A Alternativa
Ouvi risadas vindo do andar de cima da loja de antiguidades. Quando subi as escadas, me deparei com Nathan e Trenton sentados na mesa. Havia duas xícaras de café em cima dela e dois pratos com restos de donuts.
Eu não sei que tipo de amizade estranha estava nascendo aqui, mas eu não gostava nem um pouco disso.
— Ah, o viking chegou — Nathan comentou e Trenton riu.
— Ele realmente parece um viking.
— O que é um viking? — Jessamine perguntou atrás de mim.
— É isso que vocês estão fazendo o dia inteiro? — perguntei, tirando meu casaco e jogando em uma das cadeiras vazias. Os dois me encararam como se fossem crianças tirando sarro do professor.
Deus, eu odiava os dois.
Meu sábado se resumiu a passar o dia com Bolt enquanto procurava pelos nomes que Nathan havia me passado dos Guias atuais. Ele também me passou a árvore genealógica que seu avô montou para conseguir encontrar o Guia dos Sheridan (no caso, eu). Era extremamente confusa, vinha da Escócia como Jessamine imaginou e, de alguma forma, chegava ao Canadá.
Eu não era canadense e minha mãe era descendente de franceses. Não fazia o menor sentido. Sem informações sobre meu pai, a tarefa ficava mais difícil ainda.
À tarde, Trent e Nathan apareceram para proteger minha casa. Jessamine nos indicou um livro velho escrito à mão com os sigilos para proteção dos Guias. Nós desenhamos com caneta permanente no papel de parede de casa um isolador para proteger o lugar de qualquer espécie de mal sobrenatural. Eu fui relutante quanto a desenhar aquele que afasta espíritos, mas Jessamine insistiu que ela era forte o bastante para aparecer para mim mesmo com os sigilos.
Eu me perguntava se isso faria os sonhos irem embora também.
Os meninos fizeram o mesmo na livraria. Eu levei o símbolo para um conhecido no Queens e ele fabricou quatro cópias de prata do símbolo contra espíritos. Dois traços finos e um meio círculo ao redor deles. Foi horrivelmente caro, mas era necessário. Ataques como o da outra noite não poderiam voltar a acontecer.
Eu comprei as correntes e entreguei os colares a Nathan e Trent. Um ficou comigo. O último ficaria para depois... Ainda precisaria arrumar um bom pretexto para entregar esse.
— Nós encontramos.
Franzi o cenho e olhei para Nathan que sorria.
— O que exatamente?
— Uma forma de entrar no Outro Lado — Trenton contou e ergueu um livro — Aqui. Um livro escrito por George Bassford em 1605. Ele fez experimentos e conseguiu achar uma forma de abrir uma entrada para o Outro Lado.
— O problema é que George nunca tentou, porém sabemos que é possível criar uma passagem. E, de acordo, com os livros dos Guias da linhagem africana escrito em 1873, um Guia pode atravessar o Outro Lado desprendendo sua alma do próprio corpo, sem necessariamente morrer no processo — Nathan continuou como se ele e Trenton tivessem ensaiado esse discurso.
— Foi o que eu te disse no outro dia na delegacia. Os fantasmas comuns não veem o Outro Lado como ele é. Quando você entrar lá, você é capaz de alterar a realidade e adaptar a matéria de forma que você enxergue um lugar e não o vazio — Trenton completou — Enquanto morto, suas memórias fazem esse trabalho pra você, então você vê imagens do seu passado. Mas como um Guia... Você é o entremeio do nosso mundo e o outro mundo e é o único que pode alterar a realidade dos dois.
Eu me apoiei em uma mesa de canto velha, um pouco tonto pela forma como eles se completavam.
Isso era bom. Era muito bom. Olhei para Jessamine ao meu lado e havia esperança nos seus olhos. Aquele era o caminho para encontrar Carrie, acabar com ela e permitir que Jessamine encontrasse paz.
— Ok, como abrimos uma passagem? — puxei a cadeira e me sentei.
— Muito fácil. Precisamos de um ponto onde o véu esteja fraco.
— Nós temos oito desses em Nova York — Nathan relembrou.
— Parem de se completar. É ridículo.
— Agora vem o fator surpresa: abrir uma passagem para uma alma viva atravessar do nosso lado para o outro é muito perigoso e arriscado. Você pode romper o tecido do Véu e criar uma grande confusão. Então é necessário dois Guias para o tamanho da força necessária. Por isso George e Kgosi nunca conseguiram abrir o portal. Eles não tinham contato com outros Guias, talvez nem soubesse da existência deles... Como alguns dos livros da linhagem africana acabaram nas mãos da minha família durante a colonização da África, esses livros ficaram intocados por anos.
— Merda. Merda. Merda — eu me levantei da cadeira e passei a mão pelo meu cabelo — Carrie sabe.
— Carrie?
— É como eu e Jessamine chamamos quem quer que esteja por trás disso... De alguma forma, ela sabe que íamos tentar abrir uma passagem e, aparentemente, ela também sabe que o único jeito de fazer isso é com dois Guias, por isso... — Respirei fundo — Ela matou todos os Guias.
— Não é possível. A última vez que eu chequei...
— Eu vi sua lista, Nathan, e procurei pelos nomes na internet — disse — Dimitri Bogdanov na Rússia foi morto na última quarta por uma norte-americana que desapareceu de Nova York no mês passado. Mesma coisa com Yooku Johannes na Botsuana. Sabrina Matos no Brasil. E Deshi no Japão...
Nathan processou todas aquelas informações. Eu não sabia dizer se ele tinha contato com essas pessoas, mas seu avô monitorava as famílias, então devia ser um choque.
Ou apenas o fato de todas essas pessoas estarem mortas era um choque. Era difícil dizer. Pra mim, é só um dia normal. Quando fazemos o trabalho que eu e Trenton fazemos, algumas coisas perdem o impacto que deveriam ter.
— Não é só isso — continuei, encarando os livros na mesa — Carrie também matou um primo de cinco anos de Sabrina, o filho de Dimitri e o irmão mais novo de Johannes.
— Ela eliminou os Guias descendentes — Trenton completou — Assim não poderíamos encontrá-los e, provavelmente, os novos Guias são novos demais para pedirmos ajuda ou impossível de serem rastreados.
— Eles também estão correndo perigo — Nathan murmurou — Isso é horrível. As crianças não tinham culpa de nada — ele balançou a cabeça e se sentou na cadeira. Trenton o encarou e pousou uma mão no seu ombro.
— A única coisa que podemos fazer agora é ir atrás de Carrie.
— Bem, se não conseguirmos abrir uma passagem, teremos que passar para o próximo plano — ir atrás dos desaparecidos — falei — Aparentemente, o assassino de Dimitri foi uma nova iorquina que desembarcou na Rússia na mesma manhã. Eu rastreei o voo e ele veio da Botsuana. Eu acredito que seja o mesmo assassino de Johannes.
— E vamos vasculhar a Rússia em busca dela? A Rússia é enorme, Montague — Nathan aumentou o tom de vez.
— E o que diabos você propõe?!
— Jessamine pode te ajudar, não? Você e ela juntaram forças naquela noite no galpão abandonado, talvez vocês consigam abrir um portal juntos — Nathan falou.
Eu me virei para Jessamine. Ela acompanhava a conversa com seus olhos penetrantes. Aposto que Nathan não seria tão grosso se pudesse ver sua expressão.
— É uma ideia, mas não sei se é o suficiente — Jessamine disse — Aquele dia me enfraqueceu. Não sei se teria força o bastante.
— E então? — Nathan perguntou, tirando minha atenção dela.
— Ela está enfraquecida, mas pode tentar.
— E o que estamos esperando?
Olhei para Nathan. Sei que estava desesperado pelos assassinatos, mas não era tão simples assim. Se isso desse certo, eu teria que atravessar o mundo dos mortos e, sinceramente, não sabia se estava preparado. Ainda mais existindo a possibilidade de eu não voltar nunca mais...
— Bom — Trenton quebrou o silêncio — Se isso não der certo... Há uma outra alternativa — ele limpou a garganta — Um livro em latim antigo sem autor ou referências diz que um Guia pode transferir matéria do Outro Lado para o nosso lado. Não é permanente e no final da página há um aviso macabro sobre isso trazer consequências graves.
— Transferir matéria? — perguntei.
— O Outro Lado é um lugar como aqui, ele possui sua própria matéria, ainda que diferente da matéria da terra, mas é matéria e quando um fantasma está aqui... Ele não está totalmente aqui, é um reflexo da sua matéria do Outro Lado que vaga pela terra...
— No inglês simplificado...? — cortei Trenton antes que ele começasse a divagar demais. Ele olhou para mim depois para Nathan. Nathan também parecia não ter ideia do que ele queria dizer.
— Podemos transferir uma alma para cá e será como se ela estivesse viva — Trenton me olhou e eu entendi de quem ele estava falando. Jessamine. Jessamine podia ser trazida dos mortos...?
Eu virei o rosto na direção dela. Seus olhos castanhos estavam focados em Trenton, mas eu não sabia decifrar a sua expressão. Ela já sabia disso...? Não, não é possível. Se ela soubesse, teria sugerido no instante em que me encontrou, afinal qualquer um gostaria de ter uma segunda chance.
— Não vamos ressuscitar ninguém. É uma transferência e, bem, só funciona no caso dela, porque os Guias mantêm toda sua constituição no Outro Lado... Se fizesse com um fantasma comum, não funcionaria ou algo não-humano seria trazido à vida.
— Isso não parece certo — balancei a cabeça — É contra as Leis Naturais.
— Mas se há crianças inocentes morrendo pelo mundo inteiro nesse momento, essa é só uma medida desesperada — Nathan falou e eu fiquei surpreso por ele concordar com a ideia — Jessamine pode ser uma grande ajuda para a gente. Não só ao abrir a passagem, mas depois... Não temos um plano para depois, temos?
— Não — murmurei — O próprio livro fala sobre consequências graves. E se fizermos isso e transferir mais do que apenas Jessamine...?
— Você ao menos perguntou o que ela acha de tudo isso? — Nathan disse e ergueu as sobrancelhas.
Jessamine e eu cruzamos um olhar prolongado.
— Eu confio em você, Russell. Você decide — ela falou com um aceno de cabeça.
Jessamine era uma pessoa extremamente difícil de ler, mas eu acreditava que ela estava falando sério sobre confiar em mim.
— Você acha que consegue repetir o que fez na noite que Eddie me atacou? Juntar seu poder com o meu? — perguntei.
— Está difícil me recuperar dessa vez. Mas se me der dois dias, acho que posso tentar.
Dois dias. Eu precisaria de alguns dias para me preparar de qualquer forma. Isso parecia perfeito. Sem planos malucos e sem perturbar os mortos. Já era loucura suficiente o fato de ter que entrar em um lugar que não existe de verdade.
— Jessamine precisa de dois dias.
Nathan se sentou na cadeira. Ele não estava feliz com isso, mas eu sabia que era a coisa certa a se fazer. Posso ter feito muitas escolhas erradas nesses trinta e três anos e, com certeza, desobedecido a um número considerável de regras — Rhodes sabia bem —, porém não passaria dos limites agora.
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