Fazia todo sentido.

Trenton estava certo sobre a árvore genealógica de Jessamine ter chegado no Canadá, mas a família do meu pai não eram os Guias de verdade, nem os Montague.

Durante esse tempo todo, a linhagem nunca pertenceu à minha família e, sim, a de Sam. Quando ele se foi, eu era a pessoa mais próxima do seu sangue e o dom veio para mim.

— Veja, Rusty — Senti um arrepio subir pelo meu corpo pelo uso daquele apelido que eu não ouvia há muito tempo — Quando mamãe bateu aquele carro, você acha que você merecia ter saído vivo?

— Você não sabe quantas noites eu desejei ter morrido com vocês. Não é justo, Sam.

— E ainda sim, você sobreviveu! — Sam aumentou o tom de voz e, de repente, eu me lembrei das vezes que ele gritou comigo por ter tocado no seu videogame ou ter feito qualquer outra coisa que uma criança de 6 anos faria.

Sam sempre me afastou, mas era engraçado como depois da sua morte tudo que eu pensava era que sentia falta de Sam.

Esse reencontro era errado. Eu não era mais uma criança, mas ele ainda parecia o mesmo adolescente e, de alguma forma, eu também me sentia uma criança lidando com o irmão mais velho.

— Não foi o suficiente apenas ter vivido, você ainda roubou os meus poderes. E o que você fez com essa vida? Apenas bebeu por aí e fez inimigos.

— Não é justo colocar a culpa em mim. Você sabe que a culpada pela minha e a sua situação foi nossa mãe — rebati, irritado. Diferente do Rusty de seis anos, eu tenho minhas próprias palavras agora e eu precisava fazê-lo entender que nada do que houve foi culpa nossa.

— NÃO OUSE CULPAR MAMÃE! — Sam gritou e o orfanato balançou como se seu grito tivesse força. Eu fui empurrado para trás e o ar saiu dos meus pulmões — Ela nunca teve culpa de nada. Foi quando você nasceu que tudo deu errado... Antes de você, Rusty, eu e mamãe éramos felizes. Meu pai ainda nos visitava, ele me levava para a escola e quando eu chegava em casa, minha mãe fazia lasanha... Então, quando ela estava trabalhando naquele bar asqueroso, porque era o único emprego disponível na cidade, um idiota resolveu a encurralar e eu sei que ela resistiu, mas não foi o suficiente. Você não estava lá, não viu como ela ficou naquela noite, tudo que eu queria era tirar a dor dela. Quando as coisas voltaram ao normal, ela descobriu você.

Eu não fui capaz de abrir minha boca agora. Não fazia ideia dessa história. A única mãe que eu conheci era uma viciada que me abandonava com meu irmão de quatorze anos para buscar drogas. E quanto ao meu pai... Eu só achei que ele fosse um desses caras com quem ela andava. Eu nunca poderia imaginar isso...

E, ainda sim, isso não podia ser minha culpa. Eu não poderia imaginar que a minha existência fosse um peso tão grande para minha mãe que ela precisava escapar da própria realidade.

— Então, Russell, esses são meus motivos — Sam recuperou o ar e deu um passo para trás — Você pode tentar me parar, mas eu sou mais poderoso que você aqui. Quanto a Jessamine... Bem, admito que o tempo dela nesse lugar supera o meu, o problema é que ela não está mais aqui.

Eu trinquei o maxilar e olhei nos fundos dos olhos de Sam, do meu irmão mais velho que sofreu tanto e não teve culpa de nada, porém esse não era mais meu irmão, nem um humano de verdade.

— Eu realmente sinto muito por tudo que te aconteceu, Sam. Tudo que eu sempre desejei foi te ter de volta.

Sam me encarou. Por um segundo, eu pude ver no seu olhar aquele reflexo de humanidade que Jessamine possuía, mas ele se esvaiu tão rápido quanto apareceu. Ele pode ter passado menos tempo que Jessie no Outro Lado, mas ele se tornou um daqueles espectros viciados. Não havia nada que eu pudesse fazer por ele.

— Se renda, Rusty, e aceite a nova ordem.

Com um piscar de olhos, o mundo tremeu novamente e eu senti o frio de Nova York, além de todas as partes do meu corpo doloridas, especialmente o pescoço onde as mãos de Eddie ainda marcavam uma linha vermelha.

— Russ? — Trenton apareceu no meu campo de visão.

Eu via tanto de Sam nele que meu primeiro instinto foi me afastar. Senti uma mão no meu ombro que pertencia a Jessamine.

Quando encontrei seus olhos, eu entendi as palavras que me disse antes de partir.

— Você sabia.

Jessamine não respondeu.

— Você mentiu. Você disse que eu podia confiar em você, mas não teve problemas em esconder isso de mim.

— Do que você está falando? — Trenton olhou confuso de mim para Jessamine.

— Se eu tivesse contado, você nunca teria aceitado me ajudar... Você sabe que teria tentando me mandar para o Outro Lado no segundo em que eu te contasse o que realmente estava acontecendo e, então, pessoas teriam perdido a vida de verdade — ela falou — No começo, eu não me importava se isso iria ou não te afetar, mas quando você me trouxe de volta e eu percebi que não foi tão sensível quanto a isso.

Eu me levantei, dispensando a ajuda de Trenton.

— E ainda sim, você não me contou.

— Era melhor que você visse com seus próprios olhos.

Eu sustentei o olhar de Jessamine. Estava tão irritado por ela ter agido assim, por Sam ter jogado todas aquelas coisas na minha cara, por minha mãe ter batido aquele maldito carro, mas não forte o suficiente para me matar também. Eu só queria deixar que Sam fizesse o que ele bem entendesse e acabasse com a dor e a raiva.

— Ok, do que diabos vocês estão falando? — Nate apareceu entre nós dois — Nós recebemos a notícia de que Trevor voltou, então foi um sucesso, certo?

— Sim, eles estão bem — respondi — E Carrie... é meu irmão, Sam, e ele tem planos muito maiores.

— O quê?! — O rosto de Trent se encheu de preocupação, mas eu não estava com saco para conversar sobre tudo que aconteceu.

— Eu preciso de um tempo — falei e dei as costas para os três.

Nenhum deles tentou vir atrás de mim, nem quando eu peguei um táxi para casa, nem quando eu bebi o resto do uísque na geladeira e deitei na minha cama. Por dois dias, Trenton não me ligou e Jessamine não apareceu em casa.