VIII
COMO A DRA. SARTTY PREVIU, EU RECEBI APOIO DAS PESSOAS. Para a minha surpresa, elas deixaram de lado o impacto que envolvera a escola naquele dia e vieram me abraçar de peito aberto, perguntaram sobre o meu estado de saúde, se estava tudo bem ou se eu precisava de algo. Porém, por mais caloroso que o colégio se mostrasse, toda essa acolhida não mascarava os olhares atravessados de alguns, especialmente do todo poderoso Maycon Finea. Seja com brincadeiras veladas, seja com esbarrões bem calculados, ele parecia disposto a esperar o tempo que fosse até me enfraquecer e abater no momento certo.
Poucos dias após o meu retorno e com o aumento gradual das ameaças, as conversas entre papai e eu e a Dra. Sartty e sua equipe aventaram a possibilidade de levar uma palestra à escola para esclarecer aos alunos sobre questões de gênero e sexualidade e alertar para a questão do bullying. Na semana seguinte, nós estávamos com a diretora da escola, Dona Flora, para apresentar a ideia, esclarecer sobre os assuntos que seriam abordados, os aspectos psicológicos, o período de descobertas e a importância de levar esse tipo de informação às pessoas. Após quase três horas de reunião, a diretora lançou uma ideia.
— Por que, ao invés de fazermos apenas um momento com os alunos de turma em turma, não promovemos uma palestra geral sobre o tema? Nós poderíamos trazer médicos, sociólogos, psicólogos como a senhora, talvez até outros pais pra conversarmos sobre o assunto. Poderíamos até divulgar com banners, cartazes, imprensa...
— Não! – protestou papai de imediato. — Eu não quero o João exposto desse jeito. Ele ainda é só um garoto pra lidar com toda essa pressão.
À menção da frase "ainda é só um garoto", notei um leve sorriso de sarcasmo nos lábios da diretora. Se havia algo realmente público e bem esclarecido no Colégio Pedro D'Ângelo era que Flora D'Ângelo, herdeira e diretora da instituição, era capaz de tudo para dar visibilidade à escola e, assim como das outras vezes, se isso significasse passar por cima dos alunos, do colegiado e dos pais, melhor ainda.
— Mas eu acho que isso iria era fortalecer o seu filho. Ele seria reconhecido, até aclamado pela coragem de se expor, de expor os próprios problemas para a sociedade. Imagine como o exemplo dele poderia mudar a vida de dezenas de pessoas?
— Eu não quero que ele seja exemplo pra ninguém. Eu quero que ele tenha segurança e seja respeitado.
— Mas como ele pode ser respeitado se o senhor mantém tudo às escondidas? Pai, olhe a importância que o seu filho tem! A missão dele para a sociedade!
— A senhora tem certeza de que é uma educadora, minha senhora?
A Dra. Sartty interveio, talvez já prevendo a briga que viria em seguida.
— Sra. D'Ângelo, eu entendo a sua preocupação com o lado informativo disso tudo, mas eu devo alertar que este é um caso delicado e deve ser tratado com calma. As pessoas não estão preparadas pra lidar com esse assunto. É um tabu. E digo mais: se pra um adulto já é difícil entender, imagine pras centenas de adolescentes da escola. Imagine, então, pra um menino de dezessete anos que, além de enfrentar todas as etapas do tratamento que nós lhe explicamos, praticamente vai ter que reconstruir o modo como ele viveu durante todo esse tempo e erguer a cabeça e enfrentar o preconceito? Ainda vai ter de suportar uma exposição desse jeito? Eu concordo, sim, com um ciclo de palestras, mas não tendo o João Paulo como ponto central. O ponto aqui é abordar o preconceito de um modo geral, com debates que envolvam diversas áreas.
A Sra. D'Ângelo ficou calada por um tempo, creio que tentando engolir as palavras da psicóloga. O olhar endurecido da mulher expunha em sua fronte a frase "minha escola, minhas regras". Quando ela levou a mão ao pescoço e mexeu com o pingente de pérola do cordão, um arrepio percorreu o meu corpo: por diversas vezes, eu ouvira histórias contadas pelos professores sobre as reuniões do colegiado e como eles passavam todo o tempo torcendo para a diretora não tocar na joia. Segundo eles, quando ela fazia tal gesto eles sabiam que a mente calculista da mulher trabalhava a todo vapor e logo uma flecha seria disparada boca afora. Quando ela começou a falar, percebi que aquela falsa tranquilidade poderia ser tão mortal quanto palavras ditas diretamente. Restava saber quem seria presenteado com a flecha...
— Tudo bem, eu concordo com os pontos levantados por vocês. Vamos então fazer um ciclo de palestras e abordar o assunto com toda a delicadeza necessária. Mas tem um porém: os professores vão querer saber qual a motivação pra essa abordagem tão repentina. Ainda mais sobre um assunto tão... polêmico... Querendo ou não, são apenas crianças. Isso pode influenciar, sabe...?
— Influenciar? Polêmico? – O rosto de papai avermelhou. — Pois eu acho que em uma escola que se importa com a educação dos seus alunos sempre é hora de conscientizar e levar informação, não é assim que funciona?
A Sra. D'Ângelo olhou para ele com toda a frieza possível e mostrou o seu sorriso mais falso.
— Muito obrigada pela dica, Sr. Gabrielli. Mas eu disse isso porque o calendário acadêmico não só já está fechado como estamos no fim dos trabalhos. É muito difícil inserir um ciclo de palestras assim, sem nenhum planejamento ou um motivo realmente forte. Eu posso até reunir o colegiado, mas eles não vão se convencer em mudar o cronograma por causa de um argumento desses. Ainda mais que, diante de um assunto tabu, como bem disse a doutora, alguns pais ficariam revoltados. Agora, se pensarmos no ano que vem, com mais cuidado, creio que seria mais fácil. Apesar de que ele nem vai estar mais na escola, então...
Papai deu um tapinha na mesa que eu bem sabia que era um claro sinal de impaciência. Virou-se para mim com um sorriso forçado.
— Então, que fique pro ano que vem. Ao menos, o caso do João não vai passar em vão e, quem sabe, ele mesmo pode vir dar um depoimento pros alunos, não é?!
Ele me olhou à espera de uma resposta imediata, já queria encerrar a conversa e sair da frente de Flora D'Ângelo antes que explodisse e destruísse aquela sala toda. Era mais do que óbvio que não haveria palestra nenhuma e muito menos qualquer campanha de conscientização.
Em um primeiro momento, eu estava disposto a aceitar a proposta e cheguei mesmo a pensar que seria o melhor a se fazer. Deixaríamos tudo como estava, eu teria paciência até o final do ano e, enfim, seguiria a minha vida. Mas foi aí que a imagem do Diego veio à minha mente e aquela coragem que só aparece nas horas erradas estourou dentro de mim e fez a frase que mudaria a minha vida jorrar boca afora.
— Eu vou convencer o colegiado.
Meu pai abriu a boca e voltou a fechar, o olhar intrigado voltado para mim. Junto à Dra. Sartty, a Sra. D'Ângelo sorriu e, talvez tenha sido impressão minha, pareceu ainda mais encorajada a brincar com o pingente de pérola. Por muitas vezes, anos depois, percorri o labirinto da minha mente em busca de um motivo para eu ter feito aquilo, mas sempre parava no mesmo ponto: Maycon. Eu queria dar a ele uma lição de solidariedade; uma tentativa de "vingança do bem" que, obviamente, não deu certo.
Depois daquele acesso de coragem, a Sra. D'Ângelo marcou a reunião com o colegiado para dali a quatro dias. Papai, a Dra. Sartty e mais dois médicos estariam lá para sustentar meus argumentos. No dia em questão, perguntava a mim mesmo onde estivera com a cabeça para causar tamanha situação. Ao pensar que faltava pouco tempo para o término das aulas, eu poderia estar livre de tudo sem aquele alvoroço. Contudo, ainda havia outras dificuldades.
Claro que, o fato de eu ter passado por uma longa reunião com a diretora na presença de médicos já era motivo de comentários pelo colégio e, com o vazamento sobre reunião semelhante diante do colegiado, eu entrei mais uma vez nas pautas de discussão da escola. Os cochichos furtivos se tornaram boatos, os boatos evoluíram para fofocas e, como um incêndio sem controle, o assunto ganhou tons de teorias da conspiração sobre o modo como eu, portando uma agulha escondida pela manga comprida do manto, injetei uma droga quase letal em Diego na hora que ele estava deitado no meu colo durante a performance. Portanto, os médicos estariam ali a mando dos meus advogados para convencerem a escola a abafar o caso perante a imprensa.
Em outras palavras, de "simplesmente esquisito" passei a um "terrorista químico extremamente perigoso".
No colegiado, recebi o apoio dos professores e coordenadores (além de irritantes olhares de pena), e o ciclo de palestras foi aprovado para o final do ano, durante a última semana de aulas. Com tudo o que aconteceu depois, percebi o quanto a minha escola (e provavelmente qualquer outra do país) não estava preparada para lidar com uma situação daquelas.
Erro após erro, meu futuro foi sendo costurado com um espinho dolorido.
Talvez solidarizados com a minha situação, os professores começaram a me tratar de forma diferenciada. Faziam questão de me chamar para responder a coisas banais durante as aulas, apontavam-me como estudante exemplar ou, do nada, vinham falar comigo com cara de preocupação. Não os culpo por isso, afinal, não era uma situação fácil ou corriqueira a que estavam acostumados, mas tamanha exposição fomentou ainda mais desconfiança por parte dos alunos e o aumento da pressão para revelarem o que acontecia comigo.
Aos trancos e barrancos, consegui desviar dos ataques até o dia em que caí. Em uma conversa corriqueira, um dos professores comentou o assunto com a esposa. Ela comentou com uma amiga, essa amiga comentou com a família, cada parente comentou com outras pessoas e, sem freio, a história sobre "a coragem do garoto transsexual do tradicional Colégio Pedro D'Ângelo" chegou aos ouvidos dos pais, ganhou as redes sociais e fugiu do controle até alcançar os alunos. Daí para o meu nome ser associado ao fato foi um pulo.
E a reação veio mais rápido do que eu esperava.
***
— E AÍ, PAULETE? TUDO BEM? – Gelei ao ouvir a voz de Maycon vir em minha direção. Eu estava no jardim no fundo da escola, naquela habitual mesa escondida pelos arbustos, curtindo minhas músicas. Ele chegou acompanhado de mais três garotos.
— Me deixa em paz, Maycon.
— Opa, opa, opa! A menininha criou coragem? – ele desdenhou e sentou-se em um banco à minha frente enquanto os outros nos cercavam. — O colégio todo já sabe, Paulete. Confessa logo.
Fiquei calado. Tenso. Passamos um tempo em completo silêncio. Maycon me observava com um trunfo nas mãos. Era um atirador com o alvo na mira, sem escapatória. Eu só conseguia me questionar o que eu havia feito pra ele. Olhei para longe na esperança de alguém passar. Torci para minha voz sair e eu conseguir gritar por socorro. Engoli em seco. Como um ser superior, Maycon se levantou e tirou o celular do bolso.
— Nós demos uma chance pra ti, mas, sabe, eu sempre me perguntei por que essas roupas largas, esse esconde-esconde todo. Acho que todos merecem a verdade, né não?!
E, a um sinal dele, eu me vi agarrado pelos braços, imobilizado e com a boca tampada. Maycon tirou um canivete do bolso, sacou a lâmina e aproximou-se com um sorriso de orelha a orelha. Em cada sonho, em cada lembrança, ainda ouço o canivete rasgar o tecido das minhas roupas e deixar um risco da minha barriga até o pescoço. Ainda sinto o sangue escorrer pelo meio das minhas pernas. Fecho os olhos e os olhos de Maycon saltam sobre mim na escuridão junto com aquela corda e o frasco de tinta. Ainda sinto mãos puxarem minhas calças, outras sujarem meu corpo e tantas mais amordaçarem minha boca e amarrarem meus pulsos. Ainda hoje eu me vejo preso àquela amendoeira e lacrimejo diante dos flashes dos celulares.
Em segundos, o WhatsApp se encheu com a minha imagem, nua, rosto manchado e flechas pintadas pelo corpo, pulsos amarrados para cima e o nome "Paulete" pintado na testa. "Eis São Sebastião", dizia a legenda.
Terminaram a sessão de fotos e as agressões tiveram início. Não durou tanto quanto queriam, pois logo os professores identificaram o lugar e correram ao meu resgate. Mas eles tiveram tempo para bater e machucar a minha alma. Eles cuspiram no meu rosto, urinaram sobre mim e, ao escutarem vozes pela escola, deixaram-me lá. Naqueles minutos de solidão, sem forças, envolta em chamas, banhada pela humilhação, eu renasci antes mesmo de vir ao mundo.
*
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