IX
MUITO TEMPO E QUILÔMETROS SE PASSARAM DESDE AQUELE DIA. A cirurgia foi realizada, tratamentos feitos e refeitos. Meu cabelo caiu, cresceu, mudou e voltou a sumir. Em meio às incertezas, mamãe e vovó plantaram um ipê roxo no quintal lá de casa na promessa de que eu o veria florescer. A palavra "superação" passou a acompanhar o meu nome e, no retorno à minha vida cotidiana, transformou-se em um elemento significativo para o meu currículo. A árvore cresceu e floresceu por vezes e vezes além das minhas lembranças, mas, junto a ela, também passei pela morte da minha grande confidente e protetora. Consegui me reerguer e superei os obstáculos seguintes, terminei a faculdade e cheguei ao ponto de ser o engenheiro que tanto almejei.
Em cada um desses momentos, Luanna me ajudou a carregar os fardos. Não raro, devo admitir, ela os carregou sozinha e escondeu muita coisa para não me abalar ainda mais. Portanto, quando a pedi em namoro e, anos depois, em casamento, a todos pareceu o caminho mais natural a ser tomado.
A todos, menos para mim. Eu senti que ainda faltava algo a ser resolvido, uma velha dúvida teimosa, algoz implacável, companheira desagradável mesmo após todas as atribulações em minha vida. Por mais que eu mentisse para mim mesmo dizendo que essa angústia não passava de uma curiosidade sobre a vida dela, no fundo e muito bem escondido eu sabia ser algo acima disso. Sinceramente, pouco me importavam questões físicas ou detalhes cirúrgicos. Eu queria apenas um motivo para aquele sumiço. Mais ainda, eu gostaria de saber para onde fora nossa amizade.
Ao voltar para São Luís, sem alarde, comecei uma busca por notícias e, após meses malsucedidos, idas infrutíferas ao hospital onde JP começara o tratamento hormonal e dezenas de perguntas a ex-vizinhos e conhecidos, descobri que ele e o pai eram mais fechados do que eu previa. Ambos fizeram questão de partir sem deixar lembranças. E aqui entram as ironias da vida: quando desisti da busca e aceitei a ideia de continuar a vida sem respostas, o destino (de novo) decidiu me ajudar.
Talvez tenha sido fé além dos limites. Talvez, apenas uma coincidência sem precedentes. O fato é que eu não deveria estar naquela avenida àquela hora do dia. Com a mente direcionada para pensamentos diversos, eu errei o caminho sem notar, pisei no acelerador e, quando despertei dos meus devaneios, o máximo que pude fazer foi enterrar o pé no freio e torcer para o estrago no outro carro não ter sido tão grande.
"Que merda!", pensei enquanto retirava o cinto de segurança e tentava parar de tremer.
O carro à minha frente, um sedã branco e aparentemente novo, estava com todo o porta-malas amassado. Pode-se dizer que havia se transformado em um modelo compacto de quatro portas. Desci, passei pelas colunas de fumaça cuspidas pelo motor do meu carro e, temeroso, aproximei-me do outro veículo já preparado para uma onda de insultos. Quando a porta abriu e um senhorzinho de cabeça branca saiu meio cambaleante, fiquei ainda mais preocupado. Corri para ajudá-lo.
— Meu Deus, o senhor está bem? Está ferido?
Ele se virou em minha direção, ergueu um dedo, apontou bem no meu rosto com cara de bravo e deu um sorriso meio torto. Depois, levou o dedo à boca e pediu silêncio.
— Psiu... Eu tô muito bêbado! – sussurrou antes de despencar na calçada e ficar lá, deitado com as mãos cruzadas sobre o peito como se fosse um defunto.
— E-Eu... Eu vou chamar uma ambulância...
— Chama quem tu quiser! Não tô nem aí. Só não chama minha mulher, hein! Ela não. Se aquela vaca desgraçada me vir desse jeito eu apanho de cinto... E eu choro, choro sim...
Eu não sabia se ria, corria, morria ou chorava. Tornei a olhar para o carro dele para me certificar de que não havia batido em alguma ambulância do sanatório. Liguei para o SAMU e para um guincho. Estava com ódio de mim mesmo por nunca ter feito o seguro daquele carro. Ao terminar as ligações, não tive outra saída a não ser me sentar ao lado do pseudo-morto.
— O senhor não quer mesmo que eu ligue para alguém? Um... filho? Um amigo?
— Não, não! Não – respondeu ele, ainda de olhos fechados. — Ou melhor: liga sim! Liga aí pro Orelha e diz que eu morri pra ver se ele para de me cobrar... Orelha, seu filho da puta! Sabe o que ele fez? Tu sabe? Disse que eu não virava a garrafa! Mas eu fui lá, virei e ainda quebrei a desgraça no chão! Sou afrontoso, eu sou!
"Que cena ridícula...", pensei ao ver um carro passar e de dentro dele receber olhares risonhos diante daquela sessão de terapia alcoólica. O sol daquele início de tarde fazia o calor emanar do asfalto e deixava a situação ainda mais insólita.
— Acho que eu tenho um guarda-sol no porta-malas, se o senhor quiser...
— Não, não precisa. Eu gosto de pegar sol, sabe?!
— Mas eu não posso deixar o senhor torrando nessa calçada! Eu vou buscar.
Levantei-me e já ia em direção ao carro quando ele disparou a frase que me deixou intrigado e fez minha mente reviver uma antiga cena do meu passado.
— Ô garoto, volta, seu maluco!
Eu já ouvira aquela frase antes. Voltei e olhei para ele na tentativa de absorver qualquer fragmento que me fizesse lembrar daquele rosto. A lembrança já estava prestes a se moldar quando o som de sirenes cortou o ar e um carro da polícia parou seguido por uma ambulância. Segundos depois, uma mulher saltou aos trancos e barrancos e veio ao nosso encontro. Estava aos berros.
— Ô Fontes! Ô Fontes... Por que tu faz isso, homem de Deus? De novo, Fontes? De novo?! Será possível?!
— De novo, não. De velho! – corrigiu Fontes ainda na mesma posição cadavérica. — E não fala comigo... Eu estou meditando.
— Que meditando o que, homem de Deus? Olha como tá meu carro! Tanto trabalho... Pra que, criatura, pra que eu inventei de te visitar na droga do hospital, Fontes?
E, no meio da avenida, com dezenas de pessoas com celulares a postos, a mulher tirou o cinto e descontou toda a raiva no marido. Foi preciso a intervenção dos policiais para evitar o espancamento mais bizarro que se tem notícia. Assustado e também com medo de apanhar, fiquei quieto vendo a mulher ser contida tal qual um animal selvagem. Próximo a mim, enquanto os enfermeiros acomodavam o Sr. Fontes em uma maca, ele me chamou mais uma vez.
— Tu viu aí? Não esquece de pagar o carro aí, se não ó... O coro vai comer pro teu lado! A mulher é doida!
Ele sorriu meio abobado. E então, esse sorriso se misturou à frase das minhas lembranças e fez algo despertar em mim. Os enfermeiros lutavam para levantar a maca com o Sr. Fontes quando as peças se encaixaram e formaram uma figura bem nítida.
— Ei! – Corri até a porta da ambulância e olhei para o paciente, a expectativa quase a explodir em minha cabeça. — O senhor trabalhava no condomínio Del Plata?
Ele me olhou e cerrou os olhos. Pensou por alguns segundos e então fez um joinha com a mão livre.
— À sua disposição. Fontes de Albuquerque, síndico daquela bosta!
A porta se fechou e eu fiquei lá, paralisado, enquanto observava a ambulância se distanciar. O "Condomínio Del Plata" era onde João Paulo morava.
Fitei o céu e sorri.
*
Bạn đang đọc truyện trên: Truyen247.Pro