A Revelação
Era quatro da tarde e estávamos no mesmo local onde tentei entrar no Outro Lado pela primeira vez.
Eu tentei me recordar das instruções que Nate, Trenton e Jessamine me deram essa manhã.
— Lembre-se: como você está vivo, o Outro Lado se apresentará de uma forma mais real para você — Trenton apertou meu ombro — Pense em um lugar familiar como a delegacia. Então, você só precisa encontrar os espectros perdidos.
— Eles também não pertencem. Será fácil detectá-los — Jessamine complementou — Você irá senti-los como você sentia minha presença antes, mas de uma forma diferente.
Suas palavras não tinham mais efeito. Meu corpo estava ansioso. Isso não era como uma missão do trabalho em que eu saberia me defender se algo desse errado. Eu não fazia ideia do que aconteceria, uma vez que eu estivesse lá dentro.
— Russell — Jessamine deu um passo para frente.
Hoje, ela vestia uma calça jeans e uma blusa verde de botão. Seu cabelo loiro escorria pelos ombros. Parecia ter crescido desde que ela voltou.
— Preciso te falar uma coisa antes de você atravessar — ela disse — À sós — Jessie se virou para os meninos ao nosso lado.
Trenton ergueu as sobrancelhas para mim antes de puxar Nathan para o outro lado do beco.
— O que houve?
— Você confia em mim?
— Claro, Jessie, por que está perguntando isso agora? — balancei a cabeça, confuso.
Uma corrente de ar passou pela gente e um fio caiu sob o rosto de Jessie. Ela não o ajeitou. Ela ainda me encarava com aqueles olhos enormes e castanhos como se pudesse ler minha mente através deles.
— Eu gosto muito de você, Russell. Para ser sincera, eu não me importava antes com você, porque pensei que você fosse apenas um desleixado que herdou o meu dom, mas é mais do que isso — ela disse, engolindo em seco — Você é mais do que isso — afirmou e eu senti um frio na barriga ao ouvir aquilo — Eu não me arrependo das decisões que tomei. Meu único arrependimento foi não ter matado o Sr. Ansley quando tive a chance, mas fora isso, tudo que eu fiz foi porque eu quis.
Abri e fechei a boca, sem saber o que responder para Jessamine.
Claro que eu confiava nela. No começo, eu estava receoso, porque ela era um fantasma me assombrando há mais de dez anos, mas, agora, eu a conheço de verdade. Eu sinto que a conheço mais do que conheci minha própria família.
— Por que tudo isso agora?
— Caso você morra, quero ficar com a consciência limpa — ela disse, então abriu um sorriso. Eu sorri também, ainda que sentisse que não era apenas sobre aquilo, mas não tinha tempo para discutir a moral de Jessamine.
Virei a cabeça e acenei para Trenton.
— Não morra.
— Eu já fiz coisa pior.
Mas era mentira. Todas as vezes que me arrisquei no trabalho, eu sabia o que estava fazendo e com quem estava lidando. Isso aqui... Eu não fazia ideia do que estava por vir.
Estendi a mão para Jessamine e fechei meus olhos. Respirei fundo e tentei encontrar aquele mesmo ponto em que as linhas entre os mundos pareciam enfraquecidas. Quando achei, senti que havia algo puxando as linhas para fora. Jessamine.
Era incrível como podia sentir a força dela. Era completamente diferente quando ela era um espectro. Junto a ela, forcei a entrada. Um frio correu pelo meu corpo. O chão debaixo dos meus pés desabou e, então, eu estava caindo, caindo, caindo... Me forcei a abrir os olhos, mas não conseguia. Tentei gritar e também não conseguia.
Meus pés voltaram a se firmar no chão, eu ergui a cabeça e continuava no beco.
— Acho que não funcionou — disse para Jessamine antes de perceber que ela não estava mais segurando minha mão — Trent? Nate? — eu me virei, mas eles não estavam lá.
A rua estava deserta. Nem um carro passava. Nem uma pessoa andava naquela região e, considerando que estávamos em Nova York, isso era bem estranho.
Na parede do beco, eu vi uma porta que não estava lá antes. Era de madeira e pintada de branco. A tranca estava enferrujada. Aquela porta... não me era estranha.
Pelo que os livros diziam, meu consciente acharia uma forma de mostrar o Outro Lado de uma forma mais "real" e, se eu realmente tivesse feito a travessia, aquela porta pertencia a algum momento da minha vida.
Eu me aproximei e a empurrei. Ela fez um barulho realista demais de madeira contra madeira. Eu entrei no quarto. Paredes brancas, mofos nos cantos, giz de cera apagado em algumas regiões, o piso de madeira que rangia sob seus pés quando você andava e a escadaria de madeira que levava aos quartos.
Eu estava no orfanato.
Era tudo real demais. Eu não imaginei que veria essa sala de novo e os rabiscos de giz nas paredes. Achei que minha mente apenas me colocaria em uma versão barata da delegacia. A versão desse lugar nem fazia mais sentido. Das outras vezes que visitei o orfanato, as paredes haviam sido pintadas de amarelo e as portas trocadas por novas, portas lisas sem os desenhos intrincados.
Engoli em seco e senti o chão nos meus pés. Parecia firme. Encostei na mesinha de canto onde a sra. Kelly, a supervisora geral, colocava suas chaves. As chaves estavam ali com o mesmo chaveiro da Hello Kitty encardido. Eu toquei e senti o metal gelado nos dedos.
Eu precisava me concentrar. Cada segundo no Outro Lado significava um segundo a menos que eu estava fora do meu corpo e quem sabe quais as consequências de ficar tanto tempo longe da sua própria carne?
Fechei os olhos mais uma vez. Parecia que, com os olhos fechados, eu podia sentir o que o Outro Lado era de verdade. Um vazio vasto e profundo. Era a mesma sensação que passou pelo meu corpo quando aqueles espectros me tocaram.
Eu fiz o que Jessamine e Trenton me disseram. Tentei sentir o lugar. Tentei procurar por Trevor, Marcus e a garota, Rachel. Abri novamente os olhos e, agora, o lugar estava cheio de portas. O triplo de portas que deveria haver ali.
Uma delas no canto esquerdo me chamava. Havia algo estranho ali. Toda vez que eu desviava os olhos, aquele canto em específico atraía meu olhar novamente.
Eu fui até lá e a abri com cuidado. Quando eu abri, estava em um quarto completamente diferente. Aquilo não pertencia ao orfanato. Era bonito demais e arrumado demais para um orfanato com mais de cinquenta garotos.
À direita, uma janela estava fechada e vi os prédios de Nova York com os primeiros raios da manhã. Quando saí, era tarde, eu esperava que o tempo não tivesse passado tão rápido assim.
Eu olhei novamente o quarto, os detalhes rosa nas paredes, a cama desfeita, o notebook na mesa de canto e vi a garota deitada no chão. Não devia ter mais de treze anos.
Eu me aproximei e balancei seu ombro.
— Ei, você consegue me ouvir?
Ela se apoiou nos ombros e me encarou com aquela mesma confusão que possuíam os espectros.
— Eu estava aqui e... senti essa dor — ela disse.
— Rachel? — chutei.
— Sim... Quem é você?
Então, eu estava dentro do que a consciência de Rachel projetou no Outro Lado. Os livros diziam sobre as projeções, mas não que nós, Guias, éramos capazes de invadi-los como se fosse nossa própria consciência.
— Você precisava voltar, Rachel.
— Eu- eu estou sonhando? — ela gaguejou, olhando para os lados — Parece tão real.
— Apenas se concentre em acordar, está bem?
Se fosse mais fácil para ela aceitar que estava sonhando, então assim seria. Eu toquei seu braço e tentei invocar a mesma força que expulsava os espectros de volta para o Outro Lado. Dessa vez, foi mais fácil, eu senti quando Rachel partiu, porque Trenton estava certo, ela não pertencia a esse lugar.
Só posso imaginar que a pessoa no seu lugar havia retornado.
Uma outra porta surgiu no canto em que eu estava. Eu empurrei sem esforços e estava agora no Pinpoint, mas ele estava estranhamente vazio. As bebidas ainda estavam intocáveis na mesa e a música do Aerosmith ainda tocava nos alto-falantes.
Do meu lado direito, estava o bar e os bancos onde eu e Jessamine estávamos sentados.
— Que porra é essa? — Essa só podia ser a voz de Trevor.
Ele estava deitado no chão, a roupa amassada e o cabelo escuro bagunçado. Eu refiz todo o processo que fiz com Rachel. Foi mais difícil convencê-lo de que estava sonhando, mas assim que fechou os olhos, eu o enviei de volta.
Então, fiz o mesmo com Marcus. Ele estava no espaço dos funcionários da joalheria. Todos estavam no mesmo lugar no momento em que seus corpos foram roubados. Eles provavelmente acordaram confusos na terra.
Quando saí pela última porta, eu estava de volta no saguão do orfanato. Não sei quanto tempo levei para retornar Marcus, Rachel e Trevor... Eu senti que horas se passaram, mas Jessamine havia me dito que o tempo passa de forma diferente aqui dentro. Lá fora, poderia ter sido apenas alguns minutos ou dias... O que me deixava levemente nervoso.
A sensação de ter perdido horas ou dias da minha própria vida me deixava nervoso.
Essa era a última parte do plano. Encontrar Carrie. Fechei meus olhos novamente e procurei... não por algo fora do lugar, mas pela força estranha naquele lugar. Devo ter passado alguns segundos até não aguentar mais a sensação de frio subindo pelo meu corpo. Eu não a encontrava...
Isso significa que ela foi embora...? Poderia ter sido tão fácil assim?
Você não deveria estar aqui.
Ouvi uma voz estranha e masculina. Olhei ao redor, mas não havia ninguém, apenas as portas.
Pensei que tivesse sido claro no primeiro aviso.
Não, não havia ninguém comigo na sala, porque a voz estava vindo da minha cabeça. Como ela estava fazendo aquilo? Claro, aqui era seu domínio. Se eu estivesse certo, Carrie era um Guia como eu e Jessamine, porém diferente de Jessamine, ela não tentou manter o controle do Outro Lado, ela o assumiu para si mesmo.
— Não sou o maior fã de regras — disse para o vazio — Você provavelmente já sabe. Há quanto tempo está me espionando?
Não mais. Os sigilos... Aquela vadia inglesa, não é? Foi um feito e tanto tirá-la daqui.
Eu me encostei contra uma parede, tentando procurar por uma fonte, qualquer coisa. Forcei meu cérebro a revelar a imagem de Carrie, mas eu sentia uma segunda força me empurrando para trás.
— Não gosto de me gabar, mas talvez eu seja mais forte que você.
Russell. Nunca leva nada a sério. Sua vida inteira foi assim.
Fechei os olhos para tentar localizá-lo, mas era impossível. Carrie era claramente mais forte do que eu aqui. Pelo menos, ele ainda não tentou me machucar. Não sabia dizer se os selos o impedia ou ele apenas não queria fazer nada... ainda.
— Quem é você?
Risadas. Uma risada gutural que vinha do fundo da garganta.
— Está bem. Vamos à próxima pergunta: por que está fazendo isso? Você tem um propósito ou é apenas outra alma perdida?
Propósito. Eu gosto dessa palavra. Nunca tive um quando estava vivo.
Tentei guardar o sorriso. Criminosos odiavam não ter seus feitos conhecidos. Algumas coisas não eram tão diferentes aqui.
Ele, um dia, esteve vivo, só preciso saber quando e onde, então talvez possa tentar encontrar sua própria consciência e arrastá-lo até lá. Isso deve desarmá-lo de alguma forma.
Qual o propósito do seu trabalho, Russell? Justiça?
— Imagino que sim... — disse, minha atenção desviando para um corredor onde a luz piscava. Sorri. Achei que estava conseguindo trazer Carrie para cá, mas, a luz do saguão começou a piscar também e percebi que era proposital. Eu não estava tendo nenhum progresso.
Acredite se quiser, o meu também.
— Puxar inocentes para o Outro Lado, isso é justiça?
Essa é a questão, Russell, eles não são inocentes. Veja bem como acontece: algumas pessoas como eu morrem injustamente para dar espaço a outras que não tem esse direito. Tudo que eu fiz foi retornar os que realmente merecem uma vida ao corpo daqueles que jamais mereceram o ar que respiram... Admito que tive dificuldades no começo, foi difícil puxar apenas o espectro sem o corpo, mas, acho que peguei o jeito.
— Então isso tudo é você agindo como um justiceiro, porque sua vida deu errado em algum momento.
Minha vida não foi minha. Alguém a arrancou injustamente. Anya, Gerald e Reed também não tiveram culpa.
— E Rachel, uma garota de treze anos, teve que sofrer as consequências disso?
Rachel não é apenas uma garota de treze anos. Rachel fez uma garota da sua sala ser expulsa, porque ela não fala inglês, porque a família dela fugiu da guerra na Síria, porque ela não teve o mesmo privilégio que Rachel.
Engoli em seco, irritado por ter pena da garota, porém não era meu direito condenar. Eu era um detetive. Eu ia atrás das evidências. Eu apontava o criminoso e as leis impunham a punição que ele merecia.
Acho que não preciso falar muito sobre Marcus, você pode fazer a própria conta na cabeça. Quanto a Trevor... Bem, ele vem roubando a própria empresa há anos e Gerard era só um garoto que confiou demais nos amigos como eu confiei na minha família.
— Esse não é seu direito. Você não pode ir contra as leis naturais e agir como um maldito deus.
Leis naturais? Eu não estou agindo contra nada. Esse lugar, Russell, não pertence a nada, nem a ninguém. Tudo que estou fazendo é impondo a ordem, diferente da sua amiga que continuava a obedecer padrões impostos por outros humanos antes dela. Ninguém deveria ter o direito sob os mortos além de nós mesmos.
Se ela tivesse um pouco de força de espírito poderia fazer a diferença comigo...
— O problema é que Jessamine não é uma megalomaníaca.
Eu só estou fazendo aquilo que não fizeram por mim.
— Você fala de justiça, mas e o que fez com os outros Guias? Com Min Huang de apenas cinco anos?
Os Guias atuais são moldados por ideias antepassadas, impossíveis de mudar, mas a nova geração que virá em breve será diferente. Eu mesmo ensinarei as novas regras.
— O que você quer é loucura. Injustiças acontecem o tempo todo. É inevitável — falei, respirando fundo. Talvez se eu tentasse uma aproximação mais suave poderia persuadi-lo a aparecer — Nada que você faça irá mudar sua realidade. Eu aprendi isso da pior maneira.
A questão é que nada aconteceu com você, Russell, não é?
Senti o chão sob meus pés balançando. No momento seguinte, uma figura surgiu na minha frente. Não apenas uma figura... O cabelo escuro, o corpo magro, os olhos pequenos e puxados... Sam.
Ele ainda estava com a mesma camiseta xadrez e a calça jeans velha que usou no dia do acidente. Eu lembro dos paramédicos o tirando do carro, do sangue escorrendo pelo seu rosto e a sua perna contorcida de um jeito não natural.
— Como você está fazendo isso?
— Eu não estou fazendo nada. Não consigo manipular o que sua mente enxerga — Sam disse. Era a primeira vez que eu ouvia a voz do meu irmão depois de vinte e oitos anos — Esse sou eu.
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