V
ACORDEI SEM AR, ENVOLTO PELA ESCURIDÃO DO MEU QUARTO E SURPRESO POR ESTAR EM CASA. Ainda meio zonzo, tateei pela escrivaninha até encontrar o meu celular. Quase dei um grito quando vi a hora: quatro da manhã de domingo. Tudo não passara de um sonho. Eu tinha mais de vinte e quatro horas para reorganizar minha mente e preparar meu espírito para a inevitável apresentação na segunda-feira. Sem conseguir voltar a dormir, o jeito era encaixar as peças do jogo que eu mesmo acabara de criar.
Se viessem me perguntar o que me transtornava mais naquela época (se o nosso primeiro beijo, aquele sonho ou a reação de João Paulo diante das minhas perguntas), eu ficaria com a segunda opção. O beijo poderia ser taxado de "experimentação", enquanto a reação dele, apesar de também me assustar, já era de certa forma esperada – ou eu assim acreditava. Por outro lado, a performance do dia seguinte era ali, era real e, se levarmos em consideração o nível de intimidade da cena, comprometedora. Qualquer deslize, qualquer erro, qualquer olhada diferente poderia ser fatal. Com todos os boatos com os nossos nomes, isso poderia consolidar suspeitas e gerar conclusões equivocadas.
Como se não bastasse, ainda havia a minha situação depois do beijo dado em João. Diante das outras pessoas não seria difícil esconder o ocorrido e fingir normalidade. Mas e quando eu estivesse cara a cara com ele? Conseguiria manter o sangue frio a ponto de parecer tranquilo? Eu seria um bom ator? Essas e outras questões continuaram a florescer até serem pulverizadas pela claridade quando meu pai abriu a porta do quarto. Ele fez uma cara engraçada ao me ver acordado.
— Nossa, já está acordado? Caiu da cama, rapaz?
Fechou a porta e tornou a deixar o quarto na penumbra. Aproximou-se da cama e sentou-se em uma cadeira próxima. Puxou ar. Eu conhecia papai muito bem, conhecia cada um daqueles gestos. Já sabia que eram o indicativo de uma saraivada de perguntas.
— Filho, tu está sentindo alguma coisa?
— Não...
— Certo. – Ele cruzou as pernas e estalou os dedos das mãos. — Olha, Diego, eu não quero me meter na tua vida e tu sabe que eu nunca tentei fazer isso. Por mais que a tua mãe insista para eu fazer, eu nunca achei certo, entende? Principalmente porque o meu pai tentou fazer isso comigo e eu sei o resultado que deu.
Balancei a cabeça. A pressão sobre o meu pai quando ele era adolescente foi tamanha que, ao chegar ao limite da paciência, ele brigou com meus avós e saiu de casa muito cedo. Chegou até a viver pelas ruas para não voltar a morar com os dois e seguir um destino que afirmava não ser para ele.
— Eu vivi tudo aquilo e sei muito bem como é horrível viver pressionado por todos os lados, sem poder seguir os próprios sonhos ou ter a confiança dos pais. Mas... – Ele passou a mão no rosto e me observou por um tempo. Procurei sustentar o olhar para demonstrar calma, mas cada músculo do meu corpo se contraía de tensão. — Diego, eu espero... Não. Eu esperava que tu confiasse na gente, sabe? Não pra contar segredos ou coisas desse jeito. Nada disso. Mas ao menos que nossa presença, nosso colo, filho, que eles servissem como porto seguro. E não o cimento de uma praça na madrugada. Poxa, Diego, nós ficamos desesperados! Tua avó até passou mal. Ainda bem que o João Paulo ligou e explicou tudo.
Eu não tinha contra-argumentos. Minha vergonha era tanta que pensei em cobrir a cabeça com os lençóis e desaparecer. Mas uma questão bem mais importante me aguçou: que tipo de "segredos ou coisas desse jeito" eu teria para revelar? Que "tudo" era isso que JP tinha "explicado" aos meus pais?
— F-Foi o João quem avisou vocês?
— Sim, e quem mais seria? Tu derruba as coisas das casas dos outros, bate as portas, quebra o portão do prédio e acha que as pessoas vão reagir como? O João tava muito preocupado. Eu diria até assustado pelo jeito que ele ligou pra cá. Afinal de contas, o que foi que aconteceu?
Paralisei. Na verdade, todo o meu corpo parou. Tentei raciocinar, mas o meu cérebro também havia desligado, deixando-me feito um idiota despido pelo olhar curioso do meu pai. Quando o sangue voltou a circular pelas minhas veias, eu respondi com um singelo e idiota "nada".
— Nada, Diego? Deixa eu ver se entendi: tu estava fazendo trabalho na casa do João Paulo e, de repente, pensou: "Por que não quebrar tudo e depois fazer um cooper até o parque"? É isso mesmo? – Mais uma vez eu fiquei calado e fiz a paciência do meu pai começar a desmoronar. — Sabe qual é o problema de ser um delegado tão metódico como eu, Diego? É que eu não sossego enquanto não resolvo um problema. É mais ou menos como um bilhão de pontos de interrogação me espetando, querendo uma explicação. E, quando o meu próprio filho, que nunca me deu trabalho, simplesmente me aparece jogado no meio de uma praça, sujo e chorando, aí é impossível separar o pai do delegado, concorda?
— Pai, eu não lembro de quase nada...
Pensei que ele iria continuar o sermão, mas, ao invés disso, levantou-se e andou pelo quarto. Eu nunca o vira daquele jeito. Papai era um homem sereno e que não demonstrava nervosismos ou ansiedades. Minhas lembranças dele sempre foram de alguém assertivo e capaz de resolver tudo. Mas, naquela manhã, no meu quarto, eu descobri um ponto fraco dele: a preocupação comigo. Após uns dez minutos, ele parou e olhou para mim, a severidade em cada traço.
— Está ótimo, Diego. Eu não vou te forçar a me contar nada. Vamos ver... Vamos ver.
E, sem finalizar a frase, ele saiu.
Aquilo me preocupou. Da última vez, quando eu ainda era criança e escondi os pedaços de uma vasilha que quebrara sem querer, ele só faltou interrogar os vizinhos para descobrir a verdade – confissão que conseguiu ao desmontar minha bicicleta e ameaçar jogar tudo fora se eu não assumisse o erro.
Papai não deixava nada sem resposta.
***
— CADÊ O PAI? – perguntei ao descer e encontrar o lugar dele vazio à mesa do café da manhã.
— Não sei – respondeu mamãe no meio de uma garfada da omelete. – Ele saiu apressado e agora que você falou eu acho que estava...
— Só de pijama! – cantarolou vovó com ar zombeteiro. Saboreou a torrada e refletiu. — Que situação. Que família é essa, meu Deus?! Meu filho faz uma travessura própria da idade e eu, o pai, faço o quê? Dou uma lição? Não! Boto de castigo? Não! Faço coisa melhor: saio de ceroulas no meio da rua. É a visão do inferno!
— Mamãe, por favor! A situação é séria!
— Imagine se não fosse...
Minha mãe se virou para mim.
— E você, não vai falar nada? Que história é essa de dormir em praça? Depois de grande decidiu se revoltar?
Eu me preparava para a saraivada de perguntas recheadas com muito drama de mamãe quando escutei o portão da garagem ser acionado e o carro entrar. Segundos depois, triunfante, papai surgiu (de pijama!) com João Paulo ao lado, tão alarmado quanto eu.
— O circo chegou na cidade / Quero ver a macaca fumar! / O circo chegou na cidade / Quero ver a macaca fumar!... – Vovó saiu em cantoria para buscar mais uma xícara. Enquanto isso, papai ocupou o lugar costumeiro à mesa e fez um gesto para JP se acomodar. Mas quando João fez menção de se sentar perto de mamãe, papai interveio.
— Não, não. – Apontou para o lugar vazio à minha frente. — Eu prefiro que o senhor se sente bem aqui, por favor.
Vovó retornou com a xícara e voltou correndo para a cadeira onde estivera tal qual uma criança na expectativa para o início do programa preferido na TV – no caso de vovó, Casos de Família. O melhor é que dessa vez seria ao vivo, ali, na frente dela. Um sonho realizado.
Já mamãe estava tão branca quanto a toalha da mesa.
— Renato, hoje é domingo. São sete da manhã, Renato! – Ela se virou para João. — Nada contra você, querido. Você sempre é muito bem-vindo para tomar um café da manhã com a gente.
— Isto é uma acareação.
— Isto é uma casa, Renato! Uma casa! Pelo amor de Deus!
— Tá, tá. Fique aí com a sua visão sobre a vida. Mas, bom, vamos ao que interessa: senhor João Paulo (vulgo JP), por que o senhor Diego (vulgo meu filho) saiu correndo da sua casa ontem à noite?
Até hoje eu não acredito que aquela cena aconteceu: o meu próprio pai disposto a destruir a minha vida. Lembro-me de que pensei em jogar café no rosto pra me certificar de que eu estava acordado, mas desisti quando João, cabeça erguida e olhar fixo nos olhos de papai, falou em tom de tranquilidade.
— O Diego me beijou.
Sabe quando você sonha que está voando, leve e serelepe e, de repente, acorda e descobre que está é caindo da cama? E dá aquele frio na barriga? Pois foi essa a sensação que eu senti, só que multiplicada por cinquenta. Olhei para os outros à mesa. Enquanto mamãe e papai tomavam goles exagerados de café para tentar disfarçar o susto, vovó pegou uma maçã e deu uma mordida, soltando um sugestivo "huuuum!".
Contra o silêncio constrangedor, JP continuou naquele mesmo tom de voz.
— A gente estava ensaiando para a peça de amanhã no colégio, sobre a obra La Pietà, do Michelangelo. O senhor conhece? – Papai balançou a cabeça negativamente, como se estivesse no automático. Parecia meio zumbificado com aqueles olhos estáticos e expressão tola no rosto; mamãe estava pior. — Ah, que pena... Bom, basicamente é uma escultura de Nossa Senhora com Jesus Cristo no colo logo após a descida do corpo da Cruz. Nós fizemos algumas adaptações, é claro, e ao invés de Maria teremos um apóstolo fazendo o papel. Pra resumir a história toda, o engraçadão do Diego decidiu zoar tudo e me deu um beijo, destruindo o ensaio e me deixando com raiva. Eu preciso muito dessa nota, sabe? Aí a gente acabou brigando, eu disse um monte de besteiras, ele disse outras e... deu no que deu.
Naquela hora, eu soube que tiraríamos uma excelente nota. Ali estava um ator nato e preciso, sem hesitações ou meias palavras. Aquele era o "método João Paulo" de atuação: jogar a verdade na cara para desarmar as pessoas de imediato, misturar as mentiras com os fatos reais, bater tudo e servir acompanhado de voz firme, olhar fixo e respiração controlada. Ou, para resumir tudo: enfraquecer a verdade e jogar toneladas de estrume por cima.
Decepcionada com o espetáculo que não aconteceu, vovó largou a maçã de lado.
— Só isso?
— É – confirmou JP já com um pedaço de bolo na mão. Não sei se foi impressão minha, mas notei as mãos dele trêmulas apesar do rosto risonho.
Meu pai se virou para a sogra com uma expressão indignada.
— E o que a senhora esperava?
— Ora, não se faça de besta! Tu sabe muito bem o que acontece nessa idade. Vai dizer que tu nunca fez troca-troca com algum colega?
Fiquei da cor da maçã que vovó acabara de largar. Na minha frente, João Paulo engoliu o pedaço de bolo de uma só vez. Não sei como não morreu engasgado.
— Tá, chega! Acabou o assunto, não é, Renato?! – indicou mamãe ao se levantar e começar a tirar as xícaras dela e de papai.
— S-Sim... Mas ainda tem uma coisa: o senhor causador disso tudo não vai falar nada?
— O que o senhor quer que eu fale?
— Você confirma a história?
(Que pergunta ridícula...)
— Sim, eu confirmo!
— Precisava ter saído daquele jeito?
— Não, pai, não precisava... Eu errei. Fiquei... transtornado. Essa é a palavra?
— Pois eu espero que não volte a acontecer, hein, rapaz transtornado? Da próxima vez, Diego, eu faço você passar uma noite na prisão pra aprender...
— Renato!
— Ah, eu só tô brincando, mas que coisa chata! – Papai saiu da mesa, mas parou no meio do caminho e virou-se para nós dois. — Façam as pazes.
— Tá, pai, a gente vai fazer...
— Agora.
— Pai...
— Renato, deixa os meninos!
— Não, senhora. Sr. João Paulo?
— S-Sim, senhor...
— Levante! – João Paulo atendeu de imediato. Por pouco não caiu por sobre a mesa. — Diego, te levanta.
— Pai, não é...
O olhar dele quase me queimou à simples menção de uma recusa. Não tive escolha.
— Muito bem. Já que os dois agiram como crianças eu os tratarei como crianças. – Papai já era conhecido por esse discurso. Certa vez, na delegacia, eu o vi fazer a mesma coisa com dois traficantes rivais, inimigos até a alma. — Deem as mãos e se abracem.
Sem jeito, demo-nos as mãos e nos abraçamos. Satisfeito, meu pai saiu assobiando, com mamãe em seu encalço.
— Não teve graça... – afirmou vovó ao passar por nós. – Faltou um fogo!
E desapareceu pelo corredor.
João Paulo não se segurou e caiu na gargalhada. Eu também sorri e logo nós dois estávamos sem fôlego.
Nossa amizade não tinha morrido.
Ainda...
***
NO DIA SEGUINTE, FRENTE ÀS DEZENAS DE PESSOAS QUE ABARROTAVAM O ANFITEATRO DA ESCOLA, LÁ ESTÁVAMOS NÓS DOIS NO PALCO: eu desfalecido no colo de João Paulo, enquanto ele, caracterizado como um apóstolo, declamava toda a dor e o sofrimento perante a perda do mestre. E foi então que, já no final, com as pessoas aplaudindo de pé como no sonho, eu abri os olhos e encarei o rosto de João a poucos centímetros de distância. Eu conseguia sentir a respiração dele, o cheiro engraçado de perfume misturado ao fedor da barba postiça fornecida pela escola. E, quando os olhos dele pareceram mergulhar dentro dos meus, eu percebi que estava paralisado.
— Diego, levanta! A gente tem que sair do palco! – ele sussurrou em um misto de riso e preocupação.
— João, eu não tô sentindo meu corpo... Eu não consigo me mexer...
— Cara, para de brincadeira...
Essa foi a última frase da qual eu me recordo por completo. O resto das ações veem como ecos de uma memória que não parece ser a minha: o pedido da professora para sairmos do palco, o choro de João Paulo, a gritaria das pessoas, sirenes, luzes, correria e, por fim, escuridão.
*
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