Capítulo 21: Ana Flora
⚠️⚠️Alerta de Gatilho⚠️⚠️
Esse capítulo contém gatilhos relacionados à Pandemia do COVID e às inúmeras mortes que ocorreram. Sua saúde mental deve sempre vir em primeiro lugar! 💜🩷
Quando Charlene retorna, ela me pede para ficar com Elaíse mais um pouco, apenas para que ela tome um banho. Eu digo que tudo bem e continuo brincando com ela.
Nós estamos no salão de jogos da pousada, Elaíse está brincando com suas panelinhas quando Charlene volta. Ela brinca um pouco com sua filha e também conversamos. Noto que ela parece inquieta.
— O que houve?
— Nada…
— Char, sei que ficamos anos afastadas, mas te conheço. O que foi?
Ela olha para Elaíse que está brincando e depois para mim. Há uns hóspedes jogando totó e outros tênis de mesa, mas estamos em uma área mais afastada porque aqui há um cantinho infantil.
—Eu nunca fiz o que quis. - ela diz de repente.
— Como assim?
— Com a medicina. Eu não virei médica por causa dos meus pais. Quer dizer, óbvio, eles influenciaram, mas… Meus pais encaravam a medicina como uma missão. Certo, minha família enriqueceu assim, mas eles nunca pararam de ajudar as pessoas. - Ela suspira. - Eu não te contei, eles morreram na pandemia.
— Eu sinto muito, Char.
— Eles se voluntariaram nos hospitais. Os dois pegaram covid em um hospital que não trabalhavam. Foi no auge, sabe? Sem velório. Caixão lacrado e sem tempo de me despedir, sem poder ter conforto dos meus. Eu fui pra casa do Bernardo e passei o restante do isolamento lá.
— Como foi?
— Horrível. Eu fiquei com peso na consciência por não ter me voluntariado também. Mas a morte deles me traumatizou e eu não consegui depois disso. Eu me acovardei totalmente. Fora o luto. Foi horrível. Minha mãe morreu sem saber que meu pai tinha morrido. Isso pode parecer acalentador, mas ela não ficou sabendo porque também já estava entubada.
— Char... - Mas ela parece não me ouvir. Ela continua falando.
— Foi um inferno, Flora. Quando eles estavam internados, eu não pude visitar. A gente se falava por vídeo. Meu pai foi entubado às pressas, minha mãe também, mas a enfermeira fez uma chamada e minha mãe tinha certeza que ela estava indo embora. Eu nunca vou esquecer aquela conversa. Nunca vou esquecer o último "eu te amo" que ela me falou.
Eu seguro a mão de Charlene. Ela olha para mim e sorri. Eu sorrio de volta tentando dar força. Estou anos atrasada, mas gostaria de fazer isso agora.
— Tenho certeza que seus pais eram muito orgulhosos de você. Sei que ainda são.
— Eu tento me convencer disso, mas... Às vezes é difícil. Sinceramente, eu não sei o que teria sido de mim se Bernardo não tivesse me levado com ele.
— Vocês já tinham a clínica?
— Sim, mas apenas nós dois atendíamos, depois da pandemia aumentamos os atendimentos. E foi depois também que decidi engravidar. Eu sempre quis ser mãe, então aproveitei o meu dinheiro e fiz inseminação. Dei sorte. Engravidei de primeira. Tenho meu trabalho, meus amigos e minha filha. Eu sou tão feliz e hoje percebi que estou feliz de uma forma tão egoísta. Estou apenas em meu mundinho. Eu já quis ajudar as pessoas, não ajudei e esqueci disso. Eu me sinto realizada sendo médica de rico. Que pessoa me tornei?
— Charlene, isso não te faz uma pessoa ruim. É hipocrisia a gente dizer que não precisa de dinheiro. É óbvio que precisamos e você tem uma filha. Você quer dar o melhor para ela.
Ela não parece se convencer, apenas me pergunta:
— Sabe o que a secretária do doutor Abraão me disse?
— O que?
— Aqui só tem um postinho, então, quando está sobrecarregado e não há vaga para as consultas gratuitas, o postinho encaminha pra ele, por baixo dos panos e ele não cobra a consulta. Ele também tem consultas a preços populares. Mas claro que você já sabe disso.
— Sim… todos na cidade sabem.
Eu quase digo que doutor Abraão quer se aposentar, mas só não fez porque não há ninguém para substituí-lo. Eu nunca diria para Charlene se mudar. Eu nunca diria nem mesmo para Erik. Não sou tão egoísta assim.
— Claro que sabem… - ela sorri. - Enquanto estava voltando, percebi que eu nunca exerci a medicina assim.
Eu sorrio compreensiva e seguro sua mão novamente.
— Você sabe que não está morrendo ou se aposentando? Você ainda pode mudar o rumo.
— Sim, eu vou fazer isso. Você está certa. Obrigada! Além disso, eu quero que Elaíse se orgulhe de mim assim como eu me orgulho dos meus pais.
Ela deita a cabeça em meu ombro e eu penso em nós duas adolescentes, crescendo juntas… Tantas coisas eu deixei de viver com ela, eu não estive em sua formatura, eu não a apoiei quando seus pais morreram. Culpa me consome mais uma vez, eu deixei essas pessoas sozinhas e elas estão aqui comigo.
Nós estamos assim quando Elaíse sorri e se levanta. Ela não sai correndo, mas chama:
— Nini!
Eu sempre vou achar graça por ela chamar Benício assim. Eu me viro e ele está atrás de nós. Ele olha rapidamente para Charlene e eu, depois se abaixa e vai até Elaíse.
— Oi, Lalá. Você está desenhando ou brincando?
— Brincando.
— Pena, se tivesse desenhando ia querer um para eu guardar.
— Amanhã vou pra minha casa.
Ele sorri para ela e faz um pequeno cafuné.
— Eu sei, querida. Espero que você volte logo.
— Você vai cuidar do Evaito?
— Eu vou, mas você tem que prometer voltar e me ajudar qualquer hora. Você promete?
Ela sorri e seus olhos brilham.
— Siim!
Ele sorri e depois olha para a gente. A mudança em sua expressão é nítida e eu penso que talvez seja bom eu ter uma foto de Elaíse. Sempre que ele ficar rabugento, eu mostro a foto e ele melhora. Como um feitiço.
— Você sabe de seu namoradinho? Preciso falar com ele.
Eu arqueio a sobrancelha.
— O que você precisa?
Ele faz uma carranca.
— Acho que isso é entre nós dois, não acha?
Antes que eu possa responder, Charlene diz:
— Você não cansa de ser um babaca escroto? Todos os dias você tinha que agradecer porque a Flora está aqui. Essa pousada só está aqui ainda porque Flora sempre cuidou de tudo. Você devia tratá-la melhor, você devia tratar todo mundo melhor ou vai acabar ficando sozinho aqui e vai ser merecido. As pessoas não têm que ficar à mercê do seu péssimo humor e do seu coração gelado. - Ela diz sem gritar, mas seu tom é tão duro que até eu me assusto.
Eu vejo que Benício se enfurece. Eu vejo quando ele respira forte e eu só torço para que ele pegue leve. Mas ele apenas faz um leve movimento com a cabeça e sai. Charlene solta uma suspiro e passa as mãos em seus olhos.
— Droga… acho que exagerei.
— É… ele, na verdade, ele não está mais tão babaca quanto antes e não é mesmo da minha conta.
— Ele salvou minha filha. - ela solta um suspiro - Preciso pedir desculpas.
— Depois você pede. Agora se acalme. O mundo não vai acabar porque ele precisou lidar com você em um momento ruim. Como você mesma disse, a gente sempre lida com o humor péssimo dele.
— Mamãe, eu quero desenhar para o Nini.
Elaíse diz e eu vejo Charlene estremecer.
— O que houve? - Eu pergunto para Erik. Vim para casa tomar um banho porque de noite, faremos uma noite de meninas. Quando eu já estava indo para o banho, Erik me perguntou se podíamos conversar. Eu disse para ele vir.
— Ontem quando cheguei, eu quis um chá. Enquanto eu estava esperando, Benício disse que queria falar comigo hoje.
— Sim, mais cedo ele me viu e perguntou por você.
— Ele ouviu Violeta conversando comigo aquele dia.
— Droga. E ele pirou?
— Na verdade… não. Primeiro ele foi prepotente dizendo que eu posso ser um bilionário, mas ele não precisa do meu dinheiro.
— Soa como ele.
Até porque Benício é um sortudo. O cara ganhou na loteria. Não é uma metáfora, ele realmente ganhou na loteria.
— Depois ele disse que não precisa do meu dinheiro, mas precisa dos meus contatos.
Eu me surpreendo.
— Seus contatos?
— Ele quer ajudar Violeta. Ele disse que vai pagar, vai pagar a investigação e também o mapeamento genético. Mas ele quer indicações.
Eu fico sem reação. Essa postura não combina com o Benício que conheço. Tudo bem, ele está diferente nas últimas semanas, mas isso é totalmente diferente. Isso é ele se importando com Violeta.
— Uau. Eu não sei o que dizer.
— Confesso que eu também fiquei surpreso.
— Ele tem buscado Violeta na escola. Os dois têm passado algum tempo juntos. Pelo jeito está sendo bom.
Ele confirma com a cabeça.
— Acho que finalmente ele está fazendo o papel de irmão e de tutor.
As entrelinhas dessa fala me incomodam um pouco. Erik sabe que estou aqui por ela e eu espero que ele não pense que sairei só porque agora os dois têm um fiapo de relação. Mesmo que esse fiapo vire um nó forte, eu não quero ir embora de Serra Dourada.
— O que você disse para ele?
— Eu disse que ajudaria.
Eu sorrio.
— Você fez bem.
— Ele não quer que Violeta saiba e inicialmente, eu acho melhor assim.
— É, eu também acho.
— Tudo certo? Você parece estranha.
— Tudo certo, apenas fiquei surpresa. Quer dizer, Benício está diferente, mas eu realmente não esperava isso. Tenho minhas teorias do pode ter feito isso, mas... uau. Não é algo que eu esperava.
— Eu pensei sobre isso. Quais as chances da babaquice ser resultado do luto? Talvez ele esteja se curando da morte da mãe.
— Pode ser… Talvez. Ele sempre foi fechado e meio rabugento, mas de fato, ele estava intragável apenas depois que Rosa morreu. Antes ele era mais quieto, apenas.
— Talvez as coisas melhorem daqui para frente.
Ele sorri para mim, pega minha mão, me dá um selinho.
— Eu vou deixar você se aprontar, apenas vim te contar. Eu vou sair mais tarde, vou até a cidade comer alguma coisa.
— Tudo bem. Você pode avisar quando chegar? Só para eu saber que você chegou bem, a estrada está ruim.
— Claro. Eu aviso. Ah, consegui nosso hotel e a partir de amanhã você será só minha!
Ele diz isso e depois passa os olhos em meu corpo. Jesus! Como estou aguentando? Eu preciso tanto dele dentro de mim.
—Quem sabe se você estiver acordado quando as meninas se forem, você não passa para um beijo de boa noite?
Erik se aproxima de mim, eu estou com uma camiseta rosa e um short jeans. Ele olha para meu decote.
— Adoro ver esse pingente em sua pele. Você vai estar com ele quando eu vier?
— Eu definitivamente vou.
Eu estaria com qualquer coisa se ele estivesse me olhando e usando esse tom comigo. Tudo o que ele quisesse, ele teria de mim. Erik sorri para mim, coloca a mão em minha cintura e me beija possessivo. Como sempre foi, eu derreto em seus braços.
— Até mais tarde, Flor.
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