🌙 1.1. Bates Hotel
"Em última análise, precisamos amar para não adoecer." - Sigmund Freud.
Camille Allerano
Sexta - feira, 13 de julho.
Horas antes.
Mesmo antes de ser assassinada, Camille estava tendo um dia péssimo. Ela havia acabado de sair do apartamento do seu namorado, sem saber muito bem o que estava acontecendo com a sua vida. Tudo tinha para ser um dia perfeito, comum, até aquela tempestade começar. Ela sentou na cadeira da cafeteria e acenou para chamar a atenção da garçonete.
Não havia ninguém além dela na cafeteria, apenas alguns funcionários fingindo dormir atrás do balcão, ouvindo seus iPods, outros conversando. Todos pareciam ter mais ou menos a mesma idade, cerca de dezenove ou dezessete anos. Certo, isso era assustador. Do lado de fora os trovões relampejavam indicando que a tempestade se aproximava.
O Balder's Café era o melhor lugar para se passar uma típica noite solitária de sexta-feira. As paredes pintadas de um cinza cimento eram decoradas com pôsteres de séries, animes e filmes que variavam entre Tokyo Ghoul, De Volta para o Futuro e Friends, as mesas eram largas, de madeira, assim como os bancos, no estilo campista.
Ao meu redor haviam também todo tipo de objetos que faziam alusão a temática geek e nerd ,tal como uma réplica perfeita do brasão da família Stark de Game of Thrones que decorava a porta e algumas bandeirinhas das casas da Sonserina e Lufa - lufa.
Olha no relógio de pulso e suspira, se levantando e passando por um pôster do Brad Pitt e senta - se em outra mesa. O termo politicamente correto deveria ser madrugada, já que se passavam das duas da manhã, mas eu tinha trabalho a fazer. Mesmo sabendo que Marcos não iria ficar contente quando descobrisse, por isso estava andando em passos largos na rua deserta, acompanhada apenas por algumas edições dos meus livros prediletos na bolsa: O Morro dos Ventos Uivantes e Um Apanhador no Campo de Centeio.
Observando o ambiente à minha volta, enquanto garçonetes vestidas como personagens de animes, desde One Piece a Sailor Moon passavam por mim carregando bandejas, limpando as mesas.
A parte onde funcionava uma lan - house improvisada, cerca de dez notebooks desligados era limpa por alguns caras vestidos de Cavaleiros de Ouro. O aspecto bucólico e geek da cafeteria com nome de deus nórdico, aquilo era tudo o que eu precisava para colocar a cabeça no lugar e ler em paz. Um homem entra logo após de mim, seus olhos fixam nos meus com um brilho de reconhecimento e tenho a sensação de que ele me seguia.
A cafeteria era o meu ponto turístico preferido e um dos únicos locais que ficavam abertos naquele horário, costumava ir para aquela cafeteira logo após visitar Marcos, meu noivo, há mais de dez anos, como se tomar sempre o mesmo descafeinado, forte e preto, com gotas de canela, fosse uma forma minha de comemorar mais um ano na companhia dele, apesar de que, desta vez, eu estava sozinha.
O homem se senta na cadeira a minha frente, ele tinha uma barba espessa e negra, assim como a cor de seu cabelo, seus olhos eram azuis como o céu e ele parecia ter uma aura de magnetismo ao seu redor.
— o que o senhor deseja hoje?
— Um capuccino apenas. — ele responde e força um sorriso para garçonete de cabelos pretos cortados em um Channel, vestida de Touka, personagem do anime Tokyo Ghoul, que anota o pedido em um bloquinho e segue até a cozinha do local para pegar o pedido dele quase como se estivesse feliz em se distanciar dele.
Ele o bebe, estende a xícara com formato do Duende Verde para mim, em reconhecimento e observo, talvez eu o conhecesse mas não queria deixar que ele pensasse que se tratava de uma cantada, e volto meus pensamentos a Marcos tentando buscar uma solução para nossos problemas.
O homem parece sorrir, como se soubesse que eu estava tentando não pensar nele e continua a beber seu capuccino, mordendo em seguida o muffin que pedira como acompanhamento. Um tremor percorre a minha espinha, aquele homem era assustador, mesmo que não houvesse nada de horrível nele ou de estranho, eu diria que ele era até mesmo simpático mas havia algo nele, que eu supunha que a garçonete também notara. Quase como uma aura, uma premonição, ele parecia carregar a morte consigo.
Estremeço e busco ignorar sua presença. Marcos, eu tinha que pensar em Marcos.
Busco em minha lembranças de horas atrás quando Marcos havia tocado a campainha do meu apartamento à dois quarteirões de distância da cafeteria, o prédio antigo pintado grosseiramente com tinta vermelha e detalhes em mármore branco parecia uma sede do corpo de bombeiros, como não havia porteiro ou um sistema de segurança eficiente
Escolhi por descer para que os vizinhos não imaginassem se tratar de um bandido ou um bêbado arruaceiro e atirar ou jogar algo em Marcos. Eu sentia tanta falta dele que chegava doer. Éramos como ímãs opostos, destinados a estar unidos para sempre. Suspiro, observando as gotas de chuva escorrendo pelo vidro, onde uma gota sempre buscava se unir a outra em uma corrida em vão até se encontrarem nas bordas de madeira da janela.
Balanço a colher na xícara, adicionando açúcar, pensando em tudo o que gostava no meu noivo. Adorava seu cabelo loiro, tão oposto ao meu, que era preto. Seus olhos azuis, meus olhos castanhos. Éramos como o sol e a lua, a areia e o mar. Tão diferentes, mas tão perfeitos.
O garoto bobo que eu conheci no oitavo ano, que me pediu um lápis no primeiro dia de aula. Me apaixonei pelos seus olhos, azuis como o céu; por sua educação polida, pela forma como me tratava como se eu fosse não apenas uma garota mas sim uma dama que merecia respeito, foi o que me atraiu por ele.
Sua forma de me escrever cartas e deixá - las na minha mochila todos os dias, sempre me dizendo o quanto eu era linda e inteligente, sua forma de escrever, quase como se viesse de outra época, me perguntando coisas simples, como foi o meu dia ou qual era a minha cor favorita. Sua atenção e seu respeito fez aos poucos com que eu me atraísse por ele.
Apesar de que, parando para pensar, todos os homens deveriam ser assim. Era questão de educação básica, porém a realidade era que não havia mais ninguém daquele jeito, como Marcos. Um perfeito cavalheiro. Beberico mais um pouco no meu café e mordo outra fatia de torta, deliciando - me com o sabor e com as lembranças de horas atrás.
Naquele mesmo dia, era nosso aniversário de namoro, noto seu carro estacionado na frente do meu prédio. Correndo para seus braços assim que chego da faculdade, deixo meu nervosismo de lado e o beijo apaixonadamente ignorando a estranha sensação de estar sendo observada e o frio que percorria a minha espinha. Meus sentidos me avisavam para correr, como se eu estivesse em perigo ao estar ali, exposta, beijando meu noivo, seu presente para mim cai no chão junto ao buquê de rosas negras artificiais.
Talvez eu devesse simplesmente ignorar a minha família, que era contra o nosso noivado. Talvez eu devesse me esforçar mais para pertencer ao mundo dele tal como ele se esforçava comigo, mesmo quando meus pais começavam a falar em italiano e ele acabava ficando mais perdido que padre em puteiro.
Eu não sabia, mas olhos estavam cravados em mim, observando todos os meus movimentos. Marcos seguiu seu caminho e voltou para casa, com uma promessa em seus ouvidos, algo que eu jurei dar a ele como prova de meu amor antes de nos casarmos.
E resolvi ir até a cafeteria mais próxima, acalmar os ânimos, o ambiente era um dos únicos com cinco estrelas. De muitos modos, eu só aceitava o excepcional.
Queria sonhar com aqueles momentos com Marcos mas eu tinha trabalho a fazer e era o que fazia agora. Trabalhos da faculdade e assuntos profissionais, mordo um pedaço da torta de mirtilo com desgosto e dou outro gole no expresso olhando para a rua lá fora, sentada da minha mesa de madeira na cafeteria, observava as pessoas procurando abrigo e abrindo seus guarda - chuvas, o vidro da janela começava a se embaçar e as gotas de chuva escorriam pelo vidro.
As mensagens de Sharon Allerrano ainda brilhavam na tela do meu celular desde que adentrei o estabelecimento, eu não queria responder as inquietações da minha mãe mas o aviso de novas notificações me tirou de minhas lembranças com Marcos.
Faço uma careta na janela com os dedos e largo o celular em cima da mesa. Não queria escutar perguntas vazias da minha mãe sobre as minhas escolhas a faculdade de psicologia ou meu relacionamento com Marcos nem tão cedo, minha grande sina, já que nenhuma mãe aceitava um cara que namorava com a sua filha há mais de dez anos. Tão pouco queria ler mensagens do meu secretário sobre a minha forma de gerir minha empresa, odiava a monotonia e a escassez de um diálogo saudável.
As brigas existenciais de um relacionamento mãe e filha não me pareciam atrativas naquele momento. E além do mais, os olhares e risadas daquele homem estavam me deixando desconcertada.
Enfiei a cabeça no livro e ligo o notebook ignorando as garçonetes que passavam para atender outros clientes, precisava transcrever os trechos do livro e me dedicar melhor a história de Salinger indiferente as outras pessoas que estavam no estabelecimento, boa parte deles eram universitários como eu, lia absorta a cada palavra no exemplar e os digitava no Word tentando compreender o máximo que conseguiria sobre Holden - que seria a base do meu projeto - enquanto a garçonete ainda não aparecia com o meu pedido. Compreendê - lo seria essencial para debater a minha tese sobre comportamento infanto - juvenil para o meu TCC na faculdade.
Respiro fundo. Eu era Camille Ramirez Allerano, era uma mulher forte, uma empresária de sucesso, uma universitária em ascensão e nada nem ninguém no mundo era mais importante que eu.
Quando termino, já havia tomado cinco xícaras de expresso e pago a conta no caixa, em seguida fecho o notebook e o guardo junto do livro na bolsa de crochê. Viro, talvez por instinto ou talvez por pura curiosidade para ver o que aquele homem estranho fazia, mas ele simplesmente não se encontrava mais sentado na mesa.
Era quase como se ele tivesse desaparecido como fumaça.
Estranho, mas pesco o celular notando que Marcos estava em silêncio e aquilo era incomum já que ele sempre me enviava mensagens sobre seu dia. Começa a chover novamente e penso que talvez pelo mau tempo ele tenha se complicado na empresa.
As gotas finas eram o suficiente para me fazer usar o casaco novamente, pensando se iria conseguir voltar para casa sem precisar abrir o meu guarda - chuva. Pelo menos era o que eu pensava antes de botar o primeiro pé para fora da cafeteria.
A chuva se intensificou como em um passe de mágica de modo que não pude mais observar a lua cheia no céu, me ensopando dos pés a cabeça, puxo o blazer e o visto. Pressionei a bolsa contra o corpo para não correr o risco de chamar atenção e acabar sendo assaltada no meio do percurso, e então, corri o mais rápido que pude pescando o celular da bolsa com uma das mãos disponíveis e chamando um Uber.
- Ora, ora, ora. Vejam só o que o destino trouxe até mim. - uma voz feminina fala alto o suficiente para que eu compreendesse que era comigo que ela falava. Assobiando como se tivesse todo o tempo do mundo a voz prossegue tranquilamente, cantarolando. - as melhores coisas realmente acontecem em uma sexta-feira treze.
Viro, gélida pelo frio da chuva e não vejo nada, puxo o casaco para mais próximo de mim, deixando suas abas para cima, tentando bloquear o frio.
Não havia ninguém na rua, nem mesmo um mendigo, os cães abandonados que eram costumeiros naquela região pareciam ter desaparecido, como se seu instinto animal os tivesse avisado para se esconder. Giro ao meu próprio eixo, procurando de onde vinha aquela voz que ria, escarnecendo de mim. Talvez minha mãe estivesse certa ao dizer que a cidade de São Paulo estava cada vez mais perigosa.
Um tremor percorre o meu corpo. Cada célula do meu organismo me dizia para correr. Porém se fosse um bandido armado, correr o alertaria e ele poderia acabar atirando em mim pelas costas, eu precisava sair o mais rápido possível dali.
Algo me empurra mas não consigo enxergar quem era, meu cabelo estava molhado por conta da chuva e colava no meu rosto, dificultando minha visão, tropeço mas consigo correr, cambaleando. Meu coração estava batendo acelerado contra as minhas costelas, a adrenalina me dizia para correr e sair dali sem olhar para trás.
Eu tento e corro. Corro o mais rápido que posso mas uma dor latente na minha barriga me impede de prosseguir e escuto uma segunda gargalhada. Caio ajoelhada no chão, tomada pela dor e olho para meu próprio corpo, uma espécie de faca estava encravada no meu estômago e minha blusa branca estava empapada de sangue.
Viro, sabendo que meu perseguidor finalmente tinha me alcançado e assim que o enxergo, grito até perder a voz. Um grito de puro pânico, que fez - se formar um sorriso sádico no canto dos lábios dela.
- V.. você? - É tudo o que consigo dizer ao recuperar a voz, ela estava mais aguda que o habitual, mas em seguida perco a chance de dizer qualquer coisa. Meu corpo era arrastado contra o asfalto e eu tremia de medo, não apenas de frio. Suas mãos, calçadas com uma luva de látex preta, me ameaçavam com a faca para que eu fingisse naturalidade enquanto algumas pessoas nos observavam cautelosamente.
Suas mãos abriam a porta do meu apartamento, duas quadras depois. O porteiro não estava no saguão e ela pôde facilmente me empurrar até o elevador, me arrastando pelos cabelos. Penso em acenar para câmera do prédio e torcer para algum vizinho notar que eu precisava de ajuda mas ela enfia a ponta da faca no meu peito esquerdo assim que nota a minha tentativa.
Tento gritar por ajuda mas ela tapa minha boca com a mão disponível e me joga contra o chão de taco da minha própria sala.
Me empurra até o banheiro principal e liga o chuveiro, enchendo a banheira, o barulho impediria qualquer um de notar o que realmente acontecia. Mordo sua mão e ela solta grunido de dor, tento gritar mas ela empurra minha cabeça debaixo d'água me afogando. Assim que consigo emergir, só me lembro de olhá - la, com um misto de espanto e ódio enquanto ela levantava a faca e com um corte certeiro cortava meu pescoço, com uma precisão na veia jugular. A veia jugular transportava sangue venoso do crânio e sistema nervoso, além do sistema do cérebro exterior e inferior. Por isso, acertar alí era fatal e uma pessoa para saber disso teria de saber sobre anatomia humana.
Logo, meu sangue enchia a banheira e a faca me golpeava outras treze vezes, arrancando meu coração junto da porção central da minha cavidade torácica. Uma morte brutal e calculada. Um assassinato que em muito de assemelhava aos rituais dos Maias ao deus Sol.
Ninguém saberia o que realmente aconteceu, nem como ela sabia tanto sobre anatomia para saber dar cortes precisos e profundos até arrancar meu coração, não saberiam que ela queria muito mais que treze mortes. Um sinal do pacto, da Magia Negra, que ela fizera com Swya, a Serpente do Paraíso que convencera Eva a comer a maçã.
Mas naquele instante, enquanto minha alma se desligava do meu corpo, eu vi em seus olhos que ela mataria treze pessoas distintas para que suas almas ficassem presas no Érebo, um lugar onde nada havia, entre os Campos Elísios, o Paraíso e o Mundo Inferior, o Inferno. Vi seu plano, sua ascensão lunática, seu desejo pela extinção da vida na Terra.
Eu estava morta, seria a primeira de uma lista extensa, usada como plano para uma vingança fria e calculada de séculos de duração. Um plano que tinha como objetivo o fim do mundo. Observo, fora do meu corpo enquanto a mulher demarcava dois números no que restou da minha camisa, escrevendo a dedo com o meu próprio sangue.
Eu estava morta? Precisava me fazer essa pergunta. Se aquilo era a morte porque ainda pensava e respirava?
Sentia que meu corpo estava boiando, emergindo para fora da água, eu ainda o sentia mas não sabia explicar como. Tento respirar mas não parecia ser mais necessário.
Uma luz ofuscante vinha em minha direção e viro o rosto para não ficar cega. E então eu desmaio.
Acordo no chão de um lugar totalmente novo, o piso e as paredes eram brancas. Uma sala clara, com pisos brancos de mármore e colunas gregas gigantescas em tons de gelo. Ainda assim, não me parecia muito com o aspecto de um hospital de São Paulo.
Minha alma parecia brilhar, semitransparente, já não sentia mais o meu corpo mas era capaz de sentir o piso, os meus pés descalços conseguiam sentir o chão de mármore branco, o frio do mármore e a aderência do chão. Observo para minhas próprias vestes, ainda usava a mesma roupa de quando fui atacada por ela, meu jeans e uma blusa social rosa bebê, tudo perfeitamente igual a quando entrei no meu apartamento exceto por um detalhe, um buraco irregular na minha camisa no lugar do meu peito.
Ela tinha arrancado o meu coração. Como um sinal de sua mágoa e angústia, sua raiva por eu ter sido a noiva do homem que ela amava. Uma paixão não correspondida que ela nunca esqueceu.
Aquele era o céu? O Paraíso? Eu estaria entrando lá sem um julgamento? Me pergunto olhando para os lados em busca de alguém, uma enfermeira, qualquer coisa na tentativa de tentar saber se ainda estava na Terra, talvez sendo socorrida. Se eu estava morta porque ainda tinha meus sistemas sensoriais? Eu podia respirar e sentir, sentia minha pele, minha roupa.
No cômodo seguinte havia uma pequena escada e três tronos dourados gigantescos brilhavam. Não se parecia muito com a imagem que eu tinha do céu quando lia a Bíblia sobre o Juízo Final.
Não havia nada, eu estava sozinha, talvez entre algum lugar entre o Céu e o Inferno.
- Olá! - chamo, esperando que alguém aparecesse me aproximando dos tronos de ouro e prata, talvez pertencentes a Deus e Jesus? E então um clarão irrompeu, descendo do alto como um raio.
O cheiro de fuligem sobe e uma nuvem de poeira levanta, me fazendo tossir, a energia do raio havia destruído parcialmente os tronos e agora surgia diante de mim uma figura que eu jamais poderia dizer que era humana.
Era um homem, mas ele jamais seria mortal ainda assim não se parecia com as imagens e pinturas de Deus ou de Jesus. Todos aqueles anos indo à igreja teriam me enganado, então?
Ele aparentava ter uns trinta anos, tinha uma pele morena em tom de chocolate derretido, dreadlocks no cabelo e uma coroa feita de ossos e ouro enfeitando sua cabeça, seus olhos amendoados me observavam atentamente. Em um absoluto silêncio.
Grito, desesperada, principalmente porque eu tinha absoluta certeza de que aquele era o mesmo homem que não tirava os olhos de mim na cafeteria, horas atrás, e busco um lugar para fugir mas tudo o que o homem faz é sustentar o seu olhar âmbar contra o meu, como se ele soubesse tudo sobre mim.
Podia escutar o som da sirene do carro de policia e da ambulância, o últimos segundo de contato que a minha alma teria com o meu corpo.
— Está tudo bem agora querida. — ele sussurra para mim, sua voz era aveludada e calma, apesar de ser grave e masculina como a de um locutor.
— Quem?... O que é você? Por quê estava me seguindo desde a cafeteria? — pergunto, assombrada. Eu tremia de medo. O homem sorri. Observo melhor suas roupas, ele parecia ter uns vinte e cinco anos e usava um tipo de manta de algo que me parecia pêlo de algum animal, um pêlo lustroso e negro, talvez pertencente a um lobo. Por debaixo da manta usava uma roupa similar a de um general, calça de camuflagem escura e uma botina preta com um cinto de couro da mesma cor, exibindo uma caveira de prata na abotoadura, que combinava com o seu anel no dedo anelar, um grosso anel de prata com uma caveira no topo e minúsculos olhos de rubi.
— Eu sou o Bob Marley. — ele gargalha alto e inclina sua cabeça para trás rindo de sua própria piada infame, batendo suas mãos nos joelhos enquanto tremia de tanto rir. Sua manta tremeluzia como se ele fosse um holograma digital por alguns segundos.
Ele estava gozando com a minha cara? Eu tinha morrido e agora estava presa a um idiota que estava gozando com a minha cara? Será que aquilo era finalmente o Inferno? Eu tinha plena certeza de que estava limpa. Nunca usei drogas. Sinto meu rosto ficar vermelho.
— Foi brincadeira. Eu sou Samuel, o Espírito do Mundo Inferior, agora falo sério. E eu não te segui naquela cafeteria, eu fui enviado até lá para buscar você. — ele sorri, como se aquela fosse a maior piada do mundo.
- Enviado por quem? Como assim me buscar? O que é um Espírito? E como assim Mundo Inferior? - pergunto com assombro, bato com força em meu rosto e consigo sentir o tapa e a ardência. Pisco, tentando compreender. Minha cabeça parecia que iria explodir. Almas poderiam sentir dor de cabeça? Se eu estava morta porque tinha essas sensações?
—Não se bata, ainda nem lhe mostrei o meu Quarto Vermelho da Dor - Samuel ri fazendo uma alusão com o livro Cinquenta Tons de Cinza da E.L. James. — E quem me enviou foi a Morte, desta vez Tânatos queria que eu visse com os meus próprios olhos.
Permaneço calada, sabia brevemente que Tânatos era o deus da morte, o que significava que eu estava mesmo morta, acho que depois de uma experiência pós morte, acreditar em uma divindade similar a Tânatos não era uma tarefa assim tão difícil, mas eu tinha muitas perguntas.
Samuel então, estica as mãos, quase como em um sinal de rendição. Na sua mão direita surge um bastão de um material que me parecia ser um tronco de árvore muito fino e escuro como piche no topo do bastão havia uma cabeça de de corvo, feito de prata e com olhos minimalistas que pareciam ser de rubi.
Ao seu lado surgem outros dois homens, um parecia ter uns vinte anos, cabelos pretos e olhos cinzas como o céu nublado. Era um garoto magricela adepto ao punk.
- Ah, isto? - ele aponta para seu bastão como se notasse minhas dúvidas.
- o Corvo é meu animal sagrado, assim como o Cisne é o seu. Faz parte da mitologia e do horóscopo celta. Tecnicamente, o Corvo é o meu signo. - Samuel debocha. - representa o que eu represento. Assim como o Chacal representa Anúbis - Samuel aponta para o garoto que sorri e acena para mim. - e o corvo de muitas formas também representa Hades aqui. - ele aponta para o outro deus ao seu lado, o garoto era Anúbis, o deus egípcio dos mortos.
- Como assim? - eu começo a me interessar. Adorava misticismos, uma parte da minha mente ainda conectada com o meu corpo sem vida, escutava os primeiros policiais chegando ao apartamento e os bombeiros cercando o local para que os peritos pudessem trabalhar. Marcos, meu pobre Marcos, como ele ficaria ao saber da notícia da minha morte?
— Vejamos... — Samuel bate seu cajado no chão, aos meus pés a terra parece começar a tremer e uma nuvem de poeira sobe, massivamente como se ali tivesse sido feita uma reação química de gelo seco. Ele parece indiferente a tudo isso e eu tremia de medo, andando de um lado para o outro próximo ao seu trono.
Grito apavorada quando o solo rompe, desabando e nós dois caímos na escuridão, paralisada, meus dedos procuram pela mão de Samuel, estava certa de que poderia confiar nele e se caísse não me arrebentaria no chão, era como uma alma gêmea conhecendo a outra pela primeira vez, uma conexão imediata. Uma nuvem de poeira sobe formando uma imagem, como um holograma sofisticado, tremulando diante dos meus olhos.
Estávamos em um lugar escuro demais, sentia que flutuávamos. A sensação era a mesma que tinha quando era criança e brincava em playgrounds no shopping da cidade, presa por cabos e suspensa no teto, acima de outras crianças. Podia sentir a presença de Samuel próximo a mim enquanto a imagem tremia, como um holograma, seguro em sua mão e ele parece sussurrar algo que não entendo.
Dessa escuridão surge um pouco de luz, apenas o suficiente para que conseguimos distinguir que não estávamos no total escuro, estávamos vendo o espaço. Podia ver estrelas explodindo próximo a nós, onde tudo parecia um Caos, identificando alguns planetas uma segunda explosão fez aparecer a Via Láctea.
Samuel nos impulsiona até mais perto e estala os dedos, naquela altura eu já não conseguia mais ficar assustada e nem tentava mais buscar lógica para saber como eu estava no espaço ou como eu estava respirando, posso ver Vênus, Mercúrio, Urano, Saturno, Júpiter, Marte e a Terra a uma distância considerável e aquilo era surreal, cientificamente falando a distância entre esses planetas não funcionava assim.
Samuel nos aproxima e posso notar que estávamos em um lugar onde ainda não havia planetas nem estrelas, tinha consciência de que, de algum modo, na Terra, o planeta ainda sofria os efeitos do Big Bang e s humanos ainda não haviam sido criados mas eu não fazia ideia de como eu sabia disso e não queria saber.
Sinto uma presença, como um grande laço quente que parecia apertar e movimentar, guiando todo o Universo, era uma entidade, um ser divino de onde nascia todo o poder. Aquilo não poderia ser real.
Era o Caos, o primeiro deus, o Início de Tudo, nascido em uma era muito antiga - era esta onde nem mesmo o Céu, filho da Terra, sequer existia - de algum modo eu sabia mesmo sem conseguir vê-lo, afinal ele não possuía rosto, forma, nem cor. Era o vazio imortal que regia o Universo e o formava segundo a sua vontade. Anterior aos deuses, aos titãs, aos monstros e aos homens. Meu conhecimento em Mitologia Grega era básico e pobre mas as palavras pareciam pipocar na minha mente.
De seu sopro surgiu uma nova energia que passou a rodear a Terra, dando cor e vida e surgindo assim as primeiras divisões do novo planeta. Montanhas surgiam e mares se formavam.
Gaia, a Terra, nascia assim e junto dela Urano, o Céu. Nascia também Tártaro, o abismo eterno e todas as divindades que o precederam. Gaia, a Terra, mãe e esposa do Céu gerou uma raça de seres prodígios, chamados Titãs. Aquilo me remetia as aulas de Biologia sobre o Big Bang e a Panspermia Cósmica, um ponto em comum entre eles que ninguém percebia, todos proviam de uma explosão por conta de uma série de fatores, mas um não excluía o outro, não exatamente. Ali eu entendia como tudo parecia ser a mesma coisa, para olhos humanos, eu poderia tentar rotular aquilo como uma "explosão" e não efeitos de um Deus.
E Caos esperou pacientemente, a estirpe que ele gerou, treze seres anteriores aos deuses e os homens, diferentes e mais fortes que o próprio Céu, de seus pensamentos, por mitose. Herdeiros de seu poder infinito e gerou novos, especialmente formados para o que viria e escondidos em seu ser imortal, forçados a viver dentro do deus, em uma incubação. Esperou por milênios até o fim do Olimpo, o fim dos deuses e o fim dos homens.
Então Caos percebe que os humanos não tinham quem o guiar e começa a caminhar entre a Terra, onde, na época os humanos sofriam com a Peste e a fome, enquanto Gaia subjugada tinha de segurar em suas entranhas, seus filhos, os Titãs por muitas eras, observando encarnado como um homem, um ser inferior a sua essência.
Observou e acompanhou todas as crises dos mortais, soprou no ouvido de Prometeu para dar - lhes o fogo, assistiu de perto a queda de Saturno e a deturpada cólera de Júpiter. Aquela forma frágil de vida, o ser humano, de algum modo sobreviveu há tudo aquilo, aqueles seres que ele poderia dizimar com um estalar de dedos.
E resolveu salvá-los. Trazendo consigo um terço das estrelas do céu, Caos esperou e entregou aos homens treze partes de si.
Primeiro nasceu Adicia, o espírito da injustiça e a personificação da maldade, pois seria a potência que dividiria o certo do errado, em seguida em seu calcanhar nascia Areté, o espírito da bondade, a excelência, a virtude e valentia, seu eterno inimigo.
Logo após nascia Diz, espírito de justiça, julgamento justo e os direitos estabelecidos pelo costume e a lei, atenta a tudo ao seu redor. De seu peito surgiu Eros o espírito do amor, este diferente do deus que milênios depois surgiria como filho de Afrodite. Este Eros era o amor primordial e bruto e do calcanhar de Diz nascia Alastor, espírito das vinganças familiares e vingança em geral.
De Eros nasce Hedilogos, deus do falar doce e a adulação e Hímero, deus do desejo sexual e Poto, deus do desejo sexual, o anseio e o desejo.
De Poto nasce Eucleia, o espírito da honorabilidade e da glória e Eulabeia, espírito da discreção, cautela e circunspecção, Eunomia, deusa da ordem e a conduta legal.
De Alastor filho de Diz, nascia Agon, espírito da concorrência, que possuía um altar em Olímpia, sede dos Jogos Olímpicos e Ergia, o espírito da ociosidade, da preguiça, da indolência.
De Ergia nasce Achlys, espírito da morte-nevoeiro, personificação da tristeza e da miséria; Adefagia, espírito da saciedade e a gula e Aidos, espírito da modéstia, reverência e respeito.
De Achlys nasce Aisa, personificação da grande quantidade e do destino e Algea, espíritos da dor e sofrimento.
De Algea nasce Alala, espírito do grito de guerra e Aleteia, o espírito da verdade, da veracidade e da sinceridade. De Aleteia surge Achos, a angústia e Ania, a dor.
De Achos nasce Lupe, a pena e a tristeza e Alke, espírito da destreza e coragem. De Lupe nasce Amekhania, espírito da impotência e falta de meios e as três irmãs, as anfilogías, espíritos das controvérsias, do debate e da contenção.
Anaideia, espírito da crueldade e impiedade e as Androctasias, espíritos dos massacres no campo de batalha em seguida nasce Angelia, espírito das mensagens, notícias e proclamas e Ápate, espírito do engano e da fraude
Afeleia, espírito da singeleza, filha de Angelia gera também Aporía, espírito da dificuldade, a perplexidade, a impotência e a falta de meios e Aporía faz nascer as Arae, espíritos das maldições.
Das três irmãs nasce Ate, o espírito da ilusão, o enamoramento, a paixão, a loucura cega, imprudência, e a ruína e sua irmã,Bía, o espírito da força, o poder, a força física e a coação.
Bía gera Kairós, espírito da oportunidade e Coro, espírito da saciedade
Coro gera Deimos, espírito do temor, medo e o terror, Dolos, espírito da fraude, o engano, o ardil e as más artes e Disnomia, o espírito da anarquia e a má constituição civil,
Disnomia é mãe de Disebia, o espírito da impiedade e Irene, a personificação da paz e da riqueza
Irene faz nascer Ekecheiria, espírito da trégua, armísticio, e o cesse de todas as hostilidades e Eleos, espírito da piedade, caridade e compaixão.
Eleos e Irene geram Elpis, espírito da esperança e expectativa e Epifron, espírito da prudência, sagacidade, consideração e o esmero. Epifron gera Eris, espírito de luta, a discórdia, a discórdia e a rivalidade.
Eufema, o espírito das palavras de bom augúrio, aclamação, elogios, aplausos e gritos de triunfo em seguida vomitou de seu ventre Eupraxia, espírito da boa reputação e boa conduta e o Caos, cansado e sofrego continuou a parir seus filhos de sua mente senil.
Logo nascia também Eusebia, espírito da piedade, a lealdade, do dever e do respeito filial, Eutenia, espírito da prosperidade e a abundância e Gelos, o espírito do riso. Apenas para em seguida nascer Geras, o espírito da velhice Harmonía, deusa da harmonia e a concordia e Hebe, deusa da juventude. Assim como Hedoné, espírito do prazer, desfrute e deleite; Heimarmene, personificação do destino e Homados, espírito do fragor da batalha.
Nasceu também Homonoeia, espírito da concordia, da unanimidade, e da unidade da mente, Orco, espírito dos juramentos e Hormes, espírito do impulso ou esforço (para fazer uma coisa), o afã, o estabelecimento de um mesmo em movimento, e começar uma ação assim como nasceu Hibris, o espírito da conduta escandalosa e Hipnos, deus do sonho da mente do Caos dilacerado.
Os hisminas, espíritos da luta e do combate surgem em seguida e Yoque, espírito da busca na batalha os acompanha perseguido por Kakia, espírito do vício e maldade moral e Kalokagathia, espírito da nobreza.
As Keres, espíritos da morte violenta ou cruel e eternas irmãs seguem logo após e Coalemo, o espírito da estupidez e necessidade enquanto o firmamento sequer se formava, vinha a luz também Cratos, espírito da fortaleza, força, poder e governo soberano e Cidoimos, espírito do fragor da batalha, confusão, barulho e agitação sucedidos por Leteo, espírito de falta de cor e o esquecimento, e do rio do mesmo nome e Limos, espírito de fome. Junto de suas filhas, as Litae, espíritos da oração, Lisa, o espírito da raiva, a fúria e a raiva nos animais e os Macas, espíritos da luta e do combate. Irmãos naturais dos Manias, espírito ou espíritos da loucura e frenesi e de Momus, espírito de burla, da culpa e da censura e Moros, o espírito da fatalidade. Moros, os pais naturais das Neikea, espíritos das rinhas, brigas e queixas. Que geraram Nomos, o espírito da lei e Oizus, o espírito da aflição e a miséria.
Os antagonistas naturais: Oniros, espíritos dos sonhos e Epiales, espírito dos pesadelos nasceram logo após, estes eram seres divinos anteriores a Morfeu, deus dos sonhos, que toma a forma dos seres humanos, que tinha como fiel companheiro Fantaso, também filho do Caos e o espírito dos sonhos de fantasia, que toma forma dos objetos inanimados e seus irmãos Fobétor e Icelos, espírito dos pesadelos, que toma forma de animais.
Filha de Icelos nasceu também no Caos inicial, Peitarquia, espírito da obediência e Peito, o espírito da persuasão e a sedução assim como Penia, espírito da pobreza e necessidade e Pentos, espírito da tristeza, luto, e o lamento seguidos por Pepromene, personificação da quota do destino, similar a Heimarmene e Feme, espírito do rumor, relatório.
Vejo Filofrósine espírito da amizade, amabilidade, dos bem-vindos e a protetora da família vagar sem corpo ou forma pelos humanos até adentrar uma casa antiga onde uma família saudava o nascimento de sua primeira filha. Os outros filhos do Caos, conhecidos pelos gregos como Espíritos, procuravam também na Terra, por Hospedeiros, humanos dignos de suportar sua essência imortal e assim fazer a profecia, transmitida pelo Oráculo de Delfos se cumprir.
As paredes estavam descascadas e a cor desbotada mas eu reconheceria aquela construção em qualquer lugar. O ser imortal mergulhou em meu corpo, me possuindo enquanto ainda era um bebê.
Caindo para trás a visão fumacenta se desconecta de mim, grito de pavor, horrorizada. Incapaz de fazer algo além, eu estava em choque assistindo a tudo.
Naquele mesmo instante, na imagem fumacenta, Coto, a deusa que corta o fio da vida, levantou sua tesoura e selou meu destino.
Eu era... Eu era uma deusa?
- Não Camille Ramirez - Samuel ri em seu trono.
- Você é uma Hospedeira, uma mortal, uma humana que abrigava um parasita imortal, um filho do Caos, conhecido pelos gregos como Espíritos. Quando morreu, seu Espírito resolveu te salvar para que você cumpra o seu destino. - Samuel gesticula para que eu me aproximasse e toca em meu rosto apontando para o trono vazio ao seu lado.
- Seu corpo havia sido escolhido por eras para ser o receptáculo de uma Filha do Caos, a divindade mais poderosa a preencher o Universo. - olho para Samuel para me certificar de que ele também estava vendo o que eu via. Samuel sustenta o olhar e sorri.
- Eu sou o Espírito do Mundo Inferior, Camille, você está no Inferno e em breve. - Ele sorri terne, como se lesse meus pensamentos. - Será minha esposa.
Enquanto eu estava no Inferno, como Marcos estaria na Terra?
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