Capítulo Vinte e Um
Rol Fisher:
Ajudei Owen com as tarefas necessárias, mas uma parte da conversa entre Carmuel e Theodore persistia em minha mente como uma incômoda e incessante névoa. O que Theodore sabia? As mãos tremiam de ansiedade, e a certeza de que ele possuía informações sobre a maldição dos So-jeff me atormentava.
Essa informação deveria ser protegida a qualquer custo, restrita aos mais íntimos da alcateia. A simples ideia de alguém de fora ter acesso a esse conhecimento poderia desencadear o caos no submundo. Apertei os punhos com força, sentindo as unhas marcando minha pele, uma tentativa desesperada de conter a ansiedade que ameaçava transbordar.
Despertar para a realidade daquilo que envolvia aquele lugar era uma loucura, uma busca desesperada por respostas em um turbilhão de incertezas. Imaginar o quão desesperador deve ser buscar esclarecimentos sobre algo que se torna parte intrínseca de si mesmo é perturbador.
Durante anos, ignorei tudo relacionado ao submundo, chegando até mesmo a negar minha própria natureza sobrenatural. No entanto, as palavras de Santiago ressoaram em mim, fazendo-me compreender que ambas as partes de minha existência eram únicas. Mesmo que eu desejasse esquecer a parte sobrenatural, ela continuaria a moldar quem sou.
Balancei a cabeça, como se pudesse afastar os pensamentos intrusivos para as profundezas de minha mente, na tentativa de manter o equilíbrio diante da tempestade de incertezas que se desenhava à frente.
— Rol? — Ouvi alguém me chamar.
Olhei para o lado, encontrando Tri e Alana sentadas na beirada do barco. Engoli em seco, e uma expressão de choque se formou em meu rosto.
— Tudo bem? — Alana perguntou.
— Estamos chamando você há um bom tempo! O que houve? Meu irmão fez alguma merda para você? Não vou entender o que se passa na cabeça dele nessa questão — Tri questionou.
Olhei para as minhas mãos, que tremiam de nervosismo e ansiedade. Meus lábios estavam ressecados, e ao observar meu reflexo na água, percebi que meu rosto parecia sem vida.
Dois pares de olhares frustrados foram direcionados na minha direção, o que me fez encarar minhas próprias mãos sem expressão alguma.
Já havia recebido olhares assim anos atrás, na casa dos Fishers.
Meus pais me olhavam com desprezo, assim como o resto da família, aguardando que, a qualquer momento, aquele garotinho que para eles era vulgar levantaria a voz e gritaria pedindo perdão por ser um beta.
Esse era o futuro que ninguém duvidava que aconteceria comigo. Nunca houve qualquer sinal de simpatia pelo jovem Rol Fisher, em quem todos já haviam perdido a fé de ser algo mais que um simples beta.
Fechei os olhos silenciosamente. Não entendo por que esse pequeno ato das duas ao meu lado acabou me fazendo lembrar disso.
Ponderei por um momento as opções que me foram apresentadas. Preciso esquecer meu passado e tudo que possa me ligar àquela família.
Deixei de ser um Fisher há muito tempo; devo parar de pensar que cada ato que alguém faz comigo é da mesma forma que eles faziam comigo.
Respirei fundo, tentando afastar as lembranças dolorosas que teimavam em ressurgir. Abri os olhos e encarei o horizonte, a vastidão do oceano diante de mim. O som suave das ondas batendo contra o casco do navio preenchia o ambiente, contrastando com a turbulência que eu sentia internamente.
As palavras de Tri e Alana, embora ditas com preocupação, ainda ecoavam em meus ouvidos. Eram como uma ferida que se recusava a cicatrizar, deixando expostas minhas vulnerabilidades. A sensação de não pertencer a lugar algum, nem mesmo entre os meus, persistia.
Lembrei-me dos olhares condescendentes, das palavras ásperas proferidas pela minha própria família. As expectativas mínimas que tinham de mim baseavam-se na condição de beta, como se essa designação fosse suficiente para definir minha existência.
As lágrimas ameaçaram brotar, mas as engoli com determinação. Não permitiria que essas lembranças me enfraquecessem. Ergui a cabeça, encarando Tri e Alana com uma expressão decidida.
— Não é nada. Apenas pensamentos que precisam ser deixados para trás — murmurei, forçando um sorriso.
— Não é o que parece — Alan disse.
— Devo concordar, está estranho demais. Pode contar — Tri disse calmamente.
Ergui os olhos, endireitando o rosto após ter decidido o que poderia fazer.
— Estou só pensando um pouco — falei calmamente. — No que irei fazer no futuro.
— Futuro, uma coisa bem difícil para as pessoas — Alana comentou. — Meus professores falavam muito sobre essa palavra, mas nunca pensei no que posso fazer além de ser uma guarda sobrenatural.
Tri riu debochada.
— Até parece que os guardas sobrenaturais iriam deixar um submundano se unir a eles com a proteção dos nossos mundos — Tri disse, e Alana suspirou. — Os guardas odeiam os submundanos. Se esqueceu do que aconteceu dezesseis anos atrás.
— Eu sei, mas esqueça, os guardas mudaram — Alana disse. — Eu acredito nisso.
— Cuidado — Tri respondeu. — Acreditar nos outros pode ser a coisa mais perigosa do mundo.
— Mas também não podemos abrir mão do que acreditamos só porque alguém acha que não vale a pena — Alana disse e se virou para ir embora. — Os guardas podem mudar, só precisam ver que eles e os submundanos são iguais.
Ela se afastou, e Tri havia ido embora, mas com uma expressão pensativa.
— Você não foi um pouco grossa — falei, e os olhos dela se voltaram na minha direção. — Só estou dizendo!
— Não podemos acreditar nas mudanças dos outros que durante anos sempre se acharam os melhores do mundo — Tri disse, e ficou um silêncio entre nós. — Mas o que você estava realmente pensando?
Travei e a encarei, que acabou dando de ombros.
— Estava pensando na maldição da sua alcateia — falei e esperei ela perguntar algo, mas nada aconteceu. — Não, vai perguntar como sei disso?
— Claro que não — Tri disse simples. — Sempre soube que um dos seus dons seria os olhos de Anúbis, que faz com que converse com os mortos. Também estava desconfiando nos últimos dias, já que às vezes via você conversando sozinho. Ainda mais quando soube sobre o caso da cela onde colocaram o Atila e o padrasto dele.
Ela apertou as mãos até as pontas dos dedos ficarem vermelhas.
— Você viu a minha mãe e o Valmir? — Tri perguntou, e lentamente assenti. — Sabia que eles não teriam feito a passagem para o além. Imagino que eles disseram para não me contar sobre isso no caso de eu tentar fazer alguma coisa.
Assenti.
— Agora estou ofendida. Sei mais do que ninguém que existe um tabu que jamais deve ser quebrado — Tri disse, e olhei para ela, que ficou um pouco triste. — Talvez eu já tenha pensado em fazer isso.
— Essa era a preocupação deles, mas não faça isso — falei. — Agora você pode me responder — e ela assentiu. — Sobre o que é essa maldição?
— Ninguém sabe ao certo — Tri disse, olhando para o horizonte. — Mas cada líder sempre enlouqueceu por causa dela. Ele fica com uma sede de sangue e mata todos que encontrarem à sua frente, e foi assim durante séculos até que uma profecia surgiu.
— Que fala sobre o santo dos So-jeff — falei, e Tri me olhou. — Sua mãe me contou, e ainda acha que eu sou aquele que vai quebrar a maldição.
— Talvez seja. — Tri disse seriamente. — Acredito mesmo que, minimamente, você pode ser esse santo, mas a pessoa que deve acreditar e provar que pode salvar a todos dessa loucura é você, Rol Fisher.
Olhei para ela e antes que respondesse, ouvi a voz de Carmuel chamando pela irmã.
Me virei, e ali estava ele, ainda mais irritado que o normal.
— Melhor eu ir ver o que ele quer — Tri disse e saiu andando. — Confie que pode fazer isso.
Assenti e voltei a olhar a paisagem.
************
Ficamos mais algumas horas em alto mar até que vi um portal, e quando passamos por ele, a imagem da alcateia So-jeff surgiu.
Com a visão aguçada, vi várias pessoas no píer, nos esperando, e Santiago ali parecendo ainda mais ansioso que o normal.
Assim que o barco ancorou no cais, pulei da borda e me joguei em cima de Santiago, que me abraçou com toda a sua força de um humano comum.
— Meu filho. — Santiago disse no meu ouvido. — O que houve com o seu rosto e pescoço?
— É uma longa história. — Falei, então vi as outras pessoas que gosto dessa alcateia.
Me agachei, e Átilas me abraçou pelo pescoço enquanto chorava e soluçava.
— Estou bem, pequeno. — Falei.
— Ele estava muito preocupado, não parava de chorar um minuto sequer! — Gred disse e bagunçou meus cabelos. — Santiago também não estava diferente.
Acabei rindo, e então meus olhares encontraram os daqueles que deveriam ser meus familiares, e me senti enjoado só de vê-los.
Minha irmã sorriu assim que reparou nas cicatrizes no meu pescoço e bochecha.
Me levantei e passei por eles, sem nem ligar para o que fariam.
— Não vai relatar nada para os outros. — ouvi a voz do meu pai. — Seu beta imundo.
— Carmuel, faça algo em relação ao seu escravo. — Kura disse, e tive que revirar os olhos.
— Com o que ele não tem mais a marca de escravidão, não irá me obedecer e muito menos vou fazer que ele faça algo disso contra sua vontade. — Carmuel disse, e essa última parte me deixou surpreso. — E eu que irei relatar as coisas para o pessoal da minha alcateia! Lembre-se, Fishers, só estou hospedando vocês por pouco tempo.
Me virei para ver Owen e Steven passarem por ele na minha direção.
— Onde está Theodore? — Minha mãe perguntou.
— Estou aqui, Senhora Fisher — Theodore disse, vindo ao lado de Alexandre. — Também devo anunciar que meu casamento com Rol Fisher será anulado.
Ver a cara de choque dos meus parentes foi arrebatador.
— Como não precisam de mim, então vou me tratar. Peço desculpas, mas acho que terão que terminar seus assuntos com Carmuel e Theodore. — Falei. — Santiago, Gred, podem vir comigo para me ajudar.
— Eu também vou — Tri disse, passando entre as pessoas. — Os outros também vão.
Veio puxando Alana, Alexandre e, atrás, o casal Machado com o filho deles.
Saímos daquele cais o mais rápido possível. Cada passo que nos afastava era como um suspiro de alívio, deixando para trás a tensão e o peso daquela alcateia So-jeff.
_______________________________
Gostaram?
Até a próxima 😘
Bạn đang đọc truyện trên: Truyen247.Pro