O Templo da Morte.
Na manhã seguinte, a sensação do calor me acorda.
Sinto o suor escorrer por minhas costas onde minha pele toca o corpo de Esteban, sinto o peso quente de seus braços, e meu nariz arde pelo Sol em meu rosto...
O Sol em meu rosto!
- Esteban, acorde!
Eu me levanto, eufórica como uma criança em véspera de Natal. Esteban abre as pálpebras, lentamente, como alguém que não quisesse acordar, esfregando os olhos.
- Isso é... Sol?
Esteban se levanta, parecendo tão feliz quanto eu. Ele se adianta até a saída da caverna e fecha os olhos, com uma expressão de prazer estampada em seu rosto.
Sob a luz do dia, ele percebe, quase ao mesmo tempo que eu, que estamos muito pouco vestidos.
Um pouco constrangido, vejo Esteban colocar rapidamente uma bermuda, sentando-se em uma pedra, enquanto descasca uma manga.
Sua reação me pega de surpresa. Fico imaginando se ele está pensando que eu acordaria arrependida pela noite de ontem...
Ou se ele acordou arrependido...
Eu me sento ao seu lado, enquanto ele me passa um pedaço de fruta e vejo que ele não recua. Esteban não tira os olhos de mim, apesar de não me encarar diretamente.
Estico as pernas, vestida apenas com minhas roupas de baixo e a camiseta dele que acabei alcançando ontem à noite. Vejo Esteban perder seu olhar em um filete que escorreu por meu queixo, que limpo com a ponta de meu polegar.Por um momento, penso que ele parou até de respirar...
- Você está surpreendentemente quieto esta manhã, Esteban...
Minhas palavras o deixam desconcertado.
- Não é isso... É que... eu queria...eu preciso saber..
Esteban se ajoelha à minha frente, apoiando suas mãos em minha cintura.
Uma expressão de timidez atravessa seu rosto. Seu desconforto é adorável.
- Você ainda é completamente minha por hoje também?
Jogo os braços sobre seus ombros, beijando sua testa.
- Cento e dez porcento!
Esteban sorri, parecendo aliviado.
Ele me beija com delicadeza. Suas mãos ágeis sobem por minhas costas, por baixo da camiseta.
Nos deixamos ficar por alguns momentos imersos neste beijo, sem nos aprofundar.
Ambos sabemos que temos uma missão a cumprir e temos que aproveitar o tempo a nosso favor...
Nos separamos, concentrados em revisar o itinerário do dia.
- A maior parte do caminho hoje está na subida. Sinceramente, não sei como faríamos com a chuva...
- Parece que nossa sorte está começando a mudar, Esteban!
Começamos a desmontar nosso acampamento. Sinto um tapa de leve em meu quadril enquanto me abaixo para pegar minha bota.
- Hei!
Ele me abraça por trás, depositando um beijo em meu ombro.
- Por mais que eu goste de ver você assim, prefiro que esteja mais vestida para floresta...
Esteban se afasta, com um sorriso provocativo, terminando de vestir sua roupa de caminhada.
Terminamos de juntar nossos equipamentos, e prosseguimos nossa viagem.
O dia sem chuva foi providencial. Caminhamos por cerca de duas horas até chegar na base da montanha. Esteban checa cada detalhe cuidadosamente no mapa feito a partir dos relatos de Eliza. Já li o livro tantas vezes que as paisagens são quase familiares para mim.
Quando começamos a subir, o cansaço dos últimos dias pesa, porém, a sensação reconfortante do Sol e dos sorrisos luminosos de Esteban me ajudam a seguir em frente.
Depois de duas horas de escalada, paramos, famintos, para almoçar. Eu recosto minha cabeça, silenciosamente, sobre o ombro de Esteban, enquanto a fogueira esquenta nossa comida. Ele observa o tablet.
- Pelo mapa de Eliza há um riacho, não muito longe daqui... Pensei se você gostaria de uma pausa... para um banho decente.?
Vejo a insinuação em seus olhos e é impossível resistir a ele. O céu parece inacreditavelmente limpo e o suor começa a ensopar nossas roupas.
- Parece perfeito.
Seguimos, depois de comer, através da floresta, até uma clareira onde um pequeno veio d'água caia em uma cachoeira, formando um lago cristalino.
Jogo, irrefletidamente, minha mochila para o lado, tirando minhas roupas, sendo rapidamente seguida por Esteban.
A água está inacreditável.
- Sol, comida quente, um banho de verdade... Acho que hoje está sendo realmente um bom dia, preciosa...
Esteban se banha a poucos metros de mim.A água escorre por sua bela figura enquanto ele se lava. Esteban flagra meu olhar e sinto meu rosto corar. Ele se aproxima, passando os braços ao redor de minha cintura. As sensações que seus beijos e suas carícias me causam fazem com que eu me esqueça por um momento de minhas responsabilidades.
- Você é muito distrativo, Esteban... Você poderia ser só um pouco menos bonito?
Ele ri, com vontade.
- Preciosa, você preferia que eu fosse um velho decrépito?
- Definitivamente não...
Quanto retomamos, nossos sorrisos cúmplices, se apagam em meio à dificuldade progressiva da subida.
A mata se torna mais densa e o declive mais agudo. O sol já começa a se por quando finalmente alcançamos um trecho plano.
Estou sinceramente exausta.
- Pelo que estou vendo no mapa, talvez mais uma hora de caminhada e devemos estar diante das portas da cidade perdida. Preparada?
Sorrio para ele.
- Jamais estive. Mas isso nunca nos impediu...
As últimas luzes do dia começam a se apagar. Uma sensação sombria de despedida toma conta de mim. Tenho vontade de parar, mas as vozes da floresta se fazem cada vez mais presentes. Como em uma brincadeira de crianças, ela parece me guiar as cegas pelo terreno...
Você está perto... muito perto... aguente apenas mais um pouco...
Esteban enxuga o suor de sua testa.
- Segundo o mapa, encontraremos a cidade depois daquela subida, mas eu ainda não vejo nada que se pareça com uma construção
Algo em meus instintos me diz que estamos na direção certa, mas a normalidade aterradora da paisagem é inegável.
- Talvez tenhamos que chegar lá para descobrir...
A última subida parece ter valido por todo o resto do dia. Estou tão perto daquilo que vim procurar, sem ter a menor ideia do que seja e do quanto isso poderá me ajudar.
Tudo isso, baseado na fé cega nos escritos de um livro de uma pessoa que nunca sequer conheci...
Cada passo parece uma loucura maior, por estar no meio de uma floresta tropical, procurando pelo inalcançável...
Tento me concentrar em uma das conversas que tive com Sebastian, naquela última vez em que disse ele que seguiria o caminho de Eliza.
Quando manifestei minhas dúvidas, ele simplesmente me disse.
Eliza é a pessoa mais brilhante que já conheci. Eu abandonaria tudo e a seguiria em cada passo simplesmente para estar perto do que a fez ser quem ela era. Mas ela deu essa missão a você, e não a mim... E em se tratando dela, certamente você encontrará muitas coisas boas.
E ele estava certo.
Certamente já encontrei muitas coisas boas. Muitas coisas que eu jamais experenciaria se não tivesse nas circunstâncias em que estou.
Penso em quantas pessoas não tiveram a mesma sorte, presas por responsabilidades da vida. Quantas que, ainda que jamais tivessem que pensar sobre a própria morte, foram embora sem qualquer visão tão extraordinária? E quantas destas vidas se foram, sem experimentar a aventura e o desconhecido...
Um senso de propósito invade meu coração. Nem mesmo o fato de encontrarmos uma clareira vazia ao final de nossa subida me tira dessa disposição.
Não há absolutamente nada no lugar descrito por Eliza como a cidade perdida de Supay.
Esteban anda ao redor, parecendo confuso e frustrado, revistando cada arbusto, como se esperasse encontrar uma passagem secreta, mas é em vão. A clareira não parece revelar nada de anormal.
- Era para ser aqui! A descrição era exatamente essa! Veja!
Ele balança suas anotações do livro de Eliza.
- A pedra em forma de ponta ao leste, o Jacarandá à frente! E o penhasco à oeste... Tem que ser isso!... Não acredito que viemos tão longe para uma obra de ficção!
Esteban continua a conjecturar, mas algo em meus instintos me diz que não estamos diante de um beco sem saída.
Uma forte energia emana deste lugar e eu me deixo absorver por ela.
Subitamente, a neblina começa a invadir minha visão periférica. A névoa, tão familiar da floresta, entorpece meus sentidos.
Victória... Venha, Victória...
O som parece atrair cada fibra do meu ser.
Minhas pernas obedecem pesadamente ao chamado. A cada passo, sinto algo de sobrenatural se materializar ao meu redor. A energia me chama de dentro do precipício.
A voz se torna mais forte conforme me aproximo. Vejo uma pedra branca rolar, quando me aproximo, caindo na imensidão abaixo de mim.
A segunda parte de meu sonho retorna à minha mente.
- É aqui Esteban. A cidade perdida está bem aqui!
- Ficou doida, Victória? Não tem nada aqui, a não ser este buraco enorme!
- Meu sonho me trouxe até este lugar, mas há algo... eu preciso fazer algo...
Olho para os céus. Um condor sobrevoa o abismo em círculos. Ele mergulha dos ares em direção ao fundo do vale.
É preciso cair para se levantar
Tudo se torna claro
- Eu tenho certeza de que é aqui. Eles estão me chamando para entrar...
Uma expressão desdenhosa se desenha em seu rosto moreno, segundos antes dele compreender minhas intenções.
Esteban parece em choque.
- Victória, eu já ouvi falar nisso, é a loucura da floresta.... Preciosa, eu sei que você acha que algo vai acontecer se você pular, mas não há nada lá embaixo... não há nada...você apenas vai se machucar... e...
Os sons vindos do precipício insistem.
Seja corajosa, eleita dos Zingari!
- Não... não faça isso... Por favor, preciosa!
Sua voz é suplicante. Vejo em seus traços que milhares de planos passam em sua mente para me trazer de volta.
Esteban claramente acredita que eu enlouqueci.
Não o culpo. Não fosse tudo o que passei, eu também acreditaria que é loucura.
Sempre ouvi as lendas das sereias que atraiam os marinheiros para uma armadilha mortal, mas esta voz...
Eu me sinto lúcida... E em paz...
Sinto que posso confiar nas intenções de seu convite...
Meus pés estão tão próximos da borda que derrubo alguns cascalhos em direção ao chão.
Victória.... cumpra seu destino! Venha...
Eu me afundo no olhar franco de Esteban. Há um desespero doloroso estampado em seu belo rosto.
- Esteban, lembra-se quando prometemos que você só me seguiria até onde pudesse? Essa é a hora de me deixar ir... Eu não sei começar a agradecer por ter tido você comigo esses dias. Você me deu uma coragem que não imaginei que pudesse ter... Eu... eu sinto muito...
- Não! Por favor... Fique comigo!
A última visão que tenho é Esteban se precipitando em minha direção, enquanto salto para o vazio.
Deixo meu corpo cair, ouvindo seus gritos de desespero cada vez mais distantes.
A culpa que sinto por fazê-lo sentir-se assim é rapidamente dissolvida pelo entorpecimento.
Não reconheço mais o cenário que se tornou tão familiar da floresta.
Tudo o que vejo são luzes enevoadas ao meu redor.
Cada músculo de meu corpo começa a relaxar, como se eu estivesse envolvida por um cobertor, quente e macio.
Eu me sinto pastosa, como se meu corpo fosse formado de uma substância etérea, deixando todo o peso de minha musculatura dolorida para trás. Nada poderia me ferir neste estado.
Subitamente, percebo que não estou mais em movimento. Tenho uma auto consciência de minhas costas, apoiadas em uma superfície de pedra dura.
Victória... Victória...
Abro os olhos lentamente, me permitindo sentir o deslumbramento da visão que me cerca.
A descrição de Eliza é exata.
A cidade branca se descortina aos meus olhos. Cercada pela montanha, uma grande cobertura de vegetação impede a sua visão por olhares indiscretos.
Apesar disso, a luminosidade é tão bonita quanto a de uma manhã de outono. As pedras brancas, a água caindo em pequenas cachoeiras, a vegetação que escala seus muros...
Eu quase grito de empolgação por estar aqui... É impressionante!
Como queria poder dividir essa vista com Esteban! Como lamento fazê-lo passar por isso!
Depois de tanta lealdade que criamos neste caminho, sinto que Esteban merecia uma despedida mais justa... A angústia de não saber se o verei de novo se abate sobre mim por um momento.
Se Nicolae entrou debaixo de minha pele, tocando cada pedaço do que sou e do que eu poderia ser, Esteban me abraçou quando sai do conforto de mim. Sempre serei grata a ele.
Espero que a floresta o proteja em sua volta, como nos protegeu até agora...
Sinceramente, não tenho ideia do caminho que seguirei para voltar desse belo mundo que me cerca...
Belo e estéril...
Ando ao redor, sem encontrar qualquer traço de presença humana.
O que exatamente eu vim fazer aqui?
Uma sombra sobrevoa minha cabeça. Rapidamente, reconheço o condor que nos seguiu na floresta, pousado à minha frente, em um lindo balcão de pedra.
- Olá, amigo! Nos encontramos de novo... Você sabe o que preciso fazer aqui?
O condor abre as asas, com um ruído. Estou realmente falando com um pássaro...
Eu devo estar ficando maluca...
- Você poderia me mostrar o caminho?
A ave de rapina alça voo. Eu a sigo, através de escadarias que levam para a torre da cidadela. Depois desse dia, não achei que conseguiria subir tantos degraus. Alcanço a torre, ofegante. Um enorme espelho se encontra na sala.
Sinto que encontrei o objeto que me chamava.
Eu me aproximo, lentamente. Minha última experiência com espelhos mágicos não foi exatamente boa...
Olho para o espelho, esperando ver a outra Victória. Mas há algo diferente. Ao invés dos olhos negros e do fogo, seus olhos são pálidos como o azul das geleiras. Contornando minha imagem, uma grande luz branca me envolve.
Uma nova nuance de meus poderes parece tomar conta de mim. É uma energia pacífica, calorosa.
Eu me concentro no espelho e um novo portal se abre.
Um extenso vale florido se descortina até se perder em minha visão. Eu caminho, através das flores, atraída por um magnetismo irrefreável.
Não sei para onde estou indo, mas meus pés me guiam.
Minha sensação é de que se passaram horas, caminhando sem rumo...
Paro quando encontro uma figura humana à minha frente. Suas vestes brancas são fluídas e um longo manto esconde seu rosto. Atrás do manto, longos cabelos cacheados caem em cascata, chegando quase até sua cintura. Uma força poderosa emana de sua direção, mas não consigo destrinchar suas intenções.
Eu me coloco em posição de defesa, tentando conjurar o fogo, mas nada acontece.
- Seus poderes são inúteis aqui, criança...
Eu olho para a criatura a minha frente. Ela é intransponível.
Tento me tranquilizar. Sem meus poderes e sem armas, ela já poderia ter me esmagado se assim desejasse. As bordas de sua força saem do alcance de minha percepção.
- Eu estou sonhando?
- Não, criança. Este mundo é tão real quanto o que você conhece. Mas ele está além de sua compreensão. Você não pode existir aqui, senão como minha convidada.
- Quem é você?
- Os homens me chamaram por muitos nomes... El diablo... La muerte... Supay... Mas sou apenas uma guardiã da fronteira do eterno ciclo de fins e começos. A portadora da verdade. E a sua última mensageira.
A entidade a minha frente é algo além de minha compreensão. O fato de não ter mais nada para perder me enche de coragem.
- É por isso que você estava me chamando? Eu vim até aqui para encontrar meu fim?
Sinto que a criatura sorri por baixo do pano.
- Não, criança. Embora o sopro da vida tenha sido tirado de muitos dos que vieram aqui, atrás de poder e de destruição, não é isso que irei levar de você...
Olho para a criatura com um temor ancestral. O teor de suas palavras me aterroriza.
- Por favor, não leve meus amigos... Leve a mim!
A guardiã levanta uma de suas mãos. Eu me calo, imediatamente.
- Você não pertence ao outro lado deste portal, criança... Você ainda tem um destino a cumprir. Mas você está enganada sobre isso, eu jamais levei alguém em seu caminho...
Subitamente, sinto uma fraqueza me dominar. Meus joelhos desabam sobre o chão.
- Precisamos nos apressar, eleita! Você não pode ficar aqui por muito tempo! Estou aqui para ajudá-la, com duas verdades. A segunda será de graça, e é a que você veio buscar. Porém a primeira terá um preço. Que você decidirá se deseja ou não pagar. Mas cuidado! A sua decisão poderá mudar o destino de todo o mundo! Escolha com sabedoria...
Assinto, respirando profundamente.
- Estou pronta.
A guardiã assobia. O condor se aproxima, em um voo rasante, pousando sobre o chão. Olho para ele, intrigada.
- Revele-se!
Uma forma humana começa a se formar onde antes estava a ave. Um homem jovem que deve ter pouco menos de quarenta anos surge a minha frente, e de certa forma, é como se eu o conhecesse. Algo de extremamente familiar emana de seus traços. O nariz arrebitado, os lábios tão bem desenhados, a sobrancelha arqueada, o rosto quadrado... São tão familiares que encontram eco em meu coração.
Mas não é o rosto certo, não é ele... O homem me observa com seus olhos castanhos...
No sonho, ele falou com comigo com a voz de meu irmão...
A verdade repentinamente me ilumina, com uma alegria indizível.
- É Raí! É o irmão de Esteban! Ele está vivo!
Antes que eu consiga me aproximar dele, o homem volta a se transformar em pássaro. Vejo o condor se elevando sob os céus.
- Por favor! Liberte-o!
Minha voz suplicante não parece comover a criatura.
- Não tenho poderes para isso. Para devolver a Raí a forma humana, é preciso encontrar o Espelho da Verdade, no templo de Kat-A-Quilla e realizar o ritual antes do próximo Solstício de inverno ou ele ficará preso para sempre na forma de Condor!
-O próximo Solstício... Mas isso nos dá...
Menos de um ano.
Olho para a guardiã, determinada.
- O que é preciso que eu faça?
- Eu darei a você todo o caminho para chegar ao templo e toda a mágica necessária para desfazer o feitiço! Mas lembre-se! Se você aceitar essa informação, aceitará que algo seu ficará para trás....
- E eu posso saber do que se trata?
- Sim. O preço desta revelação é abrir mão de seus poderes.
Levo as mãos aos meus cabelos, desesperada.
Como posso me confrontar com uma criatura do submundo com as minhas mãos vazias... E quanto à Viktor e todos os vampiros que já ameaçaram meu caminho? Como cumprirei o que preciso fazer?
Ando de um lado para o outro.
Céus, eu não posso!
Não agora...
Talvez depois... Esteban ainda não sabe sobre o irmão, eu poderia voltar depois de ter eliminado a criatura...
Subitamente, a vergonha me toma.
A outra Victória aparece ao lado da criatura. Ela segura uma pedra em chamas.
Meu lado Zingari, contra o qual lutei tanto...
Mas que esteve lá durante todo esse tempo, apenas esperando uma brecha em minhas crenças.
E quando senti-a acordando, intensa, livre, imprevisível... Ao invés de me assustar, eu gostei cada vez mais dela.
Eu encaro seu olhar e ele tem algo que capto imediatamente.
Coragem.
Talvez nunca tenha havido outra Victória. Apenas uma tentando juntar suas partes e tentando não se abater pelas ameaças que transpassaram meu caminho.
Ergo minha cabeça em direção a guardiã.
- Faça o que for preciso.
A outra Victória entrega a pedra a guardiã. As chamas se apagam e a pedra se torna branca.
Seus olhos se tornam claros, como os meus. Ela parece feliz. Uma lágrima escorre em meu rosto, e olho em sua direção.
- Obrigada! Por tudo o que você me ensinou.
Eu a vejo esvanecer-se, através da paisagem.
- Não sinta por ela. Ela ainda existe, dentro de você, eleita, ela sempre será parte de você... Venha...
A guardiã me estende a pedra. Toco a rocha e uma sequência de imagens se desdobra em minha mente.
Todo o conhecimento necessário para libertar Raí está na palma de minha mão.
- Entregue-a a Esteban! Com isso, ele será capaz de salvar o irmão a tempo... Você deseja saber mais, criança?
Sorrio, através de minha desolação.
- Sim. Eu estou pronta.
A guardiã senta-se a minha frente.
- Há algo muito pior do que a morte lançando as sombras em seu destino. Uma força maligna que há muito tempo vem causando desequilíbrio entre os mundos... Seus olhos estão sobre você e seus antepassados, noites e dias. Uma maldade antiga, que não se pode nomear...
O Inonimatus...
- E você está aqui para colocar um fim neste desequilíbrio. Quando o Inonimatus criou os imortais, as bruxas e os lobisomens, ele desafiou o ciclo natural da vida e da morte necessária para o renascimento.
A magia não deve existir nesta forma no mundo dos homens, e isso está aos poucos, causando o colapso dos outros mundos! Você deverá colocar um fim ao reinado de terror desta criatura!
Suas palavras se encravam em meus pensamentos como um punhal.
- Mas como? Como posso combatê-lo? Eu não sei o que devo fazer! Principalmente agora que não tenho mais os meus poderes...
A guardiã me olha, com misericórdia.
- O Inonimatus nem sempre foi uma criatura má, eleita. Seu mundo era um paraíso, como este que a cerca. O guardião passou por uma grande dor, que deformou seus poderes e o transformou naquele ser abjeto que tem sede por destruição!
- Mas guardiã, eu sei que parece um absurdo... Mas nem tudo naquele mundo era destruição; eu senti! Há beleza e há inocência...
A guardiã balança a cabeça.
- Você deve ter sentido a impressão que sua presença trazia a aquele mundo... Ele quer voltar a ser o que era e por isso ele se apega a qualquer resquício de bondade! Mas enquanto houver um espinho encravado no seu cerne, ele sempre lançará sombras para as criaturas que o Inonimatus amaldiçoou!
Os irmãos Zingari cometeram um crime tão hediondo que seu espírito se rompeu, e parte dele e de seus descendentes ficou para sempre presa no mundo do Inonimatus. E é esta parte aprisionada que dá o poder a ele de influenciar o seu destino. E também através dela, que a magia negra dos Zingari deriva.
Eu não estou convencida com as palavras da guardiã, mas ainda tenho muito com o que lidar.
- Então é o fato do meu destino estar sempre ligado ao do Inonimatus que machucava as pessoas ao meu redor?
A guardiã se aproxima de mim.
- É exatamente isso... Ou pelo menos, era. Quando aceitou voluntariamente abrir mão de seus poderes, sacrificando-se em troca de alguém, você desfez a ligação entre vocês.
Eu não consigo impedir minha boca de se abrir com surpresa. Quero gritar, quero pular, mas meu corpo está paralisado pelo medo de ter entendido errado as palavras da guardiã.
- I-isso significa... o que eu acho que significa?
A guardiã assente.
- A partir de agora, você está livre de seu passado Zingari. Sua existência não é mais uma ameaça para aqueles que a cercam.
Foi como se subitamente o peso do mundo tivesse sido subtraido de minhas costas.
Não, isso nem remotamente resolve meus problemas. Ainda há o acordo com Viktor Bartholy, ainda há a profecia...
Mas eu penso nos rostos dos Bartholy... Sarah... Sebastian... Esteban. Eu poderei abraçá-los sem temer por eles e isso me traz uma alegria imensurável...
- Eu preciso voltar, eu preciso...
- Acalme-se, criança. Há mais.
Eu me sento, tentando concentrar meus pensamentos.
- Você ainda tem um papel a desempenhar. Você chegou até aqui guiada por seus instintos como Zingari. Você jamais poderia vencer a criatura enquanto um pedaço de sua alma estivesse ligado a ela. Mas agora, está na hora de você se reconciliar com sua outra parte...
Olho para a guardiã, esboçando uma compreensão.
- A metade Veidas? Devo procurar por meu pai?
Ela assente.
Terei que procurar a informação que tenho tentado a todo custo evitar... A que vem assombrando meus pensamentos...
Serei eu filha daquele homem tão terrível?
Afundo minha cabeça entre as mãos.
- Há um grande segredo que libertará o destino de todas essas criaturas. Mas para revelá-lo, você deverá voltar ao lugar onde tudo começou... Você deverá procurar pela única testemunha da traição Zingari....
Eu me sento, tentando processar a informação. Ninguém poderia testemunhar algo tão antigo e estar vivo! A não ser que...
A ideia me causa calafrios.
- Eu devo falar com um dos vampiros originais?
- Você é inteligente, Victória. Mas não há originais. Esses que assim se auto intitulam, são os primeiros convertidos que assumiram o poder através de uma grande traição. Há apenas um original. O imortal criado pelo guardião. Você deverá libertá-lo... E é para encontrá-lo que você precisará seguir os passos que seu caminho Veidas indicar!
- Para libertá-lo terei que combater os vampiros? Como farei isso sem meus poderes?
- Nosso tempo acabou, eleita. Você já tem as respostas que você precisa. E lembre-se...
É preciso esvaziar antes de encher... Confie nos seus instintos!
A voz distante pulveriza minha consciência. A mesma névoa me envolve até que sinto minhas costas retornarem ao chão. Sinto o cheiro da grama, e da floresta, assim como o calor em meu corpo.
Abro os olhos, encontrando um olhar resignado de Esteban. Uma compressa molhada está sobre minha testa.
- Mais uma síncope, ou outra caminhada pelo mundo dos mortos?
Eu me sento, lentamente, encarando-o.
- O que exatamente aconteceu?
- Você desmaiou, assim que chegamos aqui!
Minhas memórias não são exatamente essas... Eu agarro de suas mãos a garrafa de água que ele me oferece.
Céus, estou com muita sede!
- Devagar, preciosa, desse jeito você vai se engasgar!
- Você não se lembra de nada mais? De discutirmos? De eu mergulhar no abismo?
Esteban sorri para mim um sorriso luminoso.
- Acho que algumas coisas aconteceram somente em sua cabeça, preciosa. Mas pode ter certeza que se você tivesse uma ideia doida como essas, eu a amarraria no tronco daquela árvore ali...
Eu me questiono por um momento, levando instintivamente a mão até meu bolso.
A pedra ainda está aqui.
Minhas memórias são tão reais quanto o olhar preocupado de Esteban sobre o meu rosto.
Seguro a rocha, sentindo sua energia na palma de minhas mãos.
- Esteban, eu sei que parece loucura...Mas eu estive no templo de Supay, tenho certeza.
Ele me olha surpreso, com um ar risonho.
- Você teve foi uma bela de uma insolação, preciosa!
Minha expressão séria faz com que seu rosto se feche um pouco. É mais fácil mostrar do que explicar...
- Abra sua mão...
Esteban estende uma mão em minha direção. Eu coloco a pedra sobre ela, sem soltar minha mão.
Compartilhamos as mesmas memórias. Deixo o artefato mágico contar sua história.
Seus olhos se abrem ao final.
- Meu irmão... meu irmão está vivo!
Esteban se lança sobre mim, me abraçando e cobrindo meu rosto de beijos.
- O Condor, meus sonhos... agora tudo faz sentido...
Sua alegria por um momento se ensombrece. Vejo o brilho de culpa em seus olhos enquanti seus braços caem ao lado de meu corpo...
- Eu tenho muito pouco tempo... sinto... Eu preciso procurá-lo, preciosa...
Sorrio para Esteban com carinho. Ele se entristece por quebrar sua promessa de me seguir.
Ele não me deve absolutamente nada.
- Eu sei... Não se preocupe. Eu também tenho meu caminho para seguir, Esteban! Eu sou muito, muito grata pelo tempo que tivemos! Sempre vou ser!
Esteban se aproxima de mim, tomando meus lábios, com uma mão em minha nuca.
Nos abraçamos, completamente conscientes de que as últimas badaladas de nosso tempo juntos já haviam começado a soar.
- Seu coração sempre esteve certo, preciosa. Nossos caminhos seguirão por lugares diferentes... Tentei ignorar, mas no fundo eu também sabia... No entanto, você se tornou tão importante para mim que é difícil aceitar que não posso ficar com você!
- Alguns infinitos são menores que outros... Acho que vi isso em algum filme...
Ele ri.
- A frase não era bem assim, preciosa...
Esteban me observa com carinho.
- Ouça... Precisarei de alguns dias em Arequipa. Preciso passar um tempo com meus pais, fazer uma revisão em meu avião... Eu estava pensando... se você não gostaria de ser completamente minha.... por mais alguns dias...
Eu o observo, acariciando seu rosto.
- Alguns dias para pensar em meus próximos planos não me fariam mal...
Nossa volta foi completamente diferente de nossa vinda.
A floresta parecia estar em paz com nossos passos. As vozes e as névoas silenciosas que escureciam nossa visão, não nos seguiram pela floresta ou pelo rio.
Depois de quatro dias luminosos, chegamos à Iquitos, e minha vida parecia retornar aos poucos para mim...
Passei algum tempo dedicada a assistir os vídeos que Lorie havia me mandado durante minha ausência. Ela não parecia caber em si de felicidade quando me viu.
Troquei e-mails com Sebastian, contando sobre toda nossa jornada até aqui... o Templo, a floresta, as revelações sobre o irmão de Esteban...
Recebi notícias de que nem tudo ia bem em Mystery Spell. E a informação dolorosa, porém esperada, de que Nicolae e Sierra agora eram realmente um casal...
Guardei este luto em algum lugar dentro de mim e o enterrei sob meus ossos.
Eu ainda precisava lutar por minha vida e não podia deixar de seguir em frente.
Decidida a saber sobre o meu pai, descobri o endereço da família de minha mãe, na Itália através de sua ficha. Sei, por Sebastian, que ela saiu de Mystery Spell para voltar para o velho continente, pouco antes de sua morte.
Não sei se estou pronta para encontrar meus avós, mas reviro o endereço em minhas mãos,como quem reza um terço.
A belíssima paisagem de Arequipa enche meus olhos, do balcão do apartamento de Esteban.
Ele não mentiu quando disse que não precisava de meu dinheiro...
A lua cria um contorno sobrenatural, iluminando os vulcões e as nuvens que o vento leva, rapidamente, criando os limites desse oásis no deserto andino.
Sinto as mãos de Esteban abraçarem minha cintura, e seu rosto tocar meu ombro. É estranho, depois de tantos dias na selva, vê-lo tão bem barbeado, com o perfume caro que sua condição permite e com roupas finas.
- Pronta para sua próxima grande aventura?
Olho para ele, alisando seu peito sob a camisa social.
- Não com estes sapatos...
Ele sorri. Parecemos um casal normal depois de um jantar em um restaurante chique...
- Você está linda! Venha, dance comigo!
Deixo meu corpo repousar junto ao dele, embalados pela música lenta. Depois de tudo o que vivemos em Iquitos, na floresta, depois desses dois dias absolutamente intensos, conhecendo Arequipa ao lado de Esteban, é muito difícil de acreditar que esta será nossa última noite juntos.
Eu me perco em seus braços, me agarrando aos remanescentes deste sonho bom que Esteban representará sempre para mim.
Na manhã seguinte, vamos até o aeroporto.
O salão de embarque parece um lugar estranho para se estar, com as vozes erguendo-se pelos saguões.
Depois de tanto tempo na floresta, qualquer coisa além de mim e Esteban, parece uma multidão.
Nos abraçamos, até o último minuto que meu embarque para o voo permitiu, em silêncio, nos agarrando ao mundo que criamos juntos.
O término da fila para o embarque já se anunciava, quando os últimos atravessavam o portão.
- Está na hora...
- Eu sei, preciosa...
Nos afundamos no olhar um do outro. Não havia necessidade de palavras. Tudo o que precisávamos dizer, já havia sido dito.
- Eu vou beijar você agora, como se você fosse a minha namorada da escola. Como se você estivesse indo para a faculdade, e voltando para me visitar na próxima semana...
Sorrio para ele. O som do alto falante chama para o embarque.
- Parece bom...
Selamos nossos lábios. Seguro as lágrimas que teimosamente acabam escorrendo por meu rosto. Ele beija minha testa, e eu tento agarrar com todas as minhas forças em minha lembrança cada nuance de seu calor.
- Até semana que vem, preciosa...
- Até semana que vem, Esteban...
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