XI
— DIEGO... – Luanna chamou quando eu me preparava para dormir. Com as costas apoiadas no travesseiro, ela estava com um semblante tenso. Mexeu no cabelo e cruzou os dedos sobre o colo. — Você confia em mim? Confia de verdade?
— Amor, por que essa pergunta agora?
— Responde, Di.
Terminei de me vestir e deitei ao lado dela.
— Sim... eu confio.
— Certo. – Ela voltou a mexer no cabelo e por um momento pareceu mais interessada na ponta dos fios do que em nossa conversa. Eu já conhecia Luanna há tanto tempo que bem sabia onde iríamos chegar naquele ritmo.
— Lu, qual é o problema?
— Diego, a gente tá junto há cinco anos, e isso sem contar a época toda do colégio!, e... E você continua fechado. Continua estranho, calado... Depois que nós voltamos pra São Luís, parece que tudo piorou. Sabe, eu nunca me senti tão sozinha. E vê que eu pensava que quando estivéssemos de volta à nossa terra, perto das nossas famílias, as coisas iam melhorar... Não! Agora, com esse acidente, parece que quem tá destruído é você e não o carro. Poxa, fala comigo!
Eu não sabia como agir. Na verdade, nunca soube agir perante Luanna. Eu a amava e isso não podia ser negado. Mas os anzóis do meu passado, em especial a minha "não relação não concluída" com João Paulo, pareciam me puxar para longe da minha esposa. Eu me sentia preso às pedras de um passado que eu não conseguia esquecer.
Logo após o casamento, nos quatro anos fora do país, houve uma leve amnésia em relação à minha vida pregressa. Não sei se empolgado pelo casamento ou se pela oportunidade de viajar para vários países, ou mesmo pela companhia de Luanna, eu não deixei tais memórias voltarem e consegui construir momentos marcantes junto à minha esposa. Contudo, no fundo eu sabia que as pendências deixadas no Brasil ainda ecoavam no meu peito. Na volta, os ecos deixaram os limites das cavernas e explodiram por cada objeto, lugar e situação que me relembrasse do meu antigo amigo.
— Di, tem alguma coisa acontecendo? Alguma coisa que você quer me contar? – Luanna prosseguiu.
Engraçado como nosso padrinho de casamento havia brincado que o futuro de uma relação podia ser calculado pelo nível de sinceridade diante da primeira vez que surgisse a questão "você tem algo pra me dizer?".
"Enquanto certos casais passam a vida em uma espiral de mentiras a partir desse ponto, outros constroem confiança e cumplicidade", ele disse em um tom sério minutos antes de Luanna entrar na igreja. Em que ponto estávamos naquela noite, eu não sei afirmar. Mas confesso que não esperava que a pergunta brotasse tão cedo em nossa relação.
— É o João Paulo – respondi de uma vez.
— O... O João Paulo? – A princípio, ela não esboçou nenhuma reação (talvez não tenha associado o nome a alguma lembrança importante). Porém, quando tudo ficou mais nítido, uma expressão de surpresa tomou conta do quarto. — Meu Deus, o JP?! O nosso JP? Mas... Você... Você encontrou com ele? Ele está... Ele está aqui em São Luís?
— Não.
— Então, como...
— Lembra do acidente? Lembra que eu te falei sobre o tal senhor que estava dirigindo? Pois então: eu descobri que ele era o síndico do condomínio onde o João Paulo morava.
— Gente...! Nossa, que coisa... estranha... Parece aquelas coincidências de filme, sabe?! É incrível! Mas...
Ela parou e olhou para mim com tanta intensidade que eu me senti acanhado. Pela retina dela eu vi as engrenagens da mente se moverem para abrir portas enferrujadas pelo esquecimento. Recordações jorraram e, tive certeza, Luanna agarrou uma bem delicada que adubou a pergunta seguinte.
— Di, o João ainda te incomoda tanto assim? Eu achava que você tinha esquecido...
— Eu não posso esquecer. – O tom foi um pouco mais rude do que previ.
— Por quê?
— Meu Deus, que tipo de pergunta é essa? Você esqueceu que tudo o que aconteceu naquela época tem a ver com o João Paulo? Lu, quando ele desapareceu foi como se... – Fechei os olhos por um instante. "Não chore na frente dela!", meus pensamentos ordenaram. "Não ouse!" — Foi como se alguma coisa ficasse inacabada, sabe? Como um prédio que teve a construção paralisada e ficou lá, em ruínas, como uma carcaça assombrada...
— Diego, você foi a tantos analistas, tantos psicólogos, e... E nunca comentou nada disso comigo. Eu realmente pensei que você tinha superado isso tudo...
Senti raiva. Senti ódio. Raiva por ela simplificar tudo o que aconteceu e pensar que eu poderia apenas arrastar minhas cicatrizes para a lixeira e clicar em esvaziar. Ódio por ver que ela, mesmo ao meu lado há tanto tempo, não conseguia se colocar no meu lugar. Ódio de mim mesmo por nunca ter falado nada.
Não havia psicólogo, terapeuta ou analista que pudesse me fazer esquecer de tudo. Superar, sim. Esquecer, jamais. A cada despertar no meio da noite, eu me via sufocado por perguntas sem respostas que não envolviam apenas o paradeiro do João Paulo, a cirurgia ou a aparência que teria: envolviam, sim, o meu papel naquele palco. A angústia de saber que eu jamais encontraria a palavra "FIM" me enlouquecia.
Anos antes, quando fazíamos intercâmbio na Irlanda, cheguei a perseguir uma mulher que parecia uma versão adulta do João Paulo daquela foto de quando criança, vestido de menina. Confuso, eu andava nas ruas de olho no entorno na esperança de pescar vestígios de um olhar parecido, um sorriso tímido como o dele ou mesmo aquele jeito de mexer no queixo com a ponta dos dedos, mania que o João tinha desde criança.
Eu me via pelas ruas cercado por mulheres com potencial para ter sido o João Paulo em um passado distante e sentia ainda mais culpa, pois percebia que eu fora um amigo tão pouco confiável em relação a tudo que eu não sabia nem qual nome ele havia adotado após a cirurgia. De fato, eu nem sabia como me dirigir, como abordar o assunto ou mesmo se deveria falar coisas como "a mulher que ele virou". Ele sempre foi uma mulher e eu me martirizava por nunca ter sido um porto seguro para ela.
Nas vezes que eu ficava sozinho, sem ninguém por perto, eu fazia listas e mais listas de nomes femininos na tentativa de encontrar alguma relação de um deles com o JP. O esforço, é claro, nunca rendeu frutos. Quanto mais eu afundava nas minhas tentativas, mais eu percebia que em nossa amizade nunca existiu o essencial: confiança. Conversávamos sobre tudo, menos sobre nossas próprias vidas. Eu não sabia nada sobre a família do João, os gostos, anseios ou os planos para o futuro. Cada vez mais eu descobria ter sido um amigo horrível. Não era estranho eu falar com todos na escola, mas nunca ter ao menos tentado integrar o JP com as outras pessoas?
No dia do acidente de carro, quando cheguei em casa, chorei enquanto a água do chuveiro despencava sobre mim. Um milagre acabara de acontecer e, dezessete anos depois, eu teria minha chance de corrigir tudo. Cabia a mim levar isso adiante.
Levantei da cama e fui abrir a janela. Mesmo com o ar-condicionado, eu estava encharcado de suor. Quando o ar frio da cidade brincou com o gelado do quarto e eu consegui respirar, virei para Luanna com uma decisão formada.
— Eu tenho que encontrar o João, Lu. Eu... tô parado no mesmo ponto esse tempo todo, olhando pro retrovisor sem saber o caminho pra onde eu quero ir. Se eu não quebrar essa corrente, Lu, ela... Vai chegar o dia em que ela ou vai me enforcar ou eu mesmo vou fazer com que ela me enforque...
Naquele momento, Luanna olhou para mim não como esposa, não como mãe, não como irmã. Ela olhou para mim como amiga. Estendeu a mão e esperou. Senti um nó em minha garganta. Apesar de não ter sido criado em um ambiente conservador, é engraçado como os preconceitos que temos se revelam em momentos como esse. Na minha cabeça, até então, eu deveria ser forte pela minha esposa; deveria ser o bastião da casa. Fechei os olhos, deixei as lágrimas virem e afundei no afago de Luanna. Às vezes, só precisamos de um abraço para saber que ainda vale a pena lutar.
— Nós vamos achar ele, Di – Luanna se corrigiu. — Acharemos ela. Eu prometo. Nós vamos tentar o máximo que conseguirmos.
E, quando ela me beijou com lábios de lágrimas amorosas, rachaduras surgiram nos muros do meu passado.
***
NÃO, EU NÃO ESTAVA CONFORTÁVEL. Por mais que a mão estendida de Luanna fosse uma grata surpresa, lá no fundo havia uma desconfiança daquela ajuda. De certo modo, no auge do egoísmo e da ingratidão, eu tomava o "assunto João Paulo" como sendo apenas meu, algo que eu criara e deveria resolver sozinho.
— Por que você decidiu me ajudar? – perguntei dois dias depois, quando seguíamos para a nossa antiga escola. Diferente da cena no nosso quarto, envolta por confidências, a conversa dentro do carro tinha um distanciamento mais natural, ainda mais em uma manhã calorenta e empoeirada em meio ao trânsito caótico de São Luís.
— Culpa – respondeu com sinceridade. – Eu acho que, de certa forma, eu fui conivente com o que aconteceu ao João. Acho até que foi assim desde o começo...
— Mas você não podia fazer nada contra o Maycon.
— Será mesmo, Di? Será que a gente não deixou as coisas acontecerem por... Sei lá, vergonha? Por medo? Vamos falar a verdade: nós nunca apoiamos o JP. Reclamar da agressão e impedir o agressor são atitudes muito diferentes.
Um ônibus fechou o carro e por pouco não nos jogou ponte abaixo. A conversa foi cortada, mas a palavra "nós" ressoava como o martelo de um juiz pelo tribunal. Nós não fizemos. Nós não apoiamos. Eu não o ajudei. E, nesse turbilhão, uma nova pergunta surgiu no exato instante em que paramos em frente à escola: "O João Paulo quer me ver depois disso tudo?".
*
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