Capítulo 2: Erik
Eu vejo uma mulher de cabelos ruivos correndo para algum lugar e me arrepio. Isso acontece sempre que vejo uma ruiva com aquele tom laranja de cabelo. Porra. Não é possível que até aqui isso vai me perseguir. A garota que ficou, me olha assustada porque ela voltou correndo e acabou derrubando a garrafa de café e a bandeja que costumam deixar de cortesia para os hóspedes. Ela é bonita. Tem um cabelo cacheado bem cheio, preto com as pontas verdes, sua pele é morena e seus olhos são verdes. Eu penso em me aproximar, mas ela parece nervosa pegando tudo o que derrubou
- Hum, devo voltar outra hora?
Pergunto porque eu ouvi o barulho horroroso que veio de algum lugar e ela parece nervosa.
- Não. Está tudo bem. - ela diz se levantando e colocando tudo atrás do balcão, como se tentasse esconder, mas não pode. - Pode entrar, seja bem-vindo.
Eu me aproximo. A pousada é elegante, mesmo simples. Com certeza é bem diferente dos hotéis luxuosos que eu e minha família estamos acostumados.
- Obrigado! - Digo sorrindo.
- Você tem uma reserva?
Antes que eu responda, um cara chega esbaforido. Ele é um pouco baixinho, tem cabelo liso e preto e as bochechas um pouco rosadas.
- Está tudo bem, Zoé, foi só a panela de pressão. - Só então, ele parece me notar. - Opa, desculpa! Eu não quis atrapalhar.
Estou prestes a dizer que tudo bem.
- Mas atrapalhou. Assim como o barulho.
Eu me viro para a porta ao lado que se abriu. Um homem de cabelo loiro raspado, rosto quadrado, olhos azuis e com tatuagens pelos braços diz. Ele parece sério e algo nele me incomoda.
- Queira me desculpar. - Ele diz se aproximando e estendendo a mão para mim. - Aparentemente meus funcionários hoje estão fora do prumo. Sou Benício, dono da pousada.
Eu posso ouvir a voz do meu pai dizendo que nós nunca devemos repreender nossos funcionários na frente das pessoas, por mais grave que seja a situação. Eu olho discretamente para a mulher e para o homem e eles parecem sem graça. Eu junto minha mão na dele.
- Erik. Imagine. Contratempos sempre acontecem.
- Você já tem uma reserva? Vamos te mandar uma bebida para esquecermos esse furdunço.
-Sim, era o que eu estava dizendo. Eu tenho uma reserva, mas não está no meu nome. Está no nome de Bernardo.
O homem parece ficar mais bravo, embora tente se controlar.
- Ah! Pediram nosso melhor quarto. - Então, ele olha para a garota - Ele é o rapaz do 308. Não esqueça de mandar a bebida. - Se vira para mim. - Nossos vinhos são ótimos. - Ele não me dá tempo de responder, pois vira para o outro funcionário. - Vamos, Charles, vamos ver como está minha cozinha!
Os dois se afastam e embora eu não possa ouvir, eu percebo que o homem segue irritado.
- Desculpe. - A garota diz.
- Está tudo bem.
Ela sorri para mim e me dá uma ficha. Acho um pouco engraçado porque, definitivamente, os hotéis que frequento não usam mais fichas de papel. Nem mesmo uma chave.
- Então, sei que a reserva não está em seu nome, mas preciso dos seus dados agora e também saber a forma de pagamento. Você paga sua estadia agora e se consumir algo, acertamos no final. O café e o almoço estão inclusos no valor.
- Espera, o almoço também?
- Sim. Você pretende comer fora? Posso ver com a gerente se podemos fazer um desconto e...
- Não! - Eu interrompo porque vejo que ela está nervosa. - Desculpe, só achei diferente. Geralmente é só café. - Retiro minha carteira do bolso e entrego meu cartão. - Minha reserva é para quinze dias, certo?
- Sim, senhor.
- Ok. Pode passar no débito.
Ela pega meu cartão, enquanto eu preencho a ficha. Eu não acredito que Bernardo me convenceu a tirar 15 dias de férias. Ok. O médico mandou 30, mas eu estava disposto a ignorar.
- A cidade é pequena, mas temos alguns passeios turísticos e cachoeiras. Aqui na pousada, como você pode ter percebido temos diversas áreas de lazer, piscina, salão de jogos, passeios a cavalo, temos um lago com um deck e um bar, e um outro lago para pescaria. Você veio de carro? Já parou no estacionamento?
- Sim, já está lá. Obrigado.
- Tem um telefone no quarto para qualquer pedido, se você quiser algo do bar do deck também tem o número no quarto. Seu quarto fica no terceiro andar. Você pode ir de elevador ou de escada. - Eu olho e nem tinha percebido o pequeno elevador. - Como Benício disse, seu quarto é o 308.
Ela diz o texto decorado enquanto pega a chave e me entrega. Olha minha ficha de novo.
- Seja bem-vindo, Senhor Barbieri. Esperamos que tenha momentos prazerosos aqui.
Eu sorrio, agradeço. Volto para o carro para pegar minha mala e finalmente subo para meu quarto. Quando chego, me surpreendo de novo. É, de certa forma, luxuoso. A decoração é toda em tons de azul, com alguns enfeites de cristal. Na parede uma aquarela me chama a atenção. É uma família de cisnes em um lago. Eles estão no pôr do sol, há um cisne maior, provavelmente o macho que contempla a fêmea que é um pouco menor. Por algum motivo, a expressão da fêmea é triste e o macho me parece querer consolá-la. Perto deles, dois filhotes. Tudo isso é refletido na água que ganha alguns tons de rosa. Na frente do sol se pondo há uma silhueta branca de outro cisne voando, e ao lado dele nuvens grandes em tons de rosa, verde, azul e branco. A aquarela inteira é feita em tons claros. Lindo. Observo que não tem assinatura. Eu gostaria de saber quem é o artista. Na verdade, eu gostaria de comprar esse quadro. Balanço a cabeça em negação, estou ficando louco. Eu deveria era pedir para tirarem o quadro daqui. Qual o propósito de vir descansar se venho para um bendito quarto com algo que me lembra tudo o que eu deveria ter esquecido nesses anos todos?
Resolvo aproveitar que o dono da pousada quer me agradar e provavelmente vai atender meu inusitado pedido de tirar o quadro daqui. Vou até o criado mudo pegar o telefone para falar com a recepção e travo. Ali, bem do lado do aparelho, um pequeno origami de tsuru. Azul claro, para combinar com o quarto. Eu pego meio trêmulo e leio o papel que está embaixo. É escrito com letra dourada.
"Bem-vindo ao Lago Encantado. Esperamos que sua estadia seja prazerosa e relaxante."
Maldição. Como pode ser prazerosa e relaxante se tudo aqui esfrega na minha cara toda minha derrota e fraqueza?
Verão, 12 anos atrás.
Eu venho até o lago e como eu imaginava, ela está sentada no banco que tem aqui. Preciso admitir que é uma bela paisagem. O sol quase se pondo, os cisnes no lago, a garota sentada no banco de madeira com o vento fazendo seu cabelo voar. Se eu soubesse pintar, eu pintaria esse momento, mas ela que é a artista aqui. Eu me aproximo e sento ao seu lado. Ela rapidamente limpa as lágrimas.
-Não precisa disfarçar as lágrimas pra mim. Não se esqueça que eu te vi bebê. - eu digo.
-Você tinha três anos, duvido que se lembra. - ela rebate.
-Eu me lembro que você tinha um macacão rosa que imitava uma ovelhinha. Tinha toucas e sapatinhos também.
-Corta essa, Erik. Minha mãe também tem essa foto.
Eu sorrio. Nossas mães registraram esse momento. Eu, uma criança de três anos sentado no sofá com uma roupa brega de marinheiro segurando um pequeno neném nos braços. Eu olho para ela admirado, na imagem dá para ver o braço de algum adulto que foi cortado da foto, mas está segurando Flora. Uma típica foto de uma criança segurando outra.
- Não fique brava com eles.
-Eu acho maldade. Aqui não é habitat dos cisnes. Eu pesquisei na internet, sabe quanto custa um cisne branco? Trinta mil!! E eu estou olhando para dois nesse momento. A gente está olhando para 60 mil reais.
-Flora, você sabe que eles são muito ricos. Seus vestidos de marca estão aí para provar.
Ela bufa.
-Eu não sou hipócrita, Erik. Não estou reclamando da vida que eu levo, ok? Eu só não vejo necessidade de comprar cisnes para uma fazenda que a gente vem apenas no verão e, eu já disse, não é o habitat deles.
-Se te serve de consolo, meu pai comprou um e o seu outro.
-Isso não me serve de consolo.
-A fazenda não fica vazia. Eles vão ser bem cuidados. Pelo menos eles compraram legalmente e não são animais roubados, traficados ou coisa assim.
Ela me olha estranho, revira os olhos e sorri.
-Você é péssimo consolando alguém.
Eu rio.
-Eu sou, desculpe.
Ela suspira de novo e encosta a cabeça em meu ombro. Eu me pergunto se ela sabe... Ainda lembro do dia em que ouvi meus pais discutindo. Eu estava no início da adolescência, mas fiquei muito bravo.
-O que houve? - ela pergunta.
-Nada, por quê?
-Você ficou tenso de repente.
-Apenas lembrei de uma coisa ruim, mas já passou.
-Pode me contar, ao contrário de certas pessoas, sou boa com conselhos.
Eu sorrio e tenho vontade de perguntar se ela sabe e o que ela acha sobre isso. Tenho vontade de perguntar se ela concorda que todos esses verões juntos sejam tentativas de fazer a gente se casar e deixar nossas famílias muito mais ricas. Quero saber se ela compartilha da minha revolta porque é o maldito século XXI e querem definir nosso futuro. Mas agora, ao pôr do sol, ela está tão linda, o cabelo mais da cor do fogo que o costume. As sardas no nariz se acentuando mais, o olho verde... Ela é só uma garota de 15 anos e eu me sinto apenas um garoto de 18 anos que está atraído por alguém. Mas eu não posso, não posso dar ao meu pai o gosto da vitória. Quer dizer, não me entenda mal, meus pais e os pais dela são legais, eles não são malvados ou coisa do tipo, mas esse plano arcaico não faz sentido algum. Eu não sei como não combinam de nos colocar na mesma escola.
-Erik?
-Você gosta dos nossos verões?
-Acho que eu nunca vou entender porque sempre ficamos um mês inteiro aqui, mas eu gosto. Quer dizer, agora que você voltou a ser você.
-Como assim?
-Você ficou muito chato quando entrou na adolescência e não quis mais brincar comigo. E você é só três anos mais velho que eu, não era tão diferente assim.
-Na minha cabeça era. Mas eu sempre andei a cavalo com você e te ensinei a fazer origamis.
Ela sorri.
-Pode ser. Você está animado para a faculdade?
-Não.
A resposta a surpreende, mas também me surpreende porque eu não disse isso para ninguém e saiu tão natural.
-Por quê?
-Eu não sei explicar.
-Você pode tentar.
-Certo, juro, não é um desses casos de garoto rico que não quer herdar a empresa do pai. Eu também não sou hipócrita. Eu quero. Eu gosto da nossa vida e óbvio que quero dinheiro. O problema é que eu nunca nem pensei se gostaria de outra coisa, sabe? Estou fazendo administração para cuidar dos negócios. Fim. E se eu, sei lá, fosse pra ser o cara que descobriu como iremos para Marte depois que a terra colapsar?
-Eu tenho certeza que se você tivesse gosto por outra coisa, seu pai não impediria.
-Aí é que está, eu nunca tive a chance de ver se eu queria outra coisa. Você não se sente assim?
-Eu não.
-Não?
-Não, meu pai sempre disse que você e eu não precisamos ser como eles. Eu posso designar outra pessoa e cuidar por exemplo dos designs das lojas. Ou do perfil dos trabalhadores. Você sabia que algumas empresas fazem vagas falsas para mulheres? Isso é horrível e eu posso cuidar para que nunca aconteça na nossa.
-Tá vendo? Mesmo que você não queria ser a chefe, você está envolvida com a loja.
-É que é um pouco diferente.
-Em que sentido?
-Você é homem, é esperado que seu pai queira que você siga os passos dele. Eu estar a frente de qualquer coisa é meu pai dando voz para eu escolher, mesmo eu sendo uma garota. Outros caras teriam adotado um filho ou ficariam tentando até que a esposa engravidasse e tivesse um garoto.
Então, minha ficha cai. Ela pensa isso, mas o pai dela apenas não se preocupa porque ele quer que eu me case com ela e assim, de qualquer forma, o comando da empresa não mudaria. Primeiro sinto raiva, mas agora, eu apenas quero estar perto dela quando ela se decepcionar com o homem que ela mais admira. Eu fico em silêncio, nós dois observando os cisnes no lago, ela deita novamente a cabeça em meu ombro. Eu sinto o cheiro do seu hidratante. Acho que é baunilha.
-Sim! Eu adoro esse cheiro.
Só então percebo que disse em voz alta. Ela levanta a cabeça, olha para mim e sorri. Eu me aproximo de seu pescoço e respiro fundo.
-Eu também. - respondo.
Quando noto que a pele dela arrepiou, eu pego uma mecha do seu cabelo e enrolo no dedo.
-Eu também gosto da cor do seu cabelo.
Ela sorri tímida.
-Mas as sardas são horríveis.
-As sardas são lindas.
Então, eu a beijo.
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