O Véu
Nos sábados, um velho chamado Geralt, do esquadrão do fim de semana, ocupava a minha mesa na delegacia. Por sorte, ele amava tanto o seu trabalho quanto eu gostava de ser um Guia, então foi fácil convencê-lo a ir tomar um ar e me deixar usar o computador.
Todo mundo achava que eu e Rhodes éramos viciados em trabalhar. Ninguém ficou surpreso ao me ver aqui no dia de folga.
Eu usei o sistema da delegacia para pesquisar sobre os desaparecimentos, mas, como falei para Nathan, estávamos em Nova York, isso era mais comum do que deveria ser. Restringi a pesquisa para um raio de oitenta quilômetros da loja de Nathan. Encontrei mais de 30 apenas neste ano. Não poderiam ser todos ligados ao Outro Lado.
Precisava restringir ainda mais essa pesquisa. Jessamine me disse que o tempo funcionava de maneira diferente no Outro Lado. Não dava pra ter certeza quando o problema começou, mas ele ficou mais forte na última semana. Leonard voltou. As quatro almas me atacaram. E... Jessamine aconteceu.
— Tente dia 14 de maio.
— Jesus Cristo! — exclamei quando os meus olhos pousaram em Jessamine, apoiada na minha mesa. A recepcionista e um detetive que trabalhavam por perto me olharam com curiosidade. Eu peguei o telefone da mesa e tentei fingir naturalidade — O que nós conversamos sobre aparecer sem avisar?
— Apenas faça o que eu estou dizendo.
Suspirei. Sim, eu estava pagando por todos os meus pecados ao receber ordens de uma mulher morta do século XVIII.
— Por que 14 de maio? — perguntei, enquanto digitava no computador com o telefone preso contra meu ombro. Todos já achavam que eu era maluco, não precisava comprovar essa teoria falando sozinho.
— Foi quando eu senti que o véu estava se rompendo aqui em Nova York.
— Você consegue senti-lo em outros lugares? — questionei, enquanto esperava o sistema carregar — O Outro Lado não está em lugar nenhum, certo? Mas o véu que o separa não está restrito a Nova York. Está em toda parte, certo?
— Algo parece estar forçando os limites do véu aqui na sua cidade. Não sei porquê.
— Maravilha — eu me encostei contra a cadeira estofada e olhei para Jessamine. Ela parecia mais atenta agora — Cansou de olhar velharias com Nathan?
— Eu sou antiguidade. Acho que já é o suficiente — ela exibiu um pequeno sorriso com os lábios cor-de-rosa.
Eu queria ter tido a possibilidade de conhecer Jessamine quando ela estava viva. Não acreditava que sua personalidade fosse a mesma. Ainda que fantasmas não mudassem, ela passou trezentos anos em uma espécie de limbo. Sua alma mudou, de alguma forma.
— Onde está sua amiga?
Franzi o cenho. Ela estava fugindo do assunto. Não queria falar sobre a biblioteca da família e as coisas que os Sheridan guardaram. Quantos mistérios Jessamine ainda era capaz de guardar consigo mesma?
— Rhodes? Está de folga — desviei o olhar para a tela, mas o sistema ainda estava carregando — Por que você disse que ela gostava de mim? De onde tirou essa ideia?
Jessamine balançou as pernas, movimentando o vestido azul. As barras do vestido estavam cheias de lama e, na luz forte da delegacia, pareciam tão reais que eu achei que ela sujaria o piso.
— Instinto feminino.
— Isso é loucura. Carey nunca gostaria de mim romanticamente. Eu sou tudo que ela desgosta no mundo — irresponsável, egocêntrico, infantil... E essas são palavras dela.
— Às vezes, as pessoas se atraem por idiotas, é normal — ela deu de ombros, exibindo o mesmo sorrisinho. Eu o retribui com uma pontada de ironia — Apenas dê uma chance para ela, um dia. Você verá. Talvez possam terminar casados.
— Vocês ingleses e casamentos — murmurei, me erguendo na cadeira — Onde está o seu marido?
— Eu nunca me casei.
— E Thomas? — Ao citar esse nome, a expressão convencida de Jessamine vacilou por um segundo — Ele era seu Guia, não é?
— Thomas Sheridan tinha 50 anos. Ele foi meu guia — explicou — Seu filho também se chamava Thomas — Jessamine passou a mão pela minha mesa, mas ela passou direto pela madeira. Percebi que era esse Thomas que ela citou na loja de Nathan — Ele recebeu o treinamento para Guia, mas a varíola o pegou antes que pudesse completá-lo.
Observei os traços delicados de Jessamine. De alguma forma, o Thomas filho foi especial para ela. Será que foi por isso que ficou tão perdida na biblioteca? Estava se lembrando do seu amigo?
— Sinto muito.
— Foi há trezentos anos e ele ficaria feliz apenas em saber que o legado da família ainda está vivo.
O computador emitiu um alerta e eu me aproximei da tela.
— Merda.
— Então? — Jessamine também se inclinou. Eu pude sentir aquele frio da sua proximidade levantarem os pelos do meu pescoço.
— Nathan estava falando a verdade. Há seis desaparecidos nas regiões demarcadas pelo enfraquecimento do véu — olhei para o papel na mesa onde eu havia marcado os nomes dos bairros que estavam no sextante do avô de Nathan — Um deles ocorreu no centro da cidade e, pelo que diz o arquivo, era uma senhora com costume de fugir dos netos. Creio que não tenha relação com o véu — comentei, abrindo os arquivos de cada nome. Havia pessoas de todas as idades, desde o senhor Eddie até um jovem de dezessete anos chamado Daniel — O que isso significa? Você acha que o Outro Lado está... puxando eles? Isso é, ao menos, possível?
— Nunca aconteceu, mas... — Jessamine deu de ombros. Podia ver que estava preocupada. Ela não sabia desses raptos — O que fariam com esses corpos?
— Temos que voltar para a loja de Nathan — disse, empurrando a cadeira e me levantando.
— E o seu amigo que sabe latim?
— Vamos buscá-lo antes.
— Eu pensei que você gostasse de ver o jogo nos sábados — Trenton disse, enquanto saímos do meu carro que eu estacionei em frente a loja de antiguidade pela segunda vez naquele dia.
Jessamine estava parada na porta, de braços cruzados. Quando fui buscar Trenton no seu apartamento, ela desapareceu e não voltou mais. Imagino que qualquer que seja o lugar para onde ela vai quando desaparece seja mais interessante que a casa de Trent.
— Eu gosto. Você não. Acredite, eu estou te ajudando, Coleman — respondi, então bati na porta da loja que ainda estava com a placa de "fechado".
— Você demorou – Jessamine comentou. Eu a ignorei.
— Então, ajudar seu amigo a traduzir livros do latim é mais interessante? — Coleman arqueou as sobrancelhas.
Ele passou o caminho inteiro desconfiado, o que era previsível, afinal ele era um detetive. O problema é que eu não podia falar tudo para Trenton. Eu queria mantê-lo o menos envolvido possível nessa história de Guias e Guardiões. Não era um estresse que Trenton precisava no momento e, assim que ele ajudasse a encontrar algo sobre os portais, ele poderia voltar a sua vida normal.
Eu não tinha essa opção.
— Essa história toda está muito estranha. Que amigo é esse, Russell? Eu pensei que eu e Carey fossemos seus únicos amigos.
— Ouch — murmurei, batendo novamente na porta.
Onde estava o idiota do Nathan?
— E por que ele precisa traduzir livros de latim?
— Eu já te expliquei. É uma loja de antiguidades. Ele tem esses livros velhos e precisa de ajuda para descobrir o conteúdo deles, assim ele pode vender, mas há livros em latim e ele não fala latim — falei, dando de ombros. Trenton me encarou e depois encarou a placa velha com o nome dos Sheridan.
— Por que ele precisa descobrir o conteúdo de livros em latim para vender? Se uma pessoa quer comprar um livro em latim, ela deve saber do que se trata — Coleman disse.
Suspirei e, pelo canto do olho, vi Jessamine revirando os seus.
Trenton tinha razão. Eu devia ter pensando em uma mentira melhor e não subestimando a inteligência dele. Ele estudou na Yale por um semestre e era um dos melhores alunos, é claro que ele era inteligente. Até mais inteligente do que eu.
— Por que não conta a verdade para ele de uma vez? — Jessamine perguntou.
— Cala a boca — sussurrei.
— O quê? — Trenton franziu o cenho.
— Oh, veja só, Nathan está vindo! — eu vi o cabelo ruivo de Nathan pelo vidro da porta. Ele a destrancou e olhou para nós dois, parados na porta — Esse é o seu amigo? Ele não parece um policial.
— Eu sou o Trenton.
— Ok. Nathan — ele respondeu, os dois trocaram um longo olhar e, por um segundo, jurei ter visto Trenton corar — Vamos logo. Tem muito trabalho a ser feito.
Nós subimos as escadas do fundo até o segundo andar. Jessamine já estava lá quando chegamos, olhando para a pilha de livros na mesa. Uma das dezenas de estantes do cômodo foi esvaziada e os livros estavam em pilhas no chão.
O lugar parecia mais bagunçado do que antes, se isso era possível.
— Puta que pariu — Coleman murmurou, avançando pelo lugar.
Ele não estava surpreso pela bagunça como eu e, sim, encantando com aquela quantidade de livros. Seu olhar era muito parecido com o de Jessamine essa manhã.
Enfim, amantes de livros e seus gostos estranhos...
— De que época são esses livros? — Trenton pegou com cuidado em um livro com capa de couro vermelha em cima da pilha no chão.
— Várias. A grande maioria do século XVIII quando os Guardiões estavam em atividade intensa — Nathan respondeu, observando Coleman passear por entre os livros, mas ele não estava irritado dessa vez.
— Guardiões?
— Dos livros — completei antes que Nathan pudesse continuar falando — Eles pertencem a essa família chamada Bassford. Eles criavam histórias míticas. Muito interessante. Muito criativo — disse e limpei a garganta, porque eu demonstrei interesse demais e qualquer um que me conhecesse sabia que eu não pegava em um livro desde que saí da escola.
— Você é um mentiroso de merda — Jessamine comentou ao meu lado.
Trenton franziu o cenho. Nathan também me encarou com um olhar suspeito, eu retribui o olhar e, pelo menos, o imbecil conseguia ler as situações. Ele rapidamente avançou até a mesa e mudou de assunto:
— Eu estava olhando alguns baús que estavam aqui junto com os livros e achei algumas coisas que podem te interessar e interessar... bem... hã... — Nathan fez um gesto esquisito com a mão. Ele estava falando de Jessamine.
— O que é?
Ele se virou e pegou uma folha dobrada e amarelada. Nathan abriu o papel com cuidado na mesa e ele se revelou maior que uma folha sulfite. Ele parecia prestes a desmanchar sob seu toque e estava com as bordas amarronzadas. No papel, havia uma pintura de tirar o fôlego.
Era o retrato de uma jovem com cachos loiros que pareciam reluzir de tão dourados, um rosto oval e lábios em formato de coração. Seus olhos eram firmes e de um castanho intenso que pareciam perfurar a sua alma. Ela não usava um vestido azul na imagem, e sim, um corpete rosa que acrescentava uma delicadeza estranha a sua imagem.
Embaixo, em uma letra cursiva e ornamentada estava escrito: Srta. Jessamine Bassford, 1730.
— É ela, não é? — Nathan perguntou.
Eu não consegui desviar os olhos da pintura. Era linda. Quem quer que tenha pintado aquilo, era muito talentoso e conhecia Jessamine, porque ninguém teria conseguido colocar no papel aquela expressão suave e, ao mesmo tempo, dura que ela possuía.
— Sim — murmurei e ergui os olhos na direção de Jessamine. Ela também encarava a pintura.
Ela estava mais pálida na sua imagem fantasmagórica, os cabelos mais desgrenhados e não possuíam aquele brilho dourado. O vestido estava sujo e rasgado. Aquela pintura devia estar lhe trazendo uma quantidade imensa de lembranças... de quando ela podia tocar as coisas... de quando ela estava viva.
— Uau, ela é linda! — Trenton disse — Quem é?
— A dona de todos os livros desse lugar — Nathan respondeu — Tem isso também — ele me deu um anel de prata com um pequeno rubi no centro.
— O anel de mamãe. Ela me deu quando completei 15 anos — Jessamine disse com a voz embargada. Tinha quase certeza que fantasmas não choravam e, especialmente Jessamine, mas seus olhos estavam com um brilho incomum — Pode guardar para mim? — ela me encarou no fundo dos olhos como no retrato.
Engoli em seco e coloquei o anel no bolso da minha jaqueta.
— Será que podemos começar?
Nós nos dividimos para ler os livros. Trenton ficou com aqueles escritos em latim, Nathan pegou o que estava lendo e sentou ao lado de Trenton na mesa.
Eu fiquei com uma pilha de livros com capas verdes. Peguei tudo e me sentei numa pequena mesa perto da janela. Esperava que, daquela distância, Trenton e Nathan não conseguissem me ouvir enquanto eu conversava com Jessamine.
— O que você quer que eu faça com o anel? — perguntei. Jessamine olhava pela janela, distraída. Ela virou os olhos castanhos para mim e deu de ombros.
— Fique.
— Parece valioso.
— Certamente é — comentou —, mas não quero que fique aqui junto com essas outras velharias. Prefiro que você o tenha.
— Por quê? — franzi o cenho, largando o livro na mesa.
— Foi o último presente que minha mãe me deu antes de morrer — Jessamine suspirou — Era meu bem mais valioso. Não sei o que aconteceu quando morri. Alguém deve ter tirado-o de mim.
Eu não a conheci quando era viva. Na verdade, nem poderia, considerando que havia trezentos anos nos separando, mas a ideia de que alguém revirou o seu corpo e tirou algo de lá provocou náuseas no meu estômago.
— De qualquer forma, acho que você cuidará melhor dele.
Eu peguei o anel do bolso e o olhei contra a luz do segundo andar. Era de prata com uma pedra de rubi no meio envolvida em fios de prata.
— O que te faz pensar que eu não irei vendê-lo na primeira oportunidade? — sorri.
— Você não é esse tipo de pessoa, Montague, pare de agir como se fosse.
— Quando isso acabar, quero que pare de me espionar — falei, desviando daquele assunto. Eu guardei o anel de volta no meu bolso onde estaria seguro.
— Vou tentar. Sua vida é tão interessante, é impossível se afastar — Jessamine rebateu e eu sorri.
Eu não conseguia imaginar Jessamine vivendo no século XVIII. Havia algo nela que não se encaixava no passado. Tenho a sensação que poucas pessoas a compreendiam ou, talvez, nenhuma.
— Por que inventou toda aquela história para seu amigo? — ela perguntou. Fechei os olhos. Pensei que ela deixaria isso passar despercebido, mas óbvio que ela não deixaria. Jessamine tinha uma boa percepção — Você tem medo da reação dele?
— Não... — falei e fechei o livro que estava lendo. Na verdade, fazia mais de meia hora que eu encarava o mesmo parágrafo tentando encontrar um sentido naquelas palavras — Eu acho que existem coisas que a maioria das pessoas não precisam saber e o fato de que fantasmas existem é uma delas. Trenton não precisa dessa preocupação na vida dele.
Desviei o olhar onde Trenton folheava um livro ao lado de Nathan. Havia um notebook entre eles, na qual eles tomavam notas a cada dois ou três minutos. De alguma forma, eles criaram uma dinâmica juntos naqueles poucos minutos que se conheceram.
— Bom, a verdade sempre encontra seu alvo em algum momento e ela não costuma deixar sobreviventes — Jessamine disse, sombriamente.
Suspirei. Quando a verdade me trouxe alguma vantagem? Diga para sua psiquiatra o que você realmente vê e ela te enche de remédios. Diga para a pessoa que você gosta o que aconteceu com você e ela nunca mais te verá com os mesmos olhos. Era assim que funcionava esse jogo.
Jessamine também pouco podia me dizer sobre o assunto. Ela escondia suas próprias verdades e eu tinha a impressão que nem todas essas verdades diziam apenas a seu respeito.
— O que acha de irmos até um dos pontos de desaparecimento? Talvez possamos encontrar uma pista.
— Não é como se eu tivesse planos para hoje — deu de ombros.
Bạn đang đọc truyện trên: Truyen247.Pro