🌙 2.2. C.S.I criminal
Ainda 14 de junho, sábado.
89º Distrito, Vila Suzana, Morumbi.
Delegacia de Homicídios de São Paulo. Terra.
Ninguém sabe quando o telefone vai tocar, não é? O dia tem vinte e quatro horas, é longo para muitos e curto para outros… por que aquele maldito telefone decidiu berrar como um histérico desmedido justamente naquele exato momento?
Ela estava quase respondendo à pergunta número quinze do seu transcendente teste psicotécnico: “O que você faria se estivesse frente a frente com o assassino da sua filha hipotética?”, tinha perguntado o psicanalista.
Até então, ela estava indo muito bem. Controlava a mania de bater o pé, estava com as mãos cruzadas na altura da barriga e escutava com tranquilidade o interrogatório daquele especialista no controle da mente. Beroé tinha cuidado da
aparência; informal, mas ao mesmo tempo séria. Usava jeans justos, sapatos pretos com salto não muito alto, uma jaqueta curta da mesma cor e, por baixo, uma camiseta branca lisa e levemente agarrada nos seios.
Arrumou os cabelos pretos em um alto e respeitoso coque; os óculos de armação preta, dos quais aliás ela nem precisava, davam um toque mais interessante e menos infantil a
seus olhos puxados e gatunos, de cor verde muito clara.
Só havia uma mesa separando seu futuro mais desejado da sua simples
realidade como policial da cidade de São Paulo. O lugar em que o teste
estava sendo realizado era espartano, não tinha móveis. No teto estava pendurada uma lâmpada que iluminava diretamente suas frontes.
As paredes eram brancas
e não havia sequer uma cortina na solitária janela. Quanto menos objetos estivessem ao redor para distrair a atenção dos interrogados, mais fácil seria ler as suas mentes.
– Senhorita Blake? – Ele franziu a testa, com uma expressão contrariada.
“Naziiiiiista! Naziiiiiista!”, berrava o celular.
– Eu não tenho filha, senhor – repetiu ela, com cara de “não-está-tocando-
nenhum-celular-que-invoca-Hitler”. Beroé lambeu os lábios. Suas mãos ficaram úmidas e, sem querer, seus olhos apontaram para sua bolsa. Nela estava seu iPhone, logo na cadeira ao lado do senhor Stewart, encostada na parede. Se ao menos ela pudesse pegá-lo e…
– Estamos aqui para analisar suas reações diante de situações de grande exigência emocional, senhorita Blake. Coloque-se na situação.
Era difícil me colocar na situação enquanto agentes federais e policiais corriam desesperados pela Delegacia de um lado para o outro murmurando sobre um caso sobrenatural de assassinato movido por um serial killer e aquele maldito celular não parava de tocar.
– Se eu por acaso tivesse uma filha? – Ela tossiu com vontade de dar uma
pedrada no celular.
“Naziiiiiista! Naziiiiiista! Atende para seu próprio bem!”, cantava o toque que ela havia personalizado para sua mãe, Michelle que ficasse claro que amava a mãe, mas ela era uma dessas mulheres que se você não atendia a ligação de primeira, depois de algumas horas aparecia na porta da sua casa com dois policiais para ver se estava tudo bem.
Sim. Michelle era um pouco hipocondríaca.
“Naziiiiiista! Atende! Ela espirra assim: ‘Auschwitz!’”
Ela não ia desviar o olhar. Não podia. Aguentaria, estoica, os óculos reluzentes do psicólogo que devia avaliar suas atitudes psíquicas e emocionais, e agiria como se não houvesse um toque alertando-a sobre os riscos de não atender uma ligação de uma provável ultra-conservadora. Ela esperava que o senhor Stewart também tivesse essa capacidade de abstração.
O homem, que tinha por volta de uns sessenta anos, levantou seus óculos de metal com o indicador.
– E então?
– Sinceramente, é muito difícil se colocar nessa situação… – Ela levantou a mão para tirar uma das mechas de seu cabelo loiro que estava encostando na pálpebra esquerda. Bem que Willow dizia que seu cabelo estava muito grande.
Mas ela gostava dele assim, e se o colocasse todo para um lado, penteado no estilo Jackie Kennedy, não a incomodava. “Concentração, pelo amor de Deus”, pensou. – Suponho que uma mãe faria qualquer coisa para vingar a morte do filho. Somos todos Sally Field em Olho por Olho – merda. Sério que eu disse isso?
O velho olhou para ela com a cara fechada, sem entender a resposta.
Beroé começou com seu tique no olho esquerdo.
“Naziiiiiista! Atende antes que eu arranque seus cabelos!”
– O senhor sabe – prosseguiu Beroé. Claro que ele não sabia, e Beroé já havia passado por isso antes, ela já havia participado de um grupo secreto de agentes federais, as Kamikazes, tudo aquilo era ridículo. Esse cara tinha pinta de quem via filmes de Velho Oeste. Provavelmente nem sabia quem eram Sally Field e Kiefer Sutherland.
– Não, não sei. – Cruzou os dedos sobre a mesa, inclinando-se com interesse na direção dela. – Explique-se.
– No filme, Sally Field não sossega até ver morto o assassino da sua filha.
– Isso quer dizer que você faria justiça com as próprias mãos? Que, se o
homem que arrancou o último alento de vida da sua pequena estivesse na sua frente, você o mataria?
Deu para ouvi-la engolindo saliva.
– Às vezes a justiça não consegue entender a dor de alguém que perdeu a
pessoa que mais ama.
– Não confia no sistema, senhorita Blake?
– Claro que confio. – A coisa começava a ficar feia. – Mas os impulsos dos seres humanos não são racionais quando dizem respeito àqueles que devemos proteger. Posso entender a ira.
– A senhorita o mataria?
Beroé apertou os dentes e se colocou no lugar de Sally. Matar ou não matar, eisa questão.
– Não tenho certeza. Mas mesmo não sendo a mãe da menina, eu já tinha
vontade de esquartejar o assassino. Imagina o que eu faria se fosse a mãe.
– Essa não é a resposta mais adequada para alguém que quer trabalhar para aprincipal divisão de investigação do Departamento de Justiça do Brasil.
Para que serve o sistema, então?
– Em minha defesa, digo que o senhor está descrevendo casos extremos, e
acredito que qualquer pessoa com coração e sentimentos responderia dessaforma. E se dizem o contrário, mentem. – que ótimo, agora tinha usado aquelafrase com convicção e dentro de um contexto.
– Está insinuando que todos os agentes da ABIN mentiram. – sentenciou ele, com a voz monótona. – Que passaram nos testes psicotécnicos e nas entrevistaspsicológicas com base em falsidades? É isso que está insinuando?
– Não estou insinuando nada. – Desviou os olhos verdes para a janela da sala,situada em um dos principais escritórios de São Paulo. A luz do sol passava pelaspersianas e iluminava o lado esquerdo do rosto cheio do senhor Stewart. – Sóestou dizendo que, em determinados momentos, as pessoas não têm nemdisposição e nem paciência para esperar que os outros se vinguem por elas. Eu
adoraria arrancar os braços e as pernas desse maldito e depois entregá-lo aoEstado, torcendo para que o enviassem a um presídio masculino e sem nenhuma
gota de vaselina. Mas Sally, a mãe em questão, arrancaria a pele do assassino eatearia fogo nele.
– A senhorita está falando sério? – Ele estava indignado.
– Tem família, senhor Stewart?
As pessoas que trabalhavam na ABIN não eram robôs. Beroé acreditava queninguém tivesse respondido a mesma coisa que ela. Empatia era sentir a dor dooutro; e ela havia se colocado no lugar de uma mãe destruída, tomada pela raiva e pela dor porque um covarde sádico havia decidido acabar com a vida de seu
filho. E, por acaso, todos os outros que passaram por aquela mesa responderamque avisariam a polícia para que outros tomassem as providências? Ela achavaque não.
– Sim, senhorita. Mas isso não vem ao caso. A senhorita realmente agiria assimde forma tão…
– Impulsiva?
– Vingativa – corrigiu, desaprovando-a. – Sua alma é vingativa.
– Não! – exclamou, frustrada. – Eu…
“Naziiiiiista! A nazista está irritada! Este telefone vai explodir em três… dois…um! Booom!”
O toque parou. Beroé podia imaginar sua mãe, enviando uma
mensagem, uma daquelas bem típicas: “Oi? Beroé? Está aí, querida?”.
Não entendia como ela deixava sempre a mesma mensagem se já estavacansada de saber que falava com a secretária eletrônica…
– Você tem uma irmã trabalhando no FBI. A senhorita… – O doutor Stewart
inclinou a cabeça e ajeitou os óculos para encontrar o relatório. – Kiara. Ah, sim. Uma agente brilhante – reconheceu ele com orgulho. Depois de enumerar todas
as missões bem-sucedidas de Kiara, perguntou: – Você quer seguir os passos dela?
Beroé apertou os olhos. Kiara era sua irmã, um exemplo a ser seguido para ela.Era três anos mais velha e alvo de sua adoração. Quando eram pequenas,prometeram que sempre estariam juntas e que tirariam de circulação todos oscriminosos e malfeitores. Elas tinham a vocação para ser super-heroínas enenhuma delas podia evitar. Era o que acontecia quando se crescia em uma
família cheia de policiais: ou você evitava as armas por toda a sua vida, ou seapegava àquele ambiente. E as duas estavam apegadas. Claro que ela gostaria detrabalhar com Kiara. O que tinha de mais em querer atingir os mesmos objetivosda irmã? Em estar com ela? Mas Beroé não estava ali só por isso. A ABIN envolvia o
que ela mais gostava: as investigações sobre as violações de crimes federais.
Prender os piores, os mais perigosos, a escória da humanidade.
Bom, bem observado, talvez ela tivesse mesmo uma alma vingativa.
– A questão, senhorita Blake, é que se você entrar no sistema, é para
respeitá-lo. – Os poucos fios de cabelos brancos que iam do lado esquerdo para odireito da cabeça, no intento de esconder a calvície, se desajustaram quando ele
carimbou com ímpeto as folhas da avaliação geral, o que dava a ele um aspectode Gollum desalinhado. O homem estampou na folha uma palavra que a deixou
entre a tristeza e a indignação. – Inapta.
– Inapta?! – exclamou, levantando-se e cravando as mãos sobre a mesa. –
Mas… Por quê? Por ser honesta?! Tenho totais competências para estar em todasas outras divisões. Sou uma atleta e falo quatro malditos idiomas… Tenho amelhor avaliação em investigação criminal e… E só porque reconheci que
gostaria de dar uma lição no…?
– Senhorita Blake… – O psicólogo levantou a mão para deter a apelação. –A cadeia, lamentavelmente, está cheia de pessoas que pretendiam dar lições emoutras. A senhorita deveria prevenir e se certificar que esse tipo decomportamento vingativo não se repita. Para isso servem as leis e a Constituição.Acabamos por aqui. Agora, se me dá licença…
Se dava licença? Não! Licença nenhuma! Ela estava sendo julgada
injustamente!
– Deveria trabalhar sua irritabilidade e essas suas tendências homicidas – completou o senhor Stewart, antes de fechar a porta. – E também deveria trocaro toque do seu celular. A senhorita continua sendo uma policial em São Paulo,e esse tipo de mensagem incita a violência.
— E o senhor deveria comprar uma maldita peruca!
O psicólogo bateu a porta.
Com o olhar fixo na porta, Beroé pegou a bolsa e desabou na cadeira.
Não podia ser. Ela achava que tinha tudo sob controle, mas estava muito
errada. Entre uma caixinha de suco de laranja, um sanduíche e um kit de
maquiagem, ela encontrou o iPhone, com uma capinha preta com símbolo dexerife na parte de trás.
Uma chamada perdida. Uma mensagem na caixa postal.
– Ai, mamãe. – Colocou a mão na testa enquanto balançava a cabeça
negativamente. – Que hora – ainda assim, disse para si mesma que era culpa suanão ter colocado o celular no modo silencioso.
Verificou a caixa postal e escutou com um sorriso triste as palavras e a voz
reconfortante de sua mãe.
– Oi? Beroé? Está aí, querida?
– Você gritou para ele comprar uma peruca?! – A irmã Blake lutou, sem
sucesso, para não cair na risada em frente à irmã mais nova. Beroé parecia muitochateada, e nem mesmo o frappuccino levado pela irmã, logo depois do teste
psicotécnico, melhorou seu ânimo.
– Não grite comigo também – respondeu, angustiada. – Aquele homem foidetestável. Estavam apoiadas no mini conversível preto de Beroé. Sentadas no capô, meioencostadas no vidro dianteiro, admirando a paisagem que se tinha ali doestacionamento, em frente ao Shopping. Compartilhavam a vista domonumento a Getúlio Vargas. Ao lado, ficava Costa e Silva, como se
observasse seu fracasso.
Beroé tomou um gole enorme do seu frappuccino e olhou de soslaio para a irmã.Era mais alta, pelo menos uns quatro dedos. As duas eram fisicamente parecidas,esbeltas e atraentes, ainda que, com certeza, das duas, Willow fosse a que reunia
formas mais exuberantes.
Tinham fisionomia similar; mas, enquanto Willow era ruiva-acaju, Beroé eraloira. Ambas com cabelos longos e lisos. A irmã mais velha tinha os olhosacinzentados, diferentes dos olhos da mais nova, verde-claros. Ao sorrir, Beroé deixava à mostra a covinha que tinha no queixo; já Leslie exibia covinhas nasbochechas. Apesar de algumas diferenças, a herança irlandesa as deixava muito
parecidas.
– Que merda. Fui pra Barueri fazer o curso e tinha tudo nos conformes, com avaliações excelentes. Aí a mamãe me liga e o celular começa a gritar“Naziiiiiista! Naziiiiiista!”.
Willow lamentou balançando a cabeça.
– Você deveria mudar esse toque.
– Eu sei… Eu queria trabalhar aqui, com você – Beroé choramingou como umacriancinha, apoiando-se no ombro da irmã. – Adoro a Abin.
– Não fica assim, B. – tranquilizou Willow. – Ano que vem você pode tentar denovo, e eu posso falar com meu chefe para que te recomendem e…
– Não. Nada de recomendações. – Bebeu seu café gelado do Starbucks. – Nãoao nepotismo. – Depois, levantou seu copo e brindou com um amigo imaginário.
– Ainda que eu fique na merda por ser reprovada.— Willow desatou a rir.
– B., você é feliz em Barueri. A corporação inteira te respeita muito.
– Porque sou filha do herói da cidade, W.
– Porque você sozinha tem nas mãos a máfia do Bairro Francês, irmãzinha. Etambém… – Deu de ombros e completou: – Porque você é uma Blake. Alémde tudo, essa foi sua primeira tentativa. No fim, você vai conseguir.
“No fim”. Quando?
– Você é feliz aqui, L.?
– Em São Paulo? Sim. – Sorriu e as covinhas nas bochechas se desenharam. –Mas é difícil. É um trabalho complicado. – Seu olhar ficou sombrio. – Agoramesmo, estamos nos preparando para uma missão de alto risco. E eu estou no
caso.
Beroé levantou e ficou impressionada, boquiaberta.
– Sério, W.? – perguntou, emocionada.
– Você pode me dizer do que se trata?
– Claro… – respondeu Beroé, olhando para ela, carinhosamente – … que não.
Sou uma agente especial.
– Isso é muito emocionante! – exclamou Willow, com olhos sonhadores. – Mastudo bem, respeito sua privacidade.
– Emocionante? – repetiu Beroé, olhando para o horizonte. – Pode até ser, masvocê corre o risco de mudar, porque acaba absorvendo muita coisa.
Willow suspirou e observou os sapatos de salto alto que descansavam no chão. Elajamais riscaria seu Mini.
– Risco é ter de ouvir a senhora Maria da Avenida Paulista todos os dias dizendo que ocachorro dela desapareceu. Esse cachorro é um reprodutor e está emprenhando
todas as cadelas da cidade. Falei que se ela o tivesse castrado, ele não ia fugir decasa para se atirar em qualquer cadela que fareja em um raio de vinte.
quilômetros…
Sua irmã soltou uma gargalhada e a abraçou forte.
– Ah, sinto tanto sua falta, C…
Cleo estranhou aquele tom lastimoso em Leslie. Ela também sentia saudades.
– E eu sinto a sua. Mas você acha que deveriam castrá-lo ou não?
– Quem deveria ser castrado? Eu voto contra.
A voz masculina e penetrante do colega de Beroé fez Willow sentir um arrepio nanuca.
Jacob Solovan. O melhor amigo de infância de Beroé, porque amigo seu nãotinha sido nunca, claro.
Os três cresceram juntos. Todos quiseram ser policiais; brincavam de polícia eladrão, de detetive… e agora os dois trabalhavam juntos. E Willow nãoentrava na equipe. Willow se sentiu horrível ao perceber que só ela havia ficadopara trás.
Nossa, fazia anos que ela não via Jacob. Beroé tinha explicado que ele forapromovido e que agora estava no comando de várias operações, incluindo a dela,da qual não queria falar. Quando ela mencionara pela primeira vez que Jacob era
seu superior, Willow não pôde acreditar. Ficou feliz por ele, porque tinham umaamizade antiga. Muito antiga…
Na verdade, tinham sido amigos alguma vez? Não. Jacob a aguentava porqueera o jeito de continuar com Beroé, e Willow tinha consciência disso. Ele deviaconsiderá-la aquela menina chata que os seguia para cima e para baixo e não osdeixava em paz.
Certo… Willow corou ao perceber que agora estava fazendo a mesma coisa:
queria chegar onde eles haviam chegado.
Por outro lado, ela ficava com agonia só de imaginar o áspero do Solovan comoseu chefe.
Beroé virou a cabeça para olhar, por cima do ombro, o indivíduo que mais ahavia maltratado quando eram crianças e, ao vê-lo, uma espécie de alarme deincêndio interior foi ativado.
Engoliu saliva. Ainda bem que havia tirado os óculos falsos; agora estava comseus óculos escuros Carrera e não dava para notar que estava de olhosarregalados.
Jacob era um homem incrivelmente sexy, imensamente misterioso e estavainfinitamente bem. O tempo o deixou com os ombros mais largos, e ainda quesempre tivesse sido alto e com boa forma, agora ostentava quilos de músculosperfeitamente delineados. Diziam que os homens só cresciam até os vinte anos.
Jacob era o exemplo perfeito de que era possível continuar em permanentecrescimento.Seu corte de cabelo em estilo militar chamava atenção e, por trás dos óculos
de aviador Gucci, Willow sabia que ele conservava aqueles olhos azul-escuros que a
Enquanto Janet se via diante de um mundo em que ela desconhecia, deslumbrada com Andrômeda e sua magia natural, na Terra, mesmo com a diferença de fuso horário e de cronograma em geral entre os dois Universos. A Polícia Cívil da Delegacia de Homicídios de São Paulo começava a receber relatórios e denúncias sobre assassinatos misteriosos.
Estes assassinatos, que os levam até o assassinato de Camille Ramirez Allerano começam a tumultuar a delegacia, acostumada apenas com pequenos casos de furtos e tráfico de drogas. Logo a médica legista, Alice Balbin, é chamada para realizar uma segunda autópsia e biópsia do corpo.
Naquele dia a Detetive Carla Montoussis estava tendo uma manhã ruim, muito ruim.
Seu café estava frio e ela já havia se servido de três xícaras, uma ligação havia feito todos os seus planos de um fim de semana estável irem por ralo abaixo, junto com o comprimido de Clonazepam que o psiquiatra lhe receitava. E agora tinha aquele caso de um assassino em série em São Paulo que viera para foder com tudo o que restava de sua saúde física e emocional. Um serial killer ou um assassino em série é um assassino que geralmente mata dezenas ou até centenas de pessoas com as mesmas características. Com algo em comum.
Alice Balbin estava no seu distrito encarando seu copo de café como se segurasse uma arma nuclear. O que o assassino Viúva Negra estaria querendo? Ele ou ela seria apenas um psicopata?
- Pode largar o copo agora. - A detetive diz para a médica legista como se ela estivesse armada, que encara a detetive como se quisesse que ela acabasse de ler aquele relatório mais rápido. A detetive tira um vidrinho do bolso da calça, ela tinha Transtorno Obsessivo Compulsivo e com os avisos sobre uma epidemia, Carla seguia um padrão doentio de lavar as mãos e passar álcool em gel a cada quinze minutos.
O caso de uma provável serial killer pairava no ar e graças a pandemia que agora chegava a Europa, os países da América do Sul começavam a dar atenção a toda e qualquer anormalidade local, tudo era motivo de burburinhos no tumultuado Morumbi. E aquilo estava deixando Carla ainda mais nervosa.
As transmissões de jornais locais não deixavam por menos, tentando burlar a todo custo os materiais sigilosos das investigações.
O corpo de Camille Ramirez Allerano já havia passado pela biópsia e Alice já havia feito suas anotações. Mas, por uma confusão de papeladas, havia sido dada a permissão errônea para o enterro e graças a um mandado judicial - e muito formol - tínhamos disponível para análise por dois dias.
Sua morte era um caso óbvio de assassinato. Porém os motivos dela não pareciam coincidir, ela havia sido assassinada por uma faca e com um corte certeiro no pescoço, com uma precisão na veia jugular. A veia jugular transportava sangue venoso do crânio e sistema nervoso, além do sistema do cérebro exterior e inferior. Por isso, acertar alí era fatal e uma pessoa para saber disso teria de saber sobre anatomia humana.
A ABIN começou a suspeitar de ser um serial killer que cursaria medicina ou fosse médico, por conta de seu conhecimento específico em anatomia e enviou relatórios a Delegacia. Eu não estava tão certa disso, a morte brutal não mostrava frieza em si, mostrava raiva. Quase como se o assassino quisesse vingança, como se quisesse debochar da vítima. Talvez se tratasse de uma mulher, propensa a psicopatia.
Descarto o pensamento, meneando a cabeça. Eu estava me baseando em um preconceito machista ao pensar que mulheres eram mais emocionalmente instáveis e portanto, tinham maiores chances de se tornarem assassinas.
Afinal, homens também eram vingativos, mesmo que muita das vezes frios - o sentimento de posse gerava a ideia de violência e até um plano de assassinato, os índices alarmantes de Feminicídio no Brasil comprovam isso. Um homem era tão propenso quanto uma mulher a cometer crimes baseados em emoções a flor da pele.
A ABIN - Agência Brasileira de Inteligência - estava investigando o caso e agora o Distrito tinha recebido treze pastas referentes as investigações, cada uma com a ficha dos últimos assassinatos, todas as vítimas tinham uma distância considerável, e um intervalo de treze dias entre uma morte e outra. Kim, a minha chefe do departamento de homicídios me deixava a par do caso, que em breve seria meu.
Kim se virou para a equipe anunciando que eu lideraria as investigações daquele caso. Jacob Solovan me aplaude, Anne parecia entusiasmada. Havia algo estranho em Jacob, uma marca em seu pescoço que eu poderia cogitar se tratar de um colar muito apertado ou talvez, eu pensava com assombro, uma coleira?
Carla segue para o necrotério policial com Alice em seu encalço, silenciosa, seus olhos apreciam analisar tudo ao seu redor, o perito lhe dá as informações rápidas e oferece uma pasta com as notificações da biópsia. Os médicos pareciam em dúvida de muitas coisas. A causa de sua morte era óbvia e o assassino não tinha deixado digitais no local, aparentemente usava luvas.
Parecia um caso sem solução, sobrenatural. Havia alguma ligação da morte de Camille com as outras vítimas no estado de São Paulo, estava certa disso. Tudo estava conectado, só não fazia ideia de como.
A distância entre as vítimas, o símbolo, o modus operandi do assassino, o jeito como cada vítima foi encontrada. Era como se o serial killer quisesse a atenção da mídia, certo de sua impunidade.
Após o assassino matar Camille Ramirez Allerano, ele seguiu para outra casa, invadiu a mansão Rocherfield e assassinou a mulher do vereador local, seu corpo foi encontrado naquela manhã, com um buraco no peito, sem o coração. As vítimas de Viúva Negra geralmente eram mulheres.
Todos eles tinham uma marca registrada um "V" rasgado na pele com faca ou algum objeto cortante, talvez um pedaço pontiagudo de vidro, como se o assassino estivesse conectado com as suas vítimas. Era planejado, o assassino tinha planejado cada morte.
- Isto me parece estranho. - Carla aponta para a foto de um homem de cabelos claros no quadro onde estavam as informações do caso Viúva Negra. - o namorado da vítima desapareceu, Janet Baker, uma colega da vítima que compareceu ao enterro mesmo após treze anos sem contato com ela, também está desaparecida.
- Acha que eles podem ser suspeitos? - Jacob pergunta.
- Acho que podem ser os próximos, por enquanto. O assassino me parecia uma mulher, pelo modo como segurou a faca, a raiva parecia de uma mulher traída, talvez o alvo principal seja ele. - rebato, pensativa.
- ou um homem traído, o assassino parecia ter pesquisado bem a vida da vítima, sabia sobre o dia - a - dia de Camille, onde trabalhava, onde morava e os principais locais para onde ia, o assassino estudou ela. - Jacob rebate.
- Certo, ligue para Marcos Felipe Nunes Spoenbelch e diga que precisamos do depoimento dele. - ordeno e Jacob segue para sua mesa pegando o telefone fixo e discando um número. Não seria o fato de Marcos ser um homem rico que o livraria da justiça.
- Por quê esse quebra - cabeça não encaixa? - me pergunto, retirando uma foto do mural.
- o jornal da BBC News quer uma exclusiva. - Jacob avisa e aponta para o garoto a minha frente, era um novato.
Suspiro.
- certo. Entraremos ao vivo em 5, 4, 3, 2 - o garoto diz e a câmera foca sua luz em mim. Explico algumas informações sobre o caso e respondo a perguntas do jornalista. Aquilo ficaria cada vez mais frequente.
- o caso Viúva Negra ainda é um total mistério mas temos nos empenhado em buscar o assassino. - respondo com um sorriso.
- é verdade que o serial killer ainda é totalmente desconhecido? - o jornalista pergunta genuinamente confuso.
- Não exatamente, temos uma ideia clara de que ele tinha uma relação pessoal com a vítima portanto ele sabia o que fazia, por conta disso o caso Viúva Negra recebeu esse nome. Trata se de alguém que queria vingança, que provavelmente foi traída. - explico.
- ah então o serial killer é uma mulher? - o repórter questiona.
- pela linha de raciocínio sim, é bem provável que seja uma mulher. Temos avaliado se é alguém do passado, ou algum parente da vítima, a mãe de Camille Ramirez Allerano tinha certa influencia. - aperto os dentes. Se eu contasse sobre a presença da máfia italiana na família Ramirez Allerano os abutres jamais me deixariam trabalhar em paz.
- Detetive, é verdade que o assassino tem uma meta de mortes que não acabou com Camille? Teremos que ficar em casa, temendo as atrocidades dele? É verdade que a segunda morte, o assassino arrancou o coração da vítima? - outro repórter pergunta.
- sim e sim, temos trabalhado para garantir a segurança da população. - Carla responde. - mas por hora, tomem cuidado.
As câmeras se desligam e os jornalistas se afastam, volto para dentro da Delegacia e então, os telefones começam a tocar sem parar.
- O que está acontecendo? - pergunta, policiais iam e viam dentro da Delegacia, atendendo chamadas, fazendo relatórios, milhares de ocorrências estavam acontecendo ao mesmo tempo.
- Carla, temos um problema de caráter urgente. - Jacob chama, sua testa pingava de suor e ele estava sério demais.
- O que houve? - Carla pergunta.
- Encontraram dois corpos dentro de uma casa abandonada há cinco quilômetros daqui. - Jacob Solovan explica.
- Vamos lá, então. - Carla pesca as chaves da viatura.
- O problema é que... Se trata de um caso um tanto sobrenatural. - Jacob explica. - Os civis estão comentando que os corpos estavam... Flutuando... No teto da casa abandonada.
- Como? - Carla pergunta.
- Também não acreditei mas um vídeo está sendo divulgado na internet. - Jacob explica e mostra a tela do iPhone.
O vídeo que ele me mostra se tratava de uma uma cena assustadora. Corpos já em estado de putrefação, flutuando como se estivessem boiando, em pleno ar, se chocando uns nos outros, mortos.
Batiam no teto de madeira e voltavam a se chocar, como balões de festa.
- Já podemos chamar o exorcista? - Jacob Solovan ri. Olho seria para ele.
- Chame os superiores. - ordeno.
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