque já vou esclarecer tudo. — Não seria um problema você ter, eu tinha ido embora. O problema não é você ter namorado e sim ter mentido para mim.
— E nunca tive. Eu saí com Penélope por alguns meses, a gente se via pouco porque o trabalho vinha sempre antes, acho até que foi por isso que durou tantos meses, teria acabado antes se a empresa não me consumisse tanto. Mas acabou no mesmo dia que eu percebi que não podia ir longe com ela.
— Tudo bem. Vou ver algo para a gente comer.
Ela ameaçou levantar, mas eu segurei seu pulso levemente.
— Espere.
— Erik…
— Vamos conversar.
Ela balança a cabeça em negativa.
— Não, você não pode se chatear.
— Eu vou ficar chateado se a gente ficar assim. Não sou mais criança, Flor, e nem sou irresponsável. Estou te dizendo que podemos ter uma conversa.
— Para quê? Para eu ser culpada por outro infarto seu?
— Flor, você não é a culpada. Não carregue isso, por favor!
— Eu sou Erik, nós não fazemos bem um para o outro.
— Não diga isso, nós não somos um ciclo tóxico. Nós tivemos uma briga.
— E você infartou depois dela, literalmente.
— Eu estava passando por muita coisa no trabalho. Tudo se acumulou.
— Isso, os últimos oito anos se acumularam e eu sou a culpada por eles.
— Flor, nós apenas precisamos aparar as aresta, consertar o que erramos. Conversar mais um com o outro, falar o que pensamos.
Mas ela nega com a cabeça.
— Essa não é a vida que escolhemos. Eu sei disso, você não precisa me dizer. Eu sei. Você quer o que nossos pais tiveram e eu nunca fui a garota que te daria isso.
— A gente ia se casar, como você tem coragem de dizer isso?
— Pelos motivos errados. Você não me amava, você seria um excelente pai e eu acho que eu também seria uma boa mãe, mas nunca teríamos o que eles tinham porque não existia amor.
— Então é isso? Você quer conversar baseada em uma suposição do que teríamos se não tivéssemos vivido uma tragédia? Essa não é nossa realidade e…
Ela me interrompe:
— A nossa realidade não é diferente disso. Nós dois não temos nada que nos satisfaça. A gente se reencontrou e fizemos uma bagunça com isso.
— Nós não temos nada? Você realmente acha isso? - Não deixo ela responder - É claro que você acha, você não perde a oportunidade de afirmar isso não é?
Ela olha para baixo e suspira. Eu solto seu braço. E eu estava aqui… disposto a vender a minha empresa, a empresa que meu pai construiu. Que o pai dela construiu.
— Você quer mesmo uma conversa definitiva? Eu acho que a gente não tem o que conversar, daqui a cinco dias vou embora e… - Ela para de falar.
— E o quê?
— E acho que nós terminamos aqui.
— Nós não estamos terminando, Flor. - Maldição, mesmo no nosso fim, eu a chamo assim. - Você acabou de dizer que não temos nada, então não há nada para acabar, certo? Acho que no fim, foi tudo um engano mesmo. Uma confusão, como você disse.
Ela se levanta.
— Vou ver algo para você comer.
— Ana Flora!
Ela apenas para e me olha.
— Eu posso dormir sozinho essa noite. Eu chamarei se precisar de algo. E… Você não precisa ficar mais cinco dias aqui. Eu não quero te impor isso. Vou ligar para minha mãe e pedir para ela vir amanhã e contratar uma enfermeira.
Eu não falo isso com raiva, apenas não quero prolongar o nosso sofrimento. Seria doloroso tê-la aqui nesses dias.
— Você quer que eu vá agora? Se for tão horrível ter minha presença, posso pedir para Bernardo vir e eu vou para a Charlene.
— Eu não estou te expulsando da minha casa, estou apenas evitando mais sofrimento. Qual o propósito de você ficar, se sabemos que é uma despedida?
— Tem razão, estamos apenas adiantando um desfecho que já estava traçado desde o momento que desistimos.
Ela diz isso e sai. Eu tenho a impressão dolorosa que é uma das últimas vezes que verei Ana Flora.
Bạn đang đọc truyện trên: Truyen247.Pro