
XIX - Cúmplice
A viagem de automóvel de Los Angeles, na Califórnia, até Phoenix, no Arizona, durava aproximadamente seis horas, se a máquina fosse boa e se o tempo estivesse de feição. Das duas variáveis apenas podiam assegurar-se da segunda. Estava um dia magnífico de sol e de calor em setembro e meteram-se à estrada.
Cinco jovens adultos. Ao volante ia Mike que se revezava com o Joe, que ocupavam os lugares da frente. Atrás iam Chester, Brad e outro Joe, que era apelidado de Number Two, para não o confundirem com o primeiro que era o único e o verdadeiro, o senhor Hahn dos pratos mágicos.
Tinham dito ao Rob para se juntar a eles, mas o pai não o deixara vir. Ele era o mais jovem do grupo e ainda sofria muitas restrições, apesar de estar prestes a ser o baterista de uma banda com alguma projeção na cena musical da América, e talvez do mundo. O seu primeiro disco seria editado no final de outubro daquele ano 2000 e um primeiro single de apresentação, com a canção "One Step Closer", já estava a ser divulgado e conhecia uma aceitação razoável. Era engraçado ver o Rob a obedecer ao pai e a desculpar-se com a autoridade paterna para não alinhar nos encontros. Então, tinham convidado o Joe Number Two e esse não dissera que não a uma visita ao Arizona.
O Joe Number Two era um tipo dos computadores, como o Mike e o Joe Hahn, que se tinha juntado a eles através do Brad, que, por sua vez, o conhecera nos escritórios do Jeff Blue, o seu empresário, quando tinha aí estagiado. O Brad dedicava-se agora a tempo inteiro à guitarra, o Joe Number Two continuava a fazer os cafés para o Blue. Tinha a mesma idade que eles, vinte e três anos.
Iam, assim, os cinco pela interestadual número 10 em grande algazarra no carro emprestado pelo pai do Mike, para levar o Chester a casa. Antes de seguirem para a costa leste, onde os Linkin Park iriam apresentar-se em vários concertos, ele dissera que iria ver a mulher, ver o filho, passar o fim de semana com o pai. Como habitualmente fazia, apanhava o autocarro. O Mike tivera a ideia de o levar, de juntar aquele pequeno grupo. Se ele não se importasse, claro. O Chester adorara a ideia, ficava-lhe muito agradecido e assim conheciam o seu outro lado – a família, os amigos e tudo o que ele tinha no Arizona.
O autorrádio tocava música alta, os vidros iam abertos, mal se ouviam dentro do carro. Chester estava elétrico, não parava quieto um minuto, entalado entre o Brad e o Number Two. Contava piadas, berrava, cantava, ria-se às gargalhadas. Ao fim dos primeiros cem quilómetros, Mike desistiu de o acalmar. Observava-o pelo vidro retrovisor e sorria, encantado com a inesgotável energia dele. Chester estava feliz por levar os seus novos amigos consigo, por terem gravado um disco, por estar finalmente a ganhar algum dinheiro com a música. Todos receberam um adiantamento e havia a tal confiança de que iriam vender bem, a avaliar pelo single.
Fizeram duas paragens, em estações de serviço. Nessas paragens, o Mike tinha de telefonar ao pai e contar-lhe sobre o estado do carro. Era uma sucata velha bem conservada, bebia combustível à bruta e era necessário verificar constantemente o nível da água do radiador, pois o motor aquecia demasiado e podia estoirar no meio do caminho. Ninguém se queixava com os cuidados que era preciso dispensar à relíquia de quatro rodas. Era um automóvel e ter um automóvel próprio era o sonho de qualquer um deles, naquela altura. Menos do Joe, esse já era dono de um carro. Não o tinha trazido porque tivera de o emprestar a um outro amigo para aquele fim de semana, antes de saber que iam fazer aquela viagem e ele não desmanchava combinações, nem desfazia compromissos. Obviamente que ninguém lhe tirou satisfações das suas opções.
O percurso era longo e a animação não podia abrandar. As estações de rádio eram constantemente substituídas por cassetes que cada um tinha trazido, com a sua seleção de músicas, que refletia os seus gostos particulares. Metal, rap, grunge, música eletrónica, até pop delicodoce para aumentar o nível de troça. Toda a gente gritava e franzia o nariz e injuriava o mariconço que gostava de pop. O Number Two defendia-se como podia, até que descobriram que outra das cassetes pertencia ao Chester que os mandou a todos irem apanhar no cu, mostrando-lhes o dedo do meio das duas mãos, ao mesmo tempo. Apupos, assobios, palmadas, a tentativa de roubar beijos ao vocalista. Havia pernas e braços no ar, gargalhadas, uma histeria tal que o Mike teve de pedir que se acalmassem, por favor, ou não chegavam ao destino.
Mas chegaram. Phoenix era uma cidade bonita, bem ordenada, com arranha-céus no centro que se exibiam rutilantes sob a magnífica luz do sol. Seguiram as indicações do Chester, rolando pelas ruas que levavam ao bairro onde morava Lee Bennington, o pai dele. A reunião e o jantar iriam acontecer aí, pois a sua casa era um apartamento minúsculo, explicou, onde não caberiam todos. Estavam os cinco esfomeados. Tinham comido o lanche que trouxeram desde Los Angeles, compraram pacotes de batatas fritas e outros salgados nas estações de serviço que não lhes mitigou totalmente o apetite. Precisavam de uma refeição a sério. Chester disse-lhes, vaidoso, que a sua mulher cozinhava muito bem, que comeriam como reis naquela noite.
Para melhor mostrar o caminho, Chester estava agora sentado no banco do pendura, ao lado de Mike que conduzia. Apontava as esquinas onde deveria curvar e o seu braço tremia de alegria. Retirara a última das cassetes, devolvera-a ao Brad. Escolhera uma estação de rádio e disse que era aquela que gostava mais de ouvir, quando estava em Phoenix. Conhecia um dos animadores, de um programa noturno. Havia um amigo tatuador que tinha um primo que também trabalhava aí, mas não era animador. Chester estava nervoso e excitado.
Entraram num bairro típico da classe média, com casas sóbrias, de dois pisos, pequenos relvados à frente do alpendre, carros estacionados à porta das respetivas garagens.
- É aquela ali, Mike. Estás a ver?... Sim, aquela, da pequena cerca. Estaciona na estrada. Podes estacionar na estrada, ninguém passa aqui, meu. Sim, na boa. Não vais ser multado. Porra, estou a dizer-te que ninguém te vai passar a multa.
Uma nova canção começou no rádio. Os acordes de guitarra. O locutor mencionou que era um tema novo, de um grupo também novo e que lhe constara que o cantor era um rapaz local, da cidade de Phoenix. O Brad mandou os dois Joe se calarem, enchendo-os de cuspo quando fez "Chiu!". Mike e Chester entreolharam-se, o último rodou o botão do volume.
Era "One Step Closer".
Gritos dentro do carro. Mike estacionou, Chester abriu a porta e saiu a correr na direção da casa. Berrava numa enorme felicidade:
- Pai! Pai! Somos nós a tocar no rádio!! Somos nós!
Eram mesmo eles, os Linkin Park da Califórnia numa estação de rádio do Arizona. Estavam a saltar de estado, estavam devagar a conquistar a América. O seu som podia, naquele momento, estar a tocar algures no Ohio, ou na Virgínia ou mesmo na Carolina do Sul, eles não sabiam, mas era perfeitamente possível. Isso significava que a seguir à América era o mundo e seria como eles tinham sonhado que haveria de ser. A sua música a impregnar cada canto do planeta.
Lee Bennington, o pai do Chester, era um homem grave e recatado que trabalhava como agente investigador da polícia local. Chester entrara excitado pela casa adentro e quando lhe ligou o rádio portátil apenas conseguiu apanhar o fim da canção, quando berrava que se calassem quando falavam com ele, numa exigência visceral. O pai olhou-o com uma sobrancelha crispada. Era aquela a música que ele fazia com os amigos? Chester assentira e corara.
- Sim, pai.
E de seguida apresentou esses amigos. Mike, Brad, Joe Number One e Joe Number Two – sem mencionar que um dos compositores daquele tipo de música estava ali. Mike estendeu-lhe a mão, tratou-o por senhor, assim como todos fizeram. Os olhos reprovadores do homem saltitaram entre as cabeleiras coloridas do filho e dele. Amarelo e vermelho. Não teceu qualquer comentário, mas fora outra coisa de que não tinha gostado.
O jantar foi um churrasco montado no relvado das traseiras da casa. Os dotes culinários da Samantha, a mulher do Chester, resumiram-se, portanto, às sobremesas – que estavam bastante gulosas – pois foi Lee que voltou os hambúrgueres, as salsichas, as costeletas, com a ajuda do Joe Number One. Havia muita cerveja, mas o Chester não abusou nessa noite. Portou-se bastante bem, se não se contasse com o cabelo amarelo e o piercing que usava no lábio inferior.
Mike estava encostado à cerca de madeira que delimitava as traseiras das casas do bairro, a beber uma cerveja. Distraía-se com os seus pensamentos focados em novas melodias que ele trauteava em surdina. Estavam todos reunidos na cozinha, de pé em redor da mesa onde se dispunham as travessas e as tigelas com a carne assada, batatas fritas de pacote e os doces. Samantha era toda animação e congregava as atenções devido à sua personalidade barulhenta. Dizia piadas ordinárias, apalpava o cu ao Brad, ignorava o Joe, fazia-se desentendida das insinuações do Number Two e beijava o marido ostensivamente.
- Muito barulho para ti?
Olhou para Chester que se aproximava, com uma cerveja na mão.
- Só vim apanhar um pouco de ar – disse Mike. – Está muito quente ali dentro.
- O Arizona é mais quente que a Califórnia. Espero que consigam dormir, esta noite. O meu apartamento não é muito grande, mas o sofá é confortável. – Bebeu um gole de cerveja, hesitou. – Não ficaste chateado com o meu velho por causa do que ele disse da nossa canção?
- Ah... não. Relaxa, Bennington. Não fazemos música para os nossos pais.
Ele riu-se. O seu perfil desenhou-se na penumbra, silhueta iluminada pela luz fraca que se acendia perto da churrasqueira. Já tinha anoitecido. Houve um brilho que se desprendeu dos seus cabelos loiros e Mike travou a saliva na garganta. Chester era bastante bonito na sua simplicidade. Um rapaz normal, um vizinho do mesmo bairro. Pigarreou para disfarçar o calor repentino que lhe pressionou as virilhas.
- O teu pai é bófia, não é?
Chester contou-lhe que o pai investigava casos de abuso sexual a menores para o departamento de polícia de Phoenix. Mike afastou o gargalo da boca.
- Isso é a sério? Ah... Eh, diz-me. E ele investigou também o teu caso? É assim para o estranho ele investigar o caso do próprio filho. Quero dizer... isso pode acontecer? O teu pai envolver-se numa investigação relacionada com os seus familiares mais próximos?
- Ele não sabe.
- Não sabe?
Chester pôs-se a gaguejar.
- Ainda não. Nunca lhe contei... precisamente por ele investigar esses casos. Não sei se ele pode... 'tás a ver, ajudar-me. Provavelmente não, porque sou o filho dele. Teria de entregar a ficha a outro tipo. A um outro agente. Seria demasiado... não sei. Tinha de ir testemunhar, contar tudo... Rever o filme todo, 'tas a ver? E... era o meu amigo. Foi o meu amigo que... éramos colegas.
Mike queria encará-lo, mas Chester fugia do seu contacto visual e andava aos círculos. Teve de o parar, puxando-o por um braço.
- Chester, os amigos não fazem isso uns aos outros. O que te aconteceu não foi feito por um amigo.
As gargalhadas da Samantha preencheram aquele pequeno silêncio.
- Isso que fizeram contigo é um crime – insistiu. – Porra, sabes disso melhor do que eu. O teu pai investiga esse tipo de crimes. Tem de haver uma punição. Precisa ser feita justiça. Quem errou, deve pagar.
Chester baixou a cabeça. Disse, numa voz afogada:
- Eu sei... mas não consigo dar esse passo. É o meu pai... Tenho vergonha.
- Tens vergonha de contar o que te aconteceu e que se saiba?
- Só tu e o Brad é que sabem. E a minha mulher. – Mike arregalou os olhos. A Samantha não parecia uma pessoa a quem ele faria uma confidência. Mas era a companheira do Chester e ele não disse nada, não estava no seu direito lançar farpas no casamento do amigo. Chester prosseguiu: – Talvez um dia eu fale mais abertamente sobre isso. Mas agora... continua a doer-me. Por favor, não digas nada a ninguém. Se eu souber que andaste a bater com a língua nos dentes...
- Acalma-te. Eu não conto nada. E o Brad também não vai contar. Ei... estou aqui. – Bateu com a sua garrafa na dele, num brinde. – Estamos aqui para nos divertirmos, certo?
- Yeah... – Chester fungou. Estalou a língua, torceu o rosto num esgar pedante. – Ei, agora conta-me um segredo teu. Para isto ficar equilibrado. Quero conhecer os teus esqueletos no armário também.
Sem pestanejar, Mike disse-lhe:
- Não consigo tocar nos meus ombros.
Chester borrifou o gole de cerveja que acabava de colocar na boca.
- Foda-se! Estás a falar a sério?
- Hum-hum. Olha...
Mike pousou a garrafa no relvado maltratado, entre as pernas. Dobrou os braços pelos cotovelos e agitou os dedos no vazio, numa tentativa de alcançar os ombros, mas ficava sempre a milímetros do contacto. Movimentou as mãos de frente para os lados e nada de os dedos operarem a mecânica necessária que o deixaria apalpar essa parte do corpo.
- Nunca tinhas reparado?
- Não, meu! Isso é muito engraçado. Faz lá outra vez...
Mike repetiu o exercício e não conseguia, efetivamente, tocar nos seus próprios ombros.
- Parece que tens um campo de forças aí à volta que te impede de encurtar a distância. E se eu empurrar...?
- Não! – gritou Mike agarrando-se aos braços tatuados de Chester. – Não, por favor. Isso vai doer-me e ainda me deslocas um qualquer osso, dás-me cabo de uma articulação ou uma merda dessas. Já tentaram fazer-me isso um cento de vezes. Na escola, então, era um terror. Havia sempre algum engraçadinho que me esmagava os dedos e que me magoava ao ponto de eu gritar.
- Certo, meu. Certo! – admitiu Chester. – Eu não vou forçar nada.
Dançavam os dois, meio tontos, enganchados pelos braços, com Mike ainda a segurar-se no Chester. Riram-se e depois abraçaram-se.
- Estás bêbado, Shinoda?
- Claro que não, idiota. Só bebi duas cervejas.
- Eu também não. Não te aproveites...
Mike apertou-o contra si, comovido. Chester petrificou.
- Podes contar comigo – soprou ao ouvido dele. – Serei o teu melhor amigo, se quiseres. Um amigo como deve de ser, à séria. Sem merdas, sem segundas intenções.
- Yeah, Mike. Eu sei. Também sou teu amigo.
- Adoro-te, meu.
- Eu também.
Aquela posição era muito satisfatória, quase tão inebriante como uma boa bebedeira. Mike sentia-se bem, abraçado ao Chester. Nisto, o encanto quebrou-se. Empurrou-o num gesto seco. Apanhou a sua cerveja do chão e disse, sem olhar para ele:
- Agora, chega. Ainda julgam que nos andamos a comer.
Chester não disse nada.
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