O Roque
Vejo, através das sombras, a silhueta vitoriosa se aproximando de seu carro conversível.
- Hei, Viktor!
O pai dos Bartholy não teve tempo de reagir antes de eu envolvê-lo no portal, nos jogando para o meio da floresta. Não quero ninguém interferindo em meu acerto de contas com ele.
Eu estou me tornando tão veloz ao fazer isso que a sensação para ele deve ter sido quase a mesma de ter sido tele transportado.
Curiosamente, o super poder que Nicolae me sugeriu escolher, há uma vida atrás...
Isso enfraquece Viktor, que se levanta, cambaleando. Vejo o medo em seus olhos. Não creio que ele já tenha encarado algo como eu. Não com a fúria que estou sentindo nesse momento.
Ele se abaixa bem a tempo de desviar de uma pedra em chamas, que passa imediatamente acima de seu ombro. Não mirei para acertar, de qualquer forma. Foi apenas um tiro de aviso.
- Não era esse nosso acordo, Viktor!
As lágrimas escorrem grotescamente por meu rosto, atrapalhando minha visão.
- Você disse que ajudaria à mantê-lo seguro!
- Minha cara, foi exatamente o que acabei de fazer!
- Você o quebrou! Para satisfazer o seu próprio espetáculo!
Viktor me direciona um riso sarcástico.
- Eu fiz um favor a você fazendo-o acreditar que essa separação foi ideia dele! Se você sobreviver ao que quer que seja sua empreitada insana, essa é a melhor chance de vê-lo jogado aos seus pés na volta! Não seja uma pirralha ingrata!
- Não Viktor... Você o afundou em culpa e em sofrimento! Eu queria protegê-lo, e não machucá-lo!
- O que você esperava, ma rousse? Que eu colocasse uma au pair na mansão, por quem ele se apaixonaria e viveriam felizes para sempre? Nicolae é um vampiro de mais de cem anos! Se você acha que é tão fácil assim manipular o coração de um homem, você realmente nos toma por seres muito inferiores!
Isso é o que acontece quando se negocia com o Diabo.
Abro a boca para responder, mas me calo. Ele arremata com um ar superior.
- Minha cara, você está frustrada porque não está sabendo lidar com o fato de que seu amor perfeito era um homem dividido. O que aconteceu com todo o seu discurso generoso de que faria o que fosse preciso para manter Nicolae a salvo? Loiras voluptuosas eram uma restrição ao nosso acordo?
Sua frieza atravessa meus nervos e sinto eclodir uma raiva sem par. A outra Victória já está praticamente no comando. Não quero matar Viktor Bartholy. Eu só quero que ele sinta a dor que ele infligiu a Nicolae.
A dor que ele infligiu a mim.
Eu planejo prendê-lo entre os portais, e quase sou capaz de ouvir os seus gritos de dor.
Mas uma mudança no ar acontece e sinto sua força sobrenatural me agarrando por trás, como se minha intenção jamais tivesse se concretizado.
- Pare já com essa comédia!
Viktor sussurra perigosamente em meu ouvido, mas percebo que ele está fraco.
- Você tem sorte por eu ter uma atração quase irresistível por mulheres que tentam me matar.
Como ele...?
Finalmente percebo o que o faz tão perigoso. Não foi com super velocidade que ele desapareceu de minha frente e conseguiu me surpreender. O grande poder de Viktor Bartholy é ser capaz de manipular o tempo. Sou capaz de sentir os traços dessa mudança no ar.
Um inimigo quase imbatível...
Caímos os dois no chão, exaustos. Usar seu poder parece ter custado o que sobrou de sua energia. Eu sinto que estou desabando, as lágrimas escorrem enquanto soluços sacodem meu corpo cansado. Enfio o rosto entre meus joelhos.
Sinto tanta dor que a aproximação paulatina de Viktor nem me causa sobressalto. Se ele pretende me matar, ao menos acabe rápido com isso.
Para minha surpresa, ele passa os braços ao meu redor, me amparando em um abraço firme. Estou tão quebrada que me deixo estar neste consolo inesperado, sem forças para reagir.
- Eu provei de seu sangue, eu sei do que Nicolae é feito. A única coisa que o manteria longe de você é a culpa, Victória! Você pode continuar com esse choramingo maniqueísta ou pode aceitar que o meu jeito era o único possível e começar a se preparar para a luta que realmente importa.
Seu tom de voz soa completamente diferente de qualquer coisa que já ouvi de Viktor. Ela soa quase...
Humano.
É estranho vê-lo tão de perto. O temido pai dos irmãos Bartholy. Ele não parece ter mais do que quarenta e cinco anos e completamente diferente do que imaginava. Seu rosto possui uma beleza pura, angelical. Não parece o rosto de um criminoso atroz.
Um verdadeiro Dorian Gray...
Suspiro profundamente, enquanto me desvencilho de seu abraço.
- Você está certo sobre Nicolae. Era o único jeito. Eu só queria... ter tido mais tempo...
Viktor me direciona um olhar indulgente.
- Mais tempo só significaria ter mais coisas a perder, minha cara.
- Como você soube que estaríamos lá?
- Sensores de presença. Não se constrói um tabuleiro deixando-se os peões circularem livremente por aí.
De alguma forma, isso não me surpreende. Percebo que mal começo a conhecer suas artimanhas.
-Confesso que a cena da tentativa de meu assassinato foi excessivamente convincente...
Viktor dá de ombros, com um sorriso frio, diante de minha ironia.
- Ela só teria sido mais convincente se Sierra tivesse conseguido.
- Então você não a enviou para isso?
Viktor ri sem humor.
- Digamos que Sierra improvisou brilhantemente sobre o roteiro. Quando conversamos pela manhã, tive essa inspiração súbita de que bastaria deixar escapar a informação de que Nicolae pretendia casar-se e um descuido acidental de deixar o mapa onde encontrá-los em minha tela e voi lá! Apenas não esperava que ela fosse agir tão rápido!
As lembranças das intenções de Nicolae me ferem profundamente. Respiro fundo, tentando me ater a qualquer coisa que mantenha minha sanidade.
- Como você sabia que ela tentaria me matar?
- Depois de tanto tempo vivendo com uma pessoa, até a loucura se torna previsível, minha cara.
- E como você sabia que eu sobreviveria?
Seu olhar me devora com ironia.
- Não é muito fácil fazer um predestinado chegar atrasado ao seu momento...
Sei que Viktor Bartholy está certo.Fecho os olhos por um momento, saboreando o que seria estar em um futuro em que eu pudesse dizer sim a proposta de Nicolae ao invés de escolher esta incerteza que me arrasta.
Abrir mão de Nicolae foi a coisa mais devastadora que já tive que fazer até hoje. Mas perdê-lo para a fatalidade, por ignorar os perigos em meu destino, seria uma dor que eu não conseguiria suportar. Viktor parece entender o rumo de meus pensamentos.
-Você deve me odiar. Deve odiar Sierra.
Certamente não esperem um cartão de Natal...
Analiso meus sentimentos por um momento.
- Ninguém deveria passar pelo que ela passou.
Há uma expressão indecifrável em seus olhos diante de minhas palavras.
- Muito bem. Podemos voltar agora ou algum outro drama existencial humano a comove?
- Apenas mais uma coisa. Como saberei que você libertou Mia Cooper?
- Da mesma forma como sei que você se entregará aos originais se não encontrar sua resposta mágica ao final do prazo de um ano. Como funciona a promessa de honra dos vampiros?
- Se você não a cumpre, o preço é a morte?
- Então parece que nós não temos muita escolha, não é mesmo, mon cher?
Viktor levanta meu queixo e olha para o meu rosto, parecendo absorver cada um de meus traços como se ele estivesse tentando extrair dele a verdade. Para minha surpresa, ele toma meus lábios em um gesto furtivo.
Mas que m...
Minha primeira sensação é como se tocasse os lábios de uma estátua. Fria, vazia... Mas subitamente um ressentimento e uma inveja opressoras me tocam. Fico tão estupefata que o espero terminar esse beijo estranho.
- Desculpe. Eu apenas queria saber por um momento como é ser um homem com a sorte de Nicolae Roman.
Olho para ele, boquiaberta. Viktor Bartholy é como um magneto perto de uma bússola para meus instintos. Não sei se desconfio dele, se sinto uma pena atroz por sua humanidade destruída ou se explodo de raiva.
Sua face desenhada retoma a expressão de frieza habitual.
- É exasperador ver uma joia como você deixando o tempo passar, sem fazer nada a respeito...
E assim voltamos para o modo vampiro sem coração.
- Não estou interessada, Viktor!
Ele me olha com uma crueldade afetada.
- Você tem certeza? Sierra pode ser um caso de difícil recuperação, isso pode levar um bom tempo...
A bile retorna a minha boca e sinto meu estomago se revirar de ciúmes. Mas terá que ser assim. Nicolae está fora de alcance para mim. E esta é a única forma de mantê-lo seguro.
Mesmo que isso signifique mentir para ele, mesmo que isso signifique trair meu acordo com Peter, mesmo que isso signifique abandonar tudo...
Eu me levanto, antes que minha força de vontade hesite.
- Vamos. Vou deixá-lo perto de seu carro.
- Eu detesto seu meio de transporte...
- Você pode ir a pé se quiser... são só vinte quilômetros de subida até a mansão.
Viktor me olha com um ar de desgosto, estendendo a mão em minha direção.
Fico aliviada quando ele vai embora, e pego um taxi.
Finalmente, estou em casa, depois desse dia que achei que nunca mais fosse acabar.
De todas as decisões estúpidas que já tomei em minha vida, confiar em Viktor Bartholy foi sem dúvida a mais arriscada delas. Mas até agora, a estrela parece estar a meu favor.
Eu me sento, na banheira, deixando a água cair sobre minhas costas. As lembranças do dia começam a retornar, lentamente, como se eu estivesse banhando minhas feridas em salmoura.
Quando acordei, esta manhã, meus pés me levaram resolutamente à sala do professor Jones . A porta se abriu quase que imediatamente, como se ele antecipasse minha urgência.
- Victória... o que?..
- Eu preciso falar com você. Com meu amigo Sebastian, não com o Reitor Jones.
- Entre, por favor.
Quando a porta se fechou as minhas costas, Sebastian ficou sem ação quando lágrimas silenciosas começaram a rolar por meu rosto, apesar do meu esforço em contê-las.
- Desculpe, Sebastian, é o cansaço...
Ele me direcionou até uma cadeira, me servindo com água quente em uma xícara com um sachê.
- Tome isto, Victória. Vai ajudar.
Assenti, sem relutar. Recobrando o domínio sobre mim, ergui o rosto para encontrar seus olhos dourados.
- Eu preciso confessar uma coisa. Ontem a noite invadi os arquivos dos antigos alunos. Sei que é proibido fazer isso sem pedir autorização para os magistrados, mas eu precisava de uma informação...
Sua expressão não se alterou, diante de meu comentário.
- Está tudo bem, não vejo por que nos precipitarmos a falar sobre isso com alguém. Mas suponho que confessar isso não seja o motivo de sua visita...
- Não. Há alguns meses venho tendo sonhos. A princípio achei que fossem coisas de menor importância, mas aos poucos, eles foram revelando-se mais sólidos. Em vários deles, eu vi minha mãe, mais jovem do que o que a conhecia, na faculdade. Mas haviam várias outras pessoas em meus sonhos e os destinos delas pareciam se conectar, de alguma forma... Mas eu não estava conseguindo preencher essa lacuna.
- Você tentou pesquisar por estas pessoas?
- Sim, mas foi em vão. Por isso invadi o arquivo. Minha mãe nunca havia me contado que havia frequentado a faculdade. Eu precisava ter certeza de que eram apenas sonhos.
- Mas não foi isso que aconteceu, certo?
- Não... Minha mãe realmente frequentou esta Universidade. A biológica... E a adotiva.
Sebastian ergueu uma sobrancelha, boquiaberto.
- Como?...
- Eu encontrei a ficha com o nome de minha mãe. Ou quase. O sobrenome não era o mesmo, mas sem dúvidas era ela. E foi por sua ficha que descobri que ela não poderia ser minha mãe... biológica... o tipo sanguíneo... não é compatível... seria impossível...
Com um gesto em meu ombro, Sebastian me estimulou a tomar um gole de chá antes de continuar.
- Não vou perguntar se você tem certeza, Victória. Confio em seu bom senso. Mas você me falou que sua mãe biológica também frequentou essa universidade. Como você soube quem era ela?
Eu entendo a dúvida de Sebastian. Também me debati por horas refletindo sobre isso durante a noite insone.
- Um palpite, na verdade... Mais do que uma certeza.
Sebastian me observava, tentando me acompanhar.
- Não há, em minhas lembranças, quaisquer fotos de minha mãe durante minha gestação. Mas em meus sonhos, há o tempo todo, uma jovem grávida. E há este sonho, que apareceu tantas vezes em minhas noites... em que minha mãe corre em direção à essa jovem ensanguentada e leva um cesto. Eu acho que eu estava naquele cesto...
Ele não me olhou como se eu estivesse perdendo a sanidade. Pelo contrário, sua expressão se aprofundou, enquanto ele parecia refletir.
- E você conseguiu descobrir o nome da mulher que você acredita ser sua mãe?
Meus sentimentos sobre ela se dividem.
- Uma intercambista italiana. Anita Facchin.
Os olhos de Sebastian se abriram, surpresos.
- É claro... Os mesmos olhos... Os mesmos cabelos...
- Você... Você a conheceu?
Ele assente. Seu olhar se tornou sombrio.
- Anita entregou os planos do assassino de minha esposa, Eliza.
Sebastian retirou uma foto de sua gaveta. Uma jovem estranhamente familiar encontrava-se ao seu lado, com um vestido de noiva que destaca sua pele cor de ébano e seus lindos olhos castanhos.
- Ela se parece muito....
- Com sua amiga Sarah, eu sei... Ela é sua sobrinha neta.
Algumas coisas começaram a se tornar mais claras... A conta, entretanto, parece não fechar.
- Mas Sebastian... para isso você teria que ter pelo menos...
- Sessenta e cinco anos. Lobos envelhecem mais devagar.
As palavras de Sarah diante dos olhares furtivos do Professor Jones vem à minha cabeça.
"Isso é mais complicado do que parece."
- Eu lamento muito por sua esposa, Sebastian...
- Ela era uma pessoa única, sem dúvidas...
Sebastian parece divagar. Seu olhar sombrio foi rapidmente substituído por uma expressão empática.
-Victória, eu lamento, mas creio que as notícias para você também não sejam boas. Anita...
- Eu sei. Ela morreu no parto.
Sebastian assentiu.
- Você está bem?
Como alguém que se tivesse perdido duas mães no mesmo dia...
- Talvez... Mas eu não tenho escolha. Há algo de mais urgente para o qual eu devo me preparar...
Seus olhos adquiriram um brilho perspicaz.
- Claro. Os motivos para a tranquilidade de Nicolae sobre a profecia acabaram de cair por terra, o que significa...
Nos entendemos sem que fosse preciso terminar a frase. Quando nossos olhares se cruzaram, vi a piedade turvar seus olhos. Eu me senti aquecida por sua empatia, mas era preciso ser objetiva.
- Sebastian, eu preciso de sua ajuda! Preciso entender o que significa ser a eleita da profecia. Antes mesmo de falar com Nicolae!
Seu olhar se aprofundou em meu rosto. Percebi a hesitação por trás de sua serenidade aparente.
- Do que você é feita, Victória, para mim é um mistério. Mas você vai precisar de todo seu espírito combativo para ouvir o que tenho a dizer. Você conhece a lenda dos Zingari, não?
Eu assenti, estimulando-o a continuar.
- Ela parece ser de alguma forma relacionada com a criatura, o Inonimatus. Suspeitávamos disso já havia anos, pois sempre encontrávamos reprodução das duas lendas muito próximas geograficamente. Mas nunca havíamos encontrado a reprodução da lenda no local de origem dos povos Zingari. Até recentemente....
- Sua última expedição?
- Exato. Sempre discordamos, Eliza e eu, sobre a natureza da criatura e o destino do escolhido da profecia, mas infelizmente, minhas últimas descobertas parecem pender a razão para o meu lado.
- Para o seu lado? O que isso quer dizer?
Sebastian suspirou pesadamente.
- Que a criatura é realmente um ser de destruição. E que o destino do eleito é eliminá-lo. Ou deixar a humanidade sucumbir.
Enguli em seco, olhando para a face esqueletizada de meu algoz.
- Mas o reitor Baumman está morto, os portais foram destruídos! Deveríamos estar seguros agora, não?
- Todo eleito tem um oposto, Victória. Um ser destinado a fazer com que o eleito cumpra seu destino a qualquer custo. Você sente que o reitor Baumman era seu oposto?
Senti meu estômago revirar. A culpa presumida do reitor nunca me convenceu...
- Não...
Uma ideia cruzou meus pensamentos.
- Talvez se eu me concentrasse em encontrar este... oposto. Convencê-lo a não convocar a criatura... impedi-lo de abrir este portal...
O olhar de Sebastian parece ter envelhecido uma vida, mas percebi imediatamente que isso não seria o bastante...
- Estou barganhando, não?
Seu meio sorriso empático respondeu por ele. Afundei a cabeça entre minhas mãos, deprimida.
- Devo contar a Nicolae?
- O destino do eleito e da criatura são ligados intimamente. Há sempre um grande preço em estar próximo ao eleito, e quanto mais você se aproxima da verdade, maior risco isso representará a aqueles que você ama. Você é esperta o bastante para tomar essa decisão sozinha.
Penso na rota de corpos em meu passado...
Anita... Ana Tereza... Reitor Baumann...
- Eu sinto muito.
Sebastian segurou meu ombro. Engoli as sombras que despontam em meu caminho.
- Não. Apenas, continue. Como...o eleito... destrói a criatura?
- Parece o tipo de coisa que o eleito deve descobrir, não?
Suspirei profundamente, desolada.
- Queria poder ajudar mais, Victória. A lenda dos Zingari nunca foi algo claro para mim. Eliza e eu tínhamos interpretações completamente diferentes.
- Gostaria muito de saber qual era a interpretação dela...por que até o momento...
- Para você entender isso, é preciso entender minha esposa. Venha, deixe-me mostrar uma coisa...
Sebastian colocou várias placas com gravuras à minha frente. Reconheço algumas de sua última expedição, mas há várias. Todas com temas semelhantes.
O Inonimatus.
- Esta vendo essa palavra? A tradução literal dela em Zingari antigo é bastante confusa. Pode significar libertar através da dor. Ou pode significar destruir. Eliza era uma pessoa com uma fé inabalável na humanidade. Ela tinha essa teoria de que a lenda não falava sobre destruição. Assim como ela nunca acreditou que a palavra Zingari vinha de vingança, mas sim de reparação.
Suspiro, exasperada.
- Parece bom demais...
- Eliza era uma idealista, Victória. Ela era encantada pela missão de promover paz entre as criaturas míticas e a humanidade. Antes de nos casarmos, ela viajou o mundo, tentando coletar histórias e informações, escrevendo um grande compêndio sobre os seres sobrenaturais. Ela achava que a verdade sobre as criaturas poderia nos unir.
- O que aconteceu com seu trabalho?
- Eliza deveria saber que a verdade é uma ferramenta muito poderosa. Ela foi morta por uma pessoa que acreditava que suas palavras eram perigosas . E a obra de sua vida, seu livro, foi destruído no mesmo incêndio que causou a sua morte...
Isso me soa familiar...
- Sebastian! Preciso mostrar algo!
Eu me levantei, subitamente, causando um sobressalto em Sebastian. Revirando minha mochila desajeitadamente, encontro o primeiro presente de minha mãe .
Não há palavras para descrever a expressão de Sebastian no momento em que suas iris douradas repousaram sobre o livro. Seus olhos pareciam marejados, de espanto e de alegria. Ele retirou o manuscrito de minhas mãos, folheando-o com a delicadeza de um homem que acaricia a face da amada.
Sebastian se demorou vários minutos, passeando os olhos sobre o livro extasiado.
- É o manuscrito! É o livro original de Eliza! Como você conseguiu isto, Victória?
- Eu o tenho desde criança! Nunca soube de onde ele havia vindo mas sempre tive certeza de que era único! Foi o primeiro livro que ganhei de minha mãe.
Algo de enigmático se desenhou em sua expressão. Ele o estendeu em minha direção.
- Sebastian, fique com ele, por favor!
- Não... Victória... isto é a obra da vida dela, e de alguma forma ela confiou a você! Ela queria que isso chegasse às suas mãos!
Sebastian olhou para o livro uma última vez antes de devolvê-lo, com uma ternura de partir o coração. Foi quase como se ele me desse o último pedaço das memórias de sua amada. Eu me senti quase cambalear pela energia deste gesto.
- Sebastian, como Eliza acreditava que tudo isso deveria terminar?
Ele me encara firmemente.
- Eliza acreditava que o eleito não deveria perseguir uma arma, mas uma verdade. Uma verdade que somente ele poderia perceber e que libertaria a criatura de seu fardo.
- Então eu posso me permitir ter esperanças de que ela esteja certa e não você?
Sebastian sorri, um sorriso largo e saudoso.
- Você me lembra Eliza, às vezes. Não a aparência, obviamente. Mas a fé. Se ela acreditava nisso, não vejo por que você não poderia...
Nos sentamos, exaustos, por vários minutos, sem olhar um para o outro.
Céus.. Encontrar uma verdade... derrotar o Inonimatus... Tudo isso parece muito vago!
Um turbilhão de pensamentos e sentimentos atravessava minha mente. Se as palavras de Sebastian estiverem certas, eu represento um risco para todos aqueles que eu amo.
Sebastian finalmente quebrou o silêncio, parecendo adivinhar o rumo de meus pensamentos.
- Muito bem. Eliza julgou que você deveria ter a obra dela em suas mãos acreditando que você poderia desvendá-lo. O que você tem em mente?
Olho para o livro.
- Não sei. Talvez... se eu seguir os passos de Eliza, eu consiga ver o que ela viu.
- Muito bem...Parece uma ideia. Do que você precisa?
Não sei se foi o calor do momento, mas as palavras saíram corajosamente de minha boca.
- Providenciar substitutos para minha ausência. Não quero que meu trabalho na faculdade se perca! Preciso programar as passagens. Desmontar meu apartamento...
Seguimos com a lista de coisas práticas a serem feitas, como se discutíssemos o cronograma para o próximo semestre. Sebastian me amparou em cada detalhe da decisão mais difícil de minha vida. Finalmente, e em menos de uma semana, eu estaria pronta.
Pareceu tão natural que foi como se meu coração me dissesse que eu estava fazendo a coisa certa, contra todas as advertências do bom senso.
Abandonar profissão que me deu um propósito... Deixar para trás meus amigos e a família que me acolheu...
E abrir mão do homem que amei nesta tarde com cada fibra do meu ser...
Para ter certeza que eu os deixaria em segurança, eu precisaria da ajuda de Viktor Bartholy, para fazer aquilo que Drogo havia me prevenido para que eu nunca fizesse.
Jogar xadrez contra Nicolae.
Saio do banho, enterrando meu cansaço embaixo da tsunami de energia que reúno por ter sobrevivido à este dia.
O dia em que eu dei toda a coragem que possuia para salvar o amor de minha vida de me seguir em um destino incerto.
Começo a arrumar as malas, para minha partida iminente rumo ao desconhecido. Deixo para trás qualquer coisa que não pareça essencial.
Apenas aceito a fraqueza de carregar comigo o vestido branco com que Nicolae me presenteou. O resto, ficará em um depósito, esperando se haverá um dia em que eu ganharei o direito a ter esta vida de volta.
Mas algo em meu coração me diz que este tempo já passou. A sensação é aterrorizadora.
Até o ponto em que ela se tornou libertadora.
É claro que eu queria mais da felicidade prometida pelos olhos nublados de Nicolae. Sinto como se eu estivesse prestes a sangrar por cada poro!
Mas tenho certeza que Anita queria segurar mais uma vez sua garotinha. Que minha mãe queria continuar suas corridas matinais, antes da Esclerose Lateral Amiotrófica roubar os seus movimentos. Que Eliza Osborne queria trocar teorias e risadas à frente da lareira, diante do olhar cintilante de seu esposo.
Todas elas queriam mais.
E no entanto, nenhuma delas hesitou em se sacrificar para me trazer até aqui.
Somos ambiciosos em nosso ego. Nunca acreditamos que recebemos o suficiente, que saboreamos tudo o que merecíamos. Mas quando você marcha voluntariamente para uma morte certa, você se depara com a suficiência de sua vida.
E naquele momento ínfimo, em que a gratidão pela soma de tudo o que você viveu, se torna mais importante do que o futuro que deixa de existir à sua frente, você encontra a paz e a coragem necessárias para seguir em frente.
Ufa... Estamos caminhando para a solução de alguns dos mistérios dessa história que sempre quis contar para vocês!
Para quem não sabe, o Roque é um movimento de defesa do xadrez, que tira o rei do centro do tabuleiro. É uma analogia para o que Victória fez: tirou Nicolae do jogo para protegê-lo. Finalmente, parece que ele encontrou um adversário a altura para o xadrez, não?
Alguém esperava por essa?
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