Capítulo 28: Erik
Flor: Ei, Violeta saiu com Benício, quer ir ao bar do deck? Quero comemorar.
Era só descer as escadas e ir até ela. Era só colocar um sorriso no rosto e comemorar, mas algo estava me impedindo. Suspiro e passo a mão em meu rosto. Eu estou chateado. E puto.
A insistência de Flora em ignorar seu dinheiro me deixa confuso, eu entendo de maneira racional que ela canalizou o seu trauma para isso. Entendo que ela transferiu a culpa que sente, o medo, o arrependimento para isso. Mas presenciar essa situação não é fácil.
Não é fácil porque eu sei como nossos pais começaram por baixo, eu sei como esse é um dinheiro honesto e privilegiado. Nossos pais não tinham nada de diferente em relação a muita gente que passa a vida inteira tentando. Eles tiveram os contatos certos.
Uma vez meu pai me disse que era sorte. Eu achei que era uma falsa modéstia. Nasci privilegiado, logo não entendia que realmente era sorte. Então, ele me disse que quando se nasce pobre, se entende que o mundo privilegia alguns, mas que nenhuma ideia é totalmente inédita, nenhuma aptidão é exclusiva. Todos lutam diariamente, apenas alguns têm sorte de chegar lá. E ao contrário do que dizem, não tem a ver com noites não dormidas, não tem a ver com as horas extras que fazemos. Tem apenas a ver com o mundo ser injusto.
Ele também me disse que eu poderia saber sobre isso, mas que eu tinha nascido rico, então eu nunca vivenciaria e nunca sentiria na pele o que é precisar lutar para viver.
Eu lembro perfeitamente daquele dia. Ele me levou para passar o dia com ele, então, nós fomos a um bairro da periferia de São Paulo. Ele me mostrou a casa que ele cresceu e eu me assustei com o quão pequena e simples ela era. Acho que como era julho e eu estava com frio, a primeira coisa que pensei foi que meu pai devia sentir muito frio quando era criança, aquela casa não parecia proteger as pessoas que moravam nela.
Então, depois, ele me levou para fazer um lanche e começou a falar novamente. Ele me disse que era grato por eu nunca precisar passar pelo que ele passou, mas que ele só teria paz se conseguisse me fazer perceber que o fato de eu não vivenciar as dificuldades, não me dava o direito de ignorar que elas existiam. Por isso, eu precisava sempre pensar em cada pessoa que trabalharia para mim; e dar oportunidades; e não ser um chefe filho da puta. Eu nunca via meu pai xingar, então, eu soube que aquilo não era um conselho e sim uma ordem.
Foi nesse dia que ele me contou com detalhes toda a história da loja. Meu pai e o pai de Flora ficaram amigos porque um professor percebeu que os dois estavam passando necessidades para conseguir estudar. Então, ele criou um grupo de estudos que acontecia sempre no horário do jantar. Era a forma que ele tinha para oferecer comida para os estudantes que ele percebia precisar. No dia que eles perceberam isso, eles decidiram que iam vencer na vida sem deixar de olhar para ninguém. Foi esse mesmo professor que financiou a primeira loja deles.
Durante anos, ouvi muitas vezes nossos pais contando sobre isso. Eu conhecia essa história de trás para frente. Flora também. Por isso me chateava a facilidade com que ela deixou tudo de lado. E o fato de ela não estar disposta a usar esse dinheiro nem para realizar seu próprio sonho, me parecia uma traição com a memória de seu pai, mesmo sabendo que para ela, traição seria usar o dinheiro.
Mas eu não vou mentir. O pior foi ver a necessidade que ela demonstrou em afirmar que nós não somos nada. O que estou fazendo aqui deixando toda minha vida de lado para ficar com uma mulher que necessita frisar o tempo inteiro que eu não tenho papel em sua vida? Jesus, eu tenho cogitado vender minha empresa ou abrir seu capital. Eu não falo em voz alta, mas eu cheguei a imaginar nós dois envelhecendo aqui. Mas se Flora acha que não somos nada, se ela acha que somos apenas amigos de infância - ou que ainda somos dois jovens fazendo sexo casual - ela e eu estaremos fadados ao fracasso. Nós precisamos conversar seriamente. Preciso saber se estamos, ou não, na mesma página.
Eu não vou estragar o dia dela, entretanto.
Erik: Claro. Desço em meia hora.
Decido respirar fundo. Eu não vou ser impulsivo como no dia em que fui embora. Eu vou ruminar. Vou colocar a cabeça no lugar e conversar com Ana Flora.
Agora, enquanto tomo banho e sinto a água quente relaxar meu corpo, me concentro em como estou feliz por ela. Eu realmente estou. Ela vai ter algo seu. Algo que ela tanto desejou. Várias vezes Flora me disse que se apaixonou pela pousada e por essa profissão. Então, óbvio, estou feliz pra caralho por ela. Também estou muito grato a Benício. Ele podia se aproveitar do dinheiro de Flora e insistir em uma venda, ele poderia até imaginar que se ela não usasse seu dinheiro, eu ofereceria o meu - porque óbvio que eu faria, meu dinheiro só existe porque o pai dela existiu na vida do meu pai. Mas o cara se mostrou muito mais digno do que imaginávamos.
Saio do banho e enterrei tudo de ruim dentro de mim, deixei fluir os sentimentos bons e é assim que vou encontrar com Ana Flora.
Quando eu desço, ela está no hall conversando com Zoé. Ela está linda, uma calça vermelha e uma blusa de tricô branca. Seus cabelos estão soltos como uma cascata. Em sua boca, há um batom rosa que me faz querer beijá-la. É muito fácil deixar as coisas boas prevalecerem quando a vejo assim.
Eu me aproximo e dou um selinho em seus lábios. Nós trocamos algumas palavras com Zoé e seguimos para o bar de mãos dadas.
— Eu contei para Zoé. Benício e eu decidimos manter tudo como está nessa semana e contar no churrasco de sábado, mas eu quis contar para ela.
— Como você está se sentindo, Flor?
— Nervosa, ansiosa, feliz, preocupada, orgulhosa. Tudo isso, é possível?
Eu sorrio.
— Claro que é!
— Também estou um pouco triste.
- Por quê?
- Violeta vai aceitar morar com Benício. Sei que é egoísmo, eu estou feliz porque eles se acertaram, mas eu me acostumei com ela. Vou sentir saudades.
- Acho que Benício se mostrou muito digno hoje. Tenho certeza que ela vai ser feliz com ele.
- Eu também acho, mas não consigo não ficar um pouquinho chateada.
- Eu entendo, é compreensível, mas se bem eu conheço vocês, acho que ela ficará muito aqui.
- Espero. Benício disse que a chácara é aqui perto, então acho que posso visitar também.
- Tenho certeza disso.
Nós chegamos ao deck e sentamos em uma mesa. Alane vem nos atender. Ela parece um pouco tensa.
- Tudo certo? - Flora pergunta. - Evaristo fez muito estrago? Desculpe, Alane, foi culpa minha.
- Tudo bem, não, ele foi apenas uma atração, Benício segurou antes que ele pudesse fazer algum estrago.
— Acho que agora precisamos aceitar de vez que ela ama sua torta de maçã.
Alane sorri.
— Aquele é um bode esquisito.
- Mas você está bem? Parece um pouco nervosa.
- Estou só cansada, Flora. Não se preocupe. Vocês já sabem o que vão pedir?
Nós fazemos nosso pedido, faço questão de pedir o vinho que Flora tanto gosta. Aliás, que nós dois gostamos. Eu bebo cerveja, mas sempre fui mais de vinho e o que é produzido por aqui é magnífico. Ainda não tive a oportunidade de conhecer a vinícola, quero visitar com Flora, talvez possa marcar um passeio para comemorar de verdade que a pousada será dela. Eu quero mostrar que estou feliz por ela, talvez seja minha consciência pesando por todos os pensamentos que tive hoje, mas eu realmente quero que ela saiba que estou feliz. Eu não consigo ver o que isso significa para nós, mas se ela está feliz, inferno, eu também estou, mesmo que por um tempo doa. Sempre estarei feliz por saber que ela está bem.
- Te convenceu? - Pergunto quando Alane se afasta.
- Não. Ela parece preocupada.
- Alane tem família?
- Não que eu saiba. Ela já estava aqui quando eu vim, mas é só isso, ela apenas fica. Nunca sai ou recebe alguém.
- Parece solitário.
Ana Flora solta um suspiro e sua expressão é chateada.
- Pois é e eu nunca tentei uma aproximação mais incisiva. Só recentemente percebi isso. Sabe, eu descobri que sou uma grande egoísta.
- Não diz isso, Flor, às vezes precisamos nos priorizar.
- Eu me priorizei por quase oito anos, Erik.
Eu seguro sua mão e a olho nos olhos. Apesar de tudo o que senti hoje, eu sou sincero ao dizer:
- Por que você não aproveita essa nova etapa e tenta se perdoar?
- Quando acho que eu me perdoei, tenho pensamentos assim.
- Então você deve se perdoar um pouquinho todos os dias.
Ela sorri para mim e eu beijo sua mão.
- Agora, me diz… Sei que pode ser cedo, mas você já tem planos?
Ela abre um sorriso enorme.
- Sim, vou voltar com os planos do cinema e do salão de festa. Também estou pensando em outra coisa.
- O que?
- Quero construir alguns chalés, fora da casa principal.
- Pensou em algo temático?
- Não sei… O que você acha?
- Eu li sobre uns hotéis americanos que têm construído quartos temáticos de filmes e universos cinematográficos. Isso por si só já é um atrativo turístico.
Ela arregala os olhos surpresa e sorri.
- Uau, isso é excelente! Mesmo que a cidade não atraia tantos turistas, podem me procurar por causa desses chalés. Essa semana vou conversar com Benício sobre as finanças e já começar a pensar o que é viável ou não.
Eu apenas afirmo com a cabeça e sorrio para não dizer que ela tem um dinheiro enorme que pode ser investido. Inferno. Ela acabou de falar como ainda se sente mal e eu estou com esse tipo de pensamento. Antes que falemos de novo, Alane chega com nosso pedido. Quando ela termina de nos servir, ela diz para Ana Flora:
- Flora, Violeta me disse que na outra semana vai viajar? Estou perguntando porque tenho que ver se vou precisar de alguém para me ajudar.
- Sim. Benício vai levá-la para fazer um mapeamento genético. Eles querem ver as possíveis doenças que ela pode ter.
- Entendo. Benício está mudado, não é? Mais cedo ele veio aqui para conversar com ela.
- Ele está. Ele também está ajudando Violeta a procurar sua mãe. - Flora solta um suspiro - Não devia te dizer nada porque ainda é um segredo, Alane, mas talvez você precise encontrar alguém fixo para revezar com Violeta. Benício vai comprar uma chácara aqui perto e eles vão morar juntos.
Eu vejo algumas emoções passarem pelo rosto de Alane, ela tenta disfarçar e acho que Flora não percebe porque também sente muitas coisas em relação a isso.
- Certo, vou fingir surpresa quando Violeta me contar, mas já vou pensar nisso. Obrigada por me avisar.
Ela diz isso e sai. Flora olha para mim e sorri.
- Vamos brindar?
- Claro. - Digo isso e ergo minha taça - Aos seus sonhos, Flor.
Ela sorri emocionada e junta sua taça na minha.
- E às pessoas que compartilham comigo!
Eu sorrio, mas por dentro, me sinto um merda.
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