A Herança da Viajante
- Vocês são muito parecidas. – digo, olhando a foto sobre a mesa de Sarah. Afora a pele mais clara e os cabelos mais lisos, a semelhança da sobrinha neta é enorme com a reitora Eliza. O mesmo nariz, os mesmos lábios... Não me surpreende, portanto, que Sebastian pareça tão confuso perto dela.
Sarah balança a cabeça. Seus olhos castanhos cintilam estranhamento e desconfiança.
- Sim, ouço isso com alguma frequência. – ela vira a foto para si, tirando-a do alcance de minha vista. – Como posso ajudá-lo, professor Nicolae?
Coloco o envelope sobre a mesa e percebo que a jovem bruxa segue cada movimento de minhas mãos. Sarah, do outro lado, parece naturalmente intrigada por minha visita, e não a culpo. Bartholys e Osbornes não costumam estar reunidos para discutir a meteorologia.
- Creio que está na hora disso voltar para as mãos dos Osborne.
Sarah abre o envelope, sem tirar os olhos de mim, com uma expressão inquisitiva. Quando as folhas amareladas com a letra miúda e redonda alcançam seus olhos, seu rosto se ilumina.
- Isso é.... O manuscrito original da tia Eliza! - seu tom é um misto e surpresa e desconfiança. - Achei que ele estivesse perdido para sempre! Onde você conseguiu isso, Nicolae?
Apesar de todos os avanços em nossa relação, e nossa casualidade quando Victória está por perto, sinto que nossa proximidade ainda a incomoda. Mesmo diante de seu tom quase acusatório, não recuo.
- Eu o ganhei. Das mãos da própria reitora Osborne.
Sarah folheia as páginas, parecendo preocupada.
- Mas está incompleto! Há apenas uma história aqui! Onde estão as outras páginas?
Balanço a cabeça negativamente.
- Nunca as vi. Apenas tenho a parte que Eliza deu a mim, pouco antes de... -não consigo completar minha frase. Suspiro. - O conto da traição dos Zingari. Ela se interessava bastante pelo tema e acabamos encontrando essa convergência entre nossas pesquisas.
Sarah me lança um olhar indecifrável, mas trai sua incredulidade através de seus pensamentos. Eliza era capaz de contrariar quaisquer convenções para mostrar que as pessoas eram confiáveis. É estranho ver tamanha desconfiança em seu rosto tão semelhante ao dela.
- Ela me mandou isso como dedicatória.- entrego a carta à Sarah.
" Para Nicolae Bartholy,
Que este conto o ajude a compreender melhor as semelhanças que vejo entre nós. Tenho fé de que há mais nesta história do que o conto dos três irmãos amaldiçoados e deixo à sua curiosidade o papel de descobrir a verdade sobre nossas origens.
Com afeto,
E.O."
Sarah parece reler a carta dezenas de vezes. Vejo o conflito em seus olhos. Ela parece oscilar seu julgamento entre a candura de sua tia e a altivez de sua avó, marcadas em algum lugar de sua mente. Sarah passa as mãos pelos cabelos castanhos. Permanecemos em silêncio por alguns momentos.
- Sempre ouvi falar de minha tia através das histórias de minha avó... Mas nunca como se ela fosse um exemplo a ser seguido. Nas histórias, ela era essa pessoa tão maravilhosa, mas que na visão de minha avó, era como se ela tivesse sido traída, vítima de suas próprias fés... Minha avó sempre me preveniu contra tantas coisas! Mas agora estou confusa, Nicolae...
Mergulho meus olhos nos seus. É uma visão injusta demais para ser deixada de herança.
- Não vejo as coisas dessa forma, Sarah, embora entenda o peso das perdas de sua avó e os motivos pelas quais ela deva crer nisso. Mas sua tia não foi uma pessoa ingênua ou desprevenida. - Penso em Victória quando faço esse comentário, em sua forma estoica de encarar o desconhecido.- Eliza era uma pessoa extremamente corajosa que assumiu suas próprias ideias mesmo sabendo que poderia pagar um preço por isso.
- Conte-me mais sobre ela. – a voz de Sarah se abranda. – Por favor...
Seu pedido me surpreende. Ainda que as coisas andem bastante pacíficas entre nós considerando as últimas décadas, não esperava que uma Osborne fosse querer saber sobre suas origens através de meus olhos. Sorrio, pronto para dividir minhas lembranças.
- Os Osborne sempre foram uma das poucas famílias cujas memórias não modificamos Mystery Spell. Sua tia ainda era uma criança quando a conheci. Eliza invadiu nossa mansão. – sorrio com a memória. - Ela soube que havia uma criança na casa e quis brincar com ela.
Sarah sorri.
- E isso terminou bem?
Levanto uma sobrancelha.
- Claro que não. É de Lorie que estamos falando!
Sarah ri abertamente desta vez.
- Mas é claro que depois do susto que ela levou com nossa irmã, o mínimo que poderíamos fazer era dar a ela um chocolate quente e biscoitos caseiros. Naturalmente os pais dela não ficaram nada felizes quando bati em sua porta para devolver sua garotinha... E então não a vi novamente por muitos anos... Até que decidimos que seria melhor que pudéssemos voltar a conviver com as pessoas. Estávamos cada dia mais distantes daquilo que nos fazia humanos...
- Enfim, foi quando os rapazes voltaram a se matricular na faculdade?
- Quase... Mais precisamente, alguns anos depois, quando contratamos uma au pair para Lorie.
O olhar de Sarah se ensombrece. Naturalmente ela cresceu ouvindo as histórias de Úrsula sobre a culpa dos Bartholy no desaparecimento de Mia.
- O que aconteceu, então?
- Bem... Sua tia e sua avó, Úrsula eram da mesma sala que Mia Cooper. Sua avó tornou-se a melhor amiga de Mia. – digo as últimas palavras com cautela. - Então você já deve imaginar que ter um vampiro praticando sangria, ainda que consentida, com sua melhor amiga, não foi exatamente um catalisador de nossas boas relações...
Sarah cora. Certamente ela não esperava por minha franqueza a este respeito. Ela parece dividida, mas antevejo por seus pensamentos o que ela deseja perguntar.
- Pergunte, Sarah.- digo, de forma polida, porém firme.
Ela hesita. Sua voz treme com uma inflexão de mágoa.
- Como... por que você defendeu Drogo... depois do que ele fez?
Eu a encaro, sem desviar o olhar.
- Não é minha história para contar. Se um dia desejar, fale diretamente a ele. Mas eu asseguro a você que tive provas suficientes da inocência de Drogo.
Eu me dirijo a janela, dando a Sarah um tempo de absorver as informações. Ela faz um sinal, pedindo para que eu continue. Percebo que apesar de tudo, ela tenta manter uma expressão neutra.
- A tragédia de Mia entretanto, foi um divisor de caminhos para as garotas Osborne. Sua avó abandonou Mystery Spell e mudou-se para casar-se com seu avô. Somente a vi novamente quando ela retornou para a cidade, muitos anos depois. Trazendo você. – sinto que o assunto a incomoda. Nunca foi muito claro para nenhum de nós porque os pais de Sarah afastaram-se, mas suspeito que isso tenha a ver com a natureza de seus poderes. – E Eliza terminou o curso de arqueologia e partiu em sua famosa viagem pelo mundo. A viagem em que ela conheceu o homem por quem se apaixonaria irremediavelmente e por quem decidiria abandonar suas expedições. E a viagem que gerou o rascunho do famoso manuscrito, que nunca chegou a ser publicado.
A expressão de Sarah é sombria.
- Foi então que ela retornou e tornou-se professora e então reitora da Universidade de Mystery Spell?
Assinto, balançando a cabeça.
- Sim. Ela trouxe uma nova luz para o campus. Sua mente tolerante e seu coração aberto moldaram o pensamento de vários alunos. Tudo foi bem até o momento em que ela se tornou reitora. Na época, sua tia me procurou para ocupar sua cadeira como professor de Mitos e Lendas. Sebastian estava viajando pelo mundo em expedições. Ela sempre acreditou em minha palavra quanto a inocência de Drogo. Eu recusei o cargo, apesar de sua confiança, pois achei que poderia criar problemas para ela. – minha voz parece se bater contra minha garganta quando digo essa frase. – E então, o colegiado, insatisfeito com a abordagem de sua tia, trouxe um novo professor de Mitos e Lendas.
- Henry Walton?
- Exatamente.
E por isso, me sinto em parte responsável por sua morte.
- Ele não era exatamente um simpatizante das ideias de Eliza. Walton realmente nos via como seres abjetos e indignos e um segundo olhar. Principalmente nós, os vampiros. A disciplina que antes ensinava a diversidade, passou a ensinar formas de nos enganar e nos destruir. E assim, começou a queda de braço entre Walton, protegido pelas famílias mais poderosas de Mystery Spell e a reitora, amada por seus alunos e pelo resto do corpo docente. Até que essa luta culminou enfim, no assassinato de Eliza e na morte acidental de Walton.
Memórias sombrias vem a minha mente. De quando recebi a notícia de que a reitora fora sequestrada e deixada para morrer na explosão da gráfica que publicaria a primeira tiragem de seus livros, destruindo consigo, todas as cópias. Acreditávamos que os descendentes dos templários, na época, foram os articuladores desse crime tão vil.
A denúncia contra Walton veio de uma aluna, anônima, que acreditava conhecer as intenções de seu professor. Ela fugiu para seu país, em busca de segurança, mas sua denuncia nos colocou no rastro certo, embora não tenhamos conseguido reunir provas suficientes.
Apenas quando Walton tentou nos caçar é que compreendemos a extensão real de seus planos. Ele pretendia nos destruir.
Protegíamos Viktor, na época, que estava alojado no esconderijo dos Bartholy, em um dos seus raros momentos de vulnerabilidade, quando ele faz uso de seus poderes.
Dos seus reais poderes.
Walton invadiu o esconderijo, um penhasco de difícil acesso, e tentou contra a vida de nosso pai com balas impregnadas por verbena.
A planta, que dificilmente mataria um vampiro puro como Viktor em suas condições normais, poderia ter consequências graves encontrando-o tão enfraquecido.
Levei o tiro em seu lugar, salvando a sua vida quase as custas de perder a minha, e ganhando, então, a Promessa de Honra, que Viktor teria que cumprir anos mais tarde.
Mas apesar de suas habilidades que nos surpreenderam, Walton não poderia ganhar contra quatro vampiros adultos. Durante a luta contra Drogo, Walton, quase rendido, tropeçou e caiu do penhasco. Nosso plano jamais foi dar fim em sua vida, apenas capturá-lo para que ele pudesse pagar por seus crimes. Revistamos toda a base da montanha e jamais encontramos seu corpo, mas seria impossível que ele tivesse sobrevivido a queda. Algum predador das montanhas deve ter se encarregado de destruí-lo...
Sou interrompido de meus pensamentos por Sarah, que também parecia imersa em suas próprias reflexões.
- Você acredita que o manuscrito original foi destruído ?- ela me diz, com um olhar entristecido.
Balanço a cabeça, negativamente.
- Não, Sarah. Sua tia era muito inteligente. Ela jamais deixaria que o conhecimento que ela levou anos para construir se perdesse de forma vã.
Essa ideia parece confortá-la.
- Eu me pergunto por onde andará o manuscrito...
Dou de ombros, olhando o jardim do campus. Penso na dedicação e no amor que a reitora tinha por este lugar.
- Prefiro acreditar que ele esteja por aí, cumprindo o propósito que a reitora Eliza desejou para ele. Que ela o tenha dado nas mãos de alguém que tenha um coração tão aberto quanto o dela e que vá fazer coisas grandiosas com o que aprender com ele.
Sarah sorri para mim. Ela devolve o envelope sobre a mesa.
- Não é certo, Nicolae. Foi um presente. Ela deu essas páginas a você, então você deve ficar com elas!
Eu recuso sua oferta.
- Já tirei deles a lição que precisava, Sarah.- seus olhos castanhos vivos me observam com curiosidade.- Vejo muito de sua tia em você, e tenho certeza que ela aprovaria que você ficasse com essa lembrança.
Sara me estende a mão, e percebo a comoção em seu olhar. Aperto sua mão, e deixo a sua sala, com o sentimento de que finalmente começo a honrar a memória de Eliza Osborne.
***
E então? Teorias? Espero que a esta altura vocês já estejam percebendo as peças se juntando!! =D
Comentem e não se esqueçam da estrelinha se gostarem do capítulo!
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