A Queda
Dois dias passaram voando. Nossa divisão recebeu uma série de casos e eu praticamente não parei em casa. Em uma investigação num apartamento da Avenida Coney Island, puxei Carey pelo braço e lhe entreguei o colar.
Ela pegou o pingente e passou os dedos pelo símbolo.
— O que é isso?
— Um presente de aniversário.
— Meu aniversário é daqui a quatro meses...
— Ok, considere um presente de agradecimento... — falei. Ela franziu o cenho. Puta merda, por que ela só não podia aceitar o maldito colar? — Por todos os anos na delegacia... Olhe, Carey, eu venho me sentindo mal pelos últimos casos, por ter tentado passar por cima da sua autoridade. Só quero fazer as pazes.
Apenas coloque o maldito colar. Aquela coisa pode vir atrás de nós e eu não quero que você seja pega em uma batalha que não é sua.
Carey me encarou, desconfiada. A mão dela fechou ao redor do pingente e ela abriu o mais fraco dos sorrisos.
— Obrigada — Carey disse — Você está mesmo bem?
— Está tudo bem — assegurei.
Mas não estava. Eu começava a ficar preocupado com o que aconteceria na sexta-feira.
Acho que comecei a entender melhor Jessamine quando ela disse que não tinha medo de morrer, porque sabia que havia um depois, mas, no momento em que ela se viu confrontando a morte, ela sentiu medo.
Eu sentia que estava prestes a confrontá-la também ao entrar no seu território. E se eu não voltasse? E se eu conseguisse, mas Carrie me encontrasse e achasse uma forma de me manter ali para sempre? Se ela teve o poder de matar todos os Guias atuais no nosso mundo, imagine só a extensão do seu poder lá.
Eu fui transportado de volta aos oito anos de idade quando eu sentia medo do escuro, da cozinheira alta e nervosa que trabalhava no abrigo temporário, de nunca ser adotado, das coisas que me perseguiam à noite, de terminar sozinho como minha mãe.
Só quando cresci percebi que a maioria dessas coisas eram irracionais. A cozinheira não tinha o poder de me machucar e eu podia ignorar as sombras. O medo de ficar sozinho apenas foi embora com o tempo, porque eu me acostumei com a ideia de que ninguém no mundo esperaria por mim.
Agora, eu percebo: essa é a pior forma de morrer.
Na sexta de manhã, passei no cemitério do Queens. Não fiquei mais de cinco minutos lá. Quando sai e entrei no meu carro, senti um calafrio no pescoço e, então, Jessamine estava no banco do passageiro. Pelo menos, ela aprendeu a me avisar.
— O que estava fazendo? — perguntou.
Dei partida no carro e peguei a avenida principal de volta para o Brooklyn.
— Visitando.
Continuei dirigindo em silêncio. Achei que Jessamine tinha ido embora. Não conseguia escutar sua respiração. Nunca consegui e era estranho.
Ela quase não apareceu nos últimos dias, imaginei que estivesse carregando as baterias para a sexta.
— Russell, você a viu? — ela perguntou e eu não entendi — Sua mãe... Se ela sofreu uma morte assim, provavelmente não foi para o Outro Lado no mesmo instante.
Engoli em seco.
Depois que me acostumei com a ideia de conseguir enxergá-los, eu admito que tentei procurar por ela, mas foi muito tempo depois e, no final, eu só queria que ela tivesse seu descanso final.
Não valeria a pena ir atrás dela, de qualquer jeito. O que eu perguntaria? Por que ela fez aquilo? Por que ela deixou as drogas ditarem seus passos? Por que ela nunca agiu como a mãe que deveria ter sido?
Qualquer uma dessas perguntas não mudaria minha situação de agora. E de um jeito ou de outro, eu sobrevivi. Eu tinha uma vida razoável. Pagava minhas contas, tinha um trabalho que nem sempre era seguro, mas era estável. Nada disso foi conquistado com sua ajuda.
— Não — balancei a cabeça — Você?
— Eu vi Thomas — ela disse, olhando para a janela — Não deveria ser possível, porque ele morreu de varíola, porém ele apareceu para mim. Quando eu estava deitada no meu próprio sangue, a última imagem que vi foi o seu rosto. Ele não me disse nada.
— Você o amava — Era uma pergunta, mas saiu como uma afirmação.
— Era mais que isso. Ele foi a última pessoa com a qual eu me importei no mundo. Era a âncora que segurava minha vida ali.
Isso parecia com amor.
— Eu sei que está nervoso, Russell, mas não precisa estar. O Outro Lado irá se adaptar a você, irá te apresentar a uma realidade conhecida e tudo que você precisa fazer é procurar por Carrie — Jessamine disse.
Ela ergueu a mão e parecia prestes a tocar meu braço, mas desistiu no meio do caminho. Seu toque só pioraria tudo.
— Como faço isso?
— Você irá senti-la como eu senti.
— Você não estará lá comigo?
— Se eu for, eu temo que não conseguirei voltar — ela contou — E ainda não é a hora. Quando tudo estiver certo, eu irei.
Senti um nó no estômago, o mesmo nó que senti quando ela falou pela primeira vez sobre partir para sempre. Não sei como me apeguei tanto a Jessamine, mas, de alguma forma, aconteceu. Talvez fosse o trauma compartilhado.
— A ideia de Trenton... Você... — parei — Você realmente não teve vontade de tentá-la?
Jessamine continuou encarando o trânsito da sétima avenida. Eu observei seu cabelo amarelado, reparando pela primeira vez que eles também estavam levemente sujos de lama.
— É melhor não bagunçar a ordem natural das coisas.
— Então, é aqui? — Trenton olhou ao redor do beco em que estávamos.
Era perto das docas. Podia sentir o cheiro salgado do mar e de comida frita vindo do outro lado da rua. Jessamine indicou esse ponto, porque, além do véu estar enfraquecido nessa região, poucas pessoas passavam por aqui. Seria mais difícil para Carrie raptar alguém se abríssemos o véu.
— Vamos logo acabar com isso — disse, me aproximando do muro de pedras no fim da viela.
O canto era sujo e fedia a lixo. No muro, havia o grafite de uma menina com um balão, o que era tão macabro quanto soava.
— Espere um pouco — Trenton puxou meu braço. Nós nos encaramos e pude ver que ele estava preocupado — Tome cuidado, ok? Procure por Carrie e volte. Se não encontrar a saída, você só precisa projetá-la.
Eu queria perguntar "como assim projetá-la?", mas sinto que Trenton se preocuparia ainda mais.
— Está bem.
Trenton apertou meu ombro. Sinto que ele ia dizer mais alguma coisa, mas desistiu e recuou até onde Nathan estava.
— Jessamine está aqui?
— Sim — respondi, mesmo que não conseguisse vê-la — Ela está economizando energia.
— Ok. Se vocês estiverem prontos... — Nathan falou.
Ele e Trenton ficariam ali para cuidar do meu corpo e vigiar caso alguém entrasse por ali sem querer. No pior dos casos, também olhariam se algo saísse. Não que eles pudessem enxergar alguma coisa, mas se Jessamine ainda tivesse forças cuidaria dessa parte.
— Vamos lá — murmurei e fechei os olhos.
Como Jessamine me instruiu, eu tentei imaginar o véu que partia nosso mundo do outro, tentei imaginá-lo como uma camada fina e frágil. Um pequeno esforço e ela romperia. Então, eu comandei que ela se abrisse para mim.
Senti aquela mesma força da noite em que fui atacado se espalhar pelo meu corpo. Era Jessamine. Ela também forçava o véu. Eu me concentrei em unir nossas forças para abrir uma passagem.
Eu podia quase... Ali. Eu não sei exatamente como, porém sabia que tinha encontrado o ponto fraco, o lugar que me daria a abertura. Estendi meus braços como se isso fosse de alguma forma me ajudar e me imaginei empurrando aquela pequena camada. Nós estávamos quase lá... Eu podia sentir o mundo balançando, as realidades se misturando... e algo... Carrie, ouvi Jessamine.
No momento seguinte, eu fui forçado a recuar. Acho que cai no chão, mas eu não sentia mais o chão ou meu corpo ou o cheiro do mar ou a realidade que me cercava. Eu estava lá e não estava. Eu estava agonizando e agonizando. O Outro Lado estava me engolindo. Uma poça fria e escura estava me cercando e me arrancando do meu corpo, me levando para longe.
Não, não para longe, para o lugar que você merece.
Não era possível.
Aquela voz na minha cabeça.
Estava falando comigo, mas não era possível.
Tudo escureceu.
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