Capítulo XX - Uma flor apenas cresce se regada
No decorrer de horas que escorrem como a água que cai de uma cachoeira retentora de um brilho cristalino sobre ásperas pedras que nunca esvai-se de uma inflexibilidade para manter-se em seus lugares, superior a do sol, que sempre eleva-se no manto celeste independentemente das circunstâncias, podendo apenas ser parado por Deus, que outrora interrompera-o à favor dos guerreiros de seu povo, uma conversa se estende entre os dois comerciantes que estão sentados em confortáveis poltronas beges na varanda do quarto de hotel do Mercador.
Depois de uma aparente eternidade, o sino de uma igreja não tão distante do hotel é o arauto da chegada do meio-dia. Yara suspira, finalmente há uma chance dela terminar por hoje todos os assuntos e o semblante cansado da moça ilumina-se com a esperança de um descanso.
- É a hora do almoço, é melhor fazermos uma pausa, eu ainda não comi nada hoje- ela sugere, levantando-se.
- Você não deveria ter ficado tanto tempo sem alimentar-se, cuide da sua saúde antes de trabalhar - o seu olhar é gentil e preocupado.
- Hehe, verdade. Eu já vou comer - ela sorri - Enquanto eu planejava a viagem, eu descobri que no hotel há um restaurante bastante intrigante... você aceita ir lá comigo? Parece ser bom, ele possui três estrelas Michelin - o seu corpo está inclinado para o lado do Mercador, apesar de sua postura rígida e tensionada.
- Aceito - ele levanta e dirige o seu olhar para um encapuzado que estava em um canto observando tudo desde o início - Reisender¹⁴, me espere aqui no quarto, eu voltarei mais tarde.
O andarilho ergue o seu rosto de tonalidade pálida como alguém que nem ao menos se lembra do calor do sol, parcialmente escondido por uma máscara posicionada na parte superior dele, e apenas consente movimentando a cabeça, sem proferir nenhuma palavra, de modo que balança suavemente os finos fios loiros dele, um provável lobisomem alemão - ele nunca revelara sua raça ou etnia, entretanto é o que deduzem.
A gentil sereia despede-se de Reisender com um belo sorriso enfeitando as suas feições, apenas por educação, não por possuir a mínima estima pelo "alemão", e atravessa a porta para o corredor acompanhada do Mercador, que colocara um longo sobretudo preto como uma obsidiana antes de sair.
Não se passa nem mesmo um segundo desde que Yara tocara o piso fora do quarto para quase ser derrubada pelo vulto esverdeado de uma loira de meia-idade que surgira como uma fumaça proveniente de algum erro na matrix, pulando em cima dela dando um abraço.
- Eu estou te procurando há dias! Por que você sumiu? - o movimento balança os seus longos vestidos tingidos de uma exuberante tonalidade esmeralda e fazem as ondas de seus cabelos esvoaçantes assemelharem-se com o movimento do mar.
- Cuca, você quase me matou do coração! - sua amiga sorri e interrompe o contato físico.
- Desculpe-me, desculpe-me - depois de perceber a presença do Mercador, ela chega perto da Yara - Ele é gatinho ein, não vou atrapalhar o encontro de vocês - sussurra, fazendo o rosto da sereia ser tonalizado com um rubor típico do verão -, volto outra hora, tchau - ela sorri e acena, indo embora, parecendo um pinguim de Madagascar.
- Tchau, nos vemos a noite - acena de volta, sorrindo.
Ambos prosseguem como se nada houvesse acontecido, o que a tonalidade rosada em suas faces denuncia ser fingimento, e sobem para o andar treze, onde está localizado o restaurante que certamente apenas as pessoas mais ricas do mundo poderiam pagar ao menos uma água comercializada por este estabelecimento.
Um garçom de ilustrosas vestes alvas como a neve e cabelos ordenados, negros como uma noite sem luar, recebe-os logo ao entrarem nesse restaurante que aparenta ter nascido de outro mundo, um mundo dominado pela riqueza e opulência. O piso lustroso reluz uma leve tonalidade dourada, como a brilhosa iluminação provinda das lâmpadas lapidadas em ouro, e sustenta as mesas esculpidas em pedras negras como as profundezas do oceano.
O garçom guia-os para uma das mesas, que devido ao fato de haver bastante clientes que chegaram mais cedo e reivindicaram os melhores lugares, o assento deles não concede a chance de contemplar o horizonte através da janela sem cabecinhas atrapalharem. Entretanto, isso não é um problema para um mundo onde existe apenas os dois.
- Hmmmmmm - o rosto dela está escondido atrás do cardápio, de modo que oculta parcialmente sua indecisão, que perdura por minutos. Depois, ela bruscamente coloca o cardápio na mesa - O que você vai pedir? - para evitar perder mais tempo, ela decide apenas fazer o mesmo pedido.
- Eu não estou interessado em comer.
- Por isso fica com essa cara de cansado, você deveria se alimentar adequadamente - coloca a mão na cintura.
- Não precisa imitar uma avó, eu apenas não estou com fome.
- Depois de tanto tempo assim?
- Eu estou bem.
- Tá bom... eu vou pedir uma sobremesa, mas qual delas?
Yara escolhe um esplendoroso castelo em miniatura esculpido em doces de variadas origens, sabores e aparências, como se tivesse nascido em um desenho animado ou sido construído por uma fada madrinha. Ao ser colocado em cima da mesa pelo garçom, o olhar da moça reluz como um prisma iluminado pelo sol que colore o ar com as vibrantes cores do arco-íris e ela ataca as guloseimas com todo furor existente entre os céus e a terra, todavia sem perder a classe de uma dama que ela nunca abandona.
Apesar de aparentar que cada interação da Yara com o castelo é despretensiosa, logo, qualquer um pode perceber que ela está apresentando um teatro musical com os bonequinhos que vive nele, adaptando uma fábula antiga que este cenário a fez recordar-se.
Era uma vez, uma rainha de alcaçuz, detentora de uma vida doce e repleta de mel. Ela era feliz ao lado de seu marido e os dois desfrutavam de toda a riqueza que o mundo poderia e não poderia oferecer. Tudo que eles tentavam fazer, era bem sucedido, ou pelo menos, os plebeus pensavam que funcionava assim e nunca percebiam que por trás de cada acerto sempre existiam mais de cem erros. Todavia as dificuldades nunca foi um problema, o rei e a rainha se amavam e nunca desistiam de seus sonhos... Nunca desistiam mesmo, talvez eles amassem mais as suas ambições do que um ao outro... Um dia, a rainha de alcaçuz empurrou o seu amado de um penhasco, onde havia apenas trevas e escuridão, uma profundeza abissal que a luz do sol é incapaz de alcançar; tudo isso, apenas como parte de um jogo político.
Assim que essa ordinária tragédia popular entre as crianças é contada para elas, e Yara transforma-a em suaves músicas que transitam entre o idioma dos absconditus e o português que são cantadas por uma hora inteira, e o Mercador aprecia a apresentação com a mais exímia atenção até a finalização.
- Pegue este doce, ele é de limão, acho que você vai gostar - ela oferece, e para sua surpresa, o Mercador aceita.
- Eu realmente gostei, você conhece bem minhas preferências.
- Doces menos doces combinam com emos.
- "Emos"?
- É uma definição brasileira para pessoas mais... digamos que... não sei explicar bem, é quase um sinônimo de gótico, mas usado mais entre amigos com um tom de brincadeira.
- Então você me acha emo? - ela ri - Por que você está rindo?
- Como disse, isso é usado mais como brincadeira entre amigos. Se você passar mais tempo aqui no Brasil, vai entender - o Mercador pega o celular dele para pesquisar o que é "emo" - Pretende comer mais alguma coisa?
- Não - ele desvia o olhar da tela.
- Entendido, eu irei pedir a conta e pagar os meus pedidos - ela sorri, possuindo um plano em mente.
Depois deles saírem do restaurante, Yara segura na mão do Mercador e guia-o para uma das varandas do hotel onde há apenas os dois.
- A brisa é agradável aqui, não acha? - ela tenta encontrar algum assunto ou sabe-se lá o que.
- Concordo.
- Perfeito para ficarmos juntos - ela aproxima-se do Mercador, apoiando a sua cabeça no ombro dele.
Enquanto isso, os dois simplesmente não sabem mais o que fazer, talvez apenas permanecerem em silêncio na presença um do outro seja a melhor opção a ser escolhida por ora. Apenas por ora, porque Yara possui os seus planos em mente desde um passado desconhecido, que talvez seja alguns minutos ou quem sabe... seja anos? Séculos? Milênios? Tá, ela não é tão velha assim, mas a espera para executar o ato final dele faz aparentar que a sereia aguarda desde antes da criação de Adão.
- Ah, tem lugares para sentar - depois de "despretenciosamente" fazer essa sugestão, ela se senta em uma das poltronas de estofado bege, esperando que o Mercador também se sente e ele age conforme ela imaginou.
Um pequeno sorriso de satisfaça surge em seu rosto e logo é extinguido, como a brevidade da vida de um tolo, então Yara se levanta e deita no colo do Mercador, com um leve rubor sobre sua face. Ele a encara com um olhar indecifrável, talvez como se a emoção dele fosse semelhante a sensação transmitida por uma melancolica melodia tocada em um violino e composta por Tchaikovsky. Yara aproxima-se do Mercador, eles podem sentir a respiração um do outro. Yara tenta prosseguir, entretanto ele, hesitante, desvia o rosto.
- Desculpe-me, eu não sei se eu deveria...
- Por causa do nosso trabalho? Por causa da instabilidade de nossas vidas?
- Tenho medo de te ferir, o futuro é incerto... - Yara interrompe-o de novo.
- Se formos separados, pelo menos por um dia já teriamos estado juntos. Eu não temo perder, eu temo nunca ter vivido.
Ambos aproximam-se, unindo completamente os seus corpos, especialmente, os lábios.
◇◇◇
Dois dias atrás
Uma crepitante chama de alegria e aconchego incendeia o coração de Cuca, que abre a porta de madeira rústica de sua cabana abandonada nas profundezas da floresta e retentora de aspecto semelhante à morada esfarrapada de uma bruxa pobre, estando radiante por ter comprado algumas ervas em uma farmácia próxima para realizar um experimento, o que a faz transbordar de entusiasmo.
Ela coloca a sacola em uma mesinha ao lado da porta e acende a lâmpada alaranjada da pequena cabana. Por sorte, a Cuca deixara suas compras em cima da mesa, se não, ela as derrubaria enquanto grita aterrorizada pela presença de um desconhecido em sua casa. Entretanto, quase que no mesmo estante, Cuca reconhece-o.
- Sua Excelência!?
- Perdoe-me pela ausência de cortesia provinda de minha parte. Em nosso país há inúmeras formalidades e regras de etiqueta, entretanto isso é válido apenas para desconhecidos e eu vim aqui como um amigo, por isso, tomei esta liberdade - ele se levanta e aproxima-se da senhora, levemente inclinando seu olhar para cima, fazendo contato visual com a Cuca.
- Há algo que o senhor deseja de mim? - diz sem entender nada sobre esse papo de "amigos", os dois nunca nem conversaram antes.
- Eu que ofereço-lhe algo de extremo valor. Por uma condição, eu perdoaria os seus crimes.
- Que crimes?
- Preciso citar todas as suas compras ilegais que tivemos acesso? - ele projeta uma tela de luz no ar, onde uma enorme lista dos crimes dela está registrada.
Os nervos tensionados nas feições de Cuca impede-a de possuir qualquer possibilidade de disfarçar a verdade e contestar o duque. Ela suspira, aceitando a realidade, e tenta desferir algumas palavras.
- Q-qual a condição?
- Auxiliar-nos a capturar a Yara.
- Ela é minha amiga - sussurra consigo mesma, abaixando a cabeça.
- E daí? Se a senhora não aceitar, serei obrigado a executar o mandato de prisão que tenho contra você - Cuca ergue levemente o seu olhar trêmulo, como se desejasse reunir determinação - Por eu ser um duque, não possuo tempo o suficiente para desperdiçá-lo, preciso da sua resposta agora - ele caminha em direção à porta, enquanto Cuca permanece paralisada.
- Espere!
- Decidiu?
- Posso entregar a minha resposta mais tarde?
- Depois que eu pisar no solo do bosque ao sair desta cabana, os policiais já possuem ordem de te prender caso a senhora ainda não tenha aceitado minha proposta - diz abrindo a porta.
- Está bem! Eu aceito!
- Boa escolha, amanhã o Erick virá ao seu encontro e ele te instruirá - Cuca suspira, quase falhando no simples ato de respirar - E não se esqueça, em nosso ducado, quando um absconditus é detido pelas autoridades por um crime de gravidade A ou B pela primeira vez, ainda há esperanças para ele, entretanto quando é a segunda vez... a senhora sabe o que acontece, então não tente nos trair caso possua alguma estima pela sua vida.
-
Notas de Rodapé:
¹⁴Literalmente "viajante" em alemão.
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