2. Garoto deseja lua
Havia três marcos importantes na vida de um lenhador.
O primeiro era quando ele agitava o machado para ferir o louro vermelho e fazer a madeira sangrar. Quando a seiva rubra escorresse o jovem aprendiz poderia ser chamado respeitosamente de lenhador. Não que fosse necessário reafirmar aquilo. Todos já haviam se acostumado à visão dos garotos de aparência suja voltando para casa com restos de serragem grudados por todo o corpo. Porém, como acontecia com a maioria das tradições, ninguém se atrevia a questionar.
O segundo ocorria quando uma dama o arrastava para frente do salgueiro matrimonial e, diante de algum sacerdote, eles trocavam seus votos. O homem deveria construir a cama para que o casal passasse a noite de núpcias. Recomendava-se usar madeiras fortes, como angelim e massaranduba, devido às atividades que seriam praticadas sob os lençóis. Não faltavam diálogos indecentes sobre cabeceiras que vieram à baixo ou suportes que não aguentaram o peso. Naturalmente, o noivo culpava a própria virilidade, enquanto alguns não perdiam a oportunidade para rir de sua inaptidão para a marcenaria.
O terceiro era a morte do lenhador, quando ele seria enterrado em um caixão feito por suas próprias mãos. Uma árvore deveria ser plantada para prover a madeira. A maioria costumava adiar aquele momento, nada confortáveis em trabalhar num projeto que soava tão sombrio.
Diferente de todos, vovô Tom sempre contava como escolheu logo a semente, a enterrou no chão e, mesmo antes que a árvore se esticasse à altura de suas irmãs, derrubou a madeira e serrou as tábuas enquanto dispunha de toda a força da juventude. A peça havia sido lixada à exaustão antes que uma mistura de seiva fosse aplicada, fazendo-a brilhar como gotas de orvalho. Arabescos foram talhados na lateral e ele ainda teve a presteza de adicionar uma pequena portinhola para que os entes queridos pudessem ver seu rosto antes do enterro. O aspecto do caixão deveria dizer sobre quem o lenhador havia sido e tudo o que aprendera com o ofício. Uma última visão a ser lembrada.
E Daich se lembrava. Lembrava do funeral. Lembrava dos dezesseis anos. Lembrava de sua própria iniciação.
Lembrava das mãos suadas, da impaciência dos homens que queriam aproveitar seus horários de almoço de outra forma e da voz de Dan, que parecia tão exigente quanto a de qualquer pai deveria ser.
— Vamos, Daich. Acerte o tronco!
Ele sentiu a multidão de olhares perfurando suas costas e o sussurro inquieto do vento em seu pescoço que tornou o suor tão gelado quanto uma sepultura. Uma respiração, duas. Os dedos envolveram o cabo com mais firmeza, mas quando ergueu o machado, o peso do ferro o puxou para trás. Naquele momento, o Pai Terra tratou de pregar uma peça e enviou um ligeiro balançar através da Mata dos Lenhadores. E, para a vergonha do pai, Daich caiu, cambaleando desajeitadamente para longe da árvore.
A terra se agitou. O vento assobiou quando um sopro de ar se precipitou no espaço. O estrondo desvaneceu de repente, deixando apenas gritos e o rangido de galhos despencando. Os homens soltaram suspiros aliviados ao mesmo tempo em que uma risada baixa se espalhou pela multidão, embora meio nervosa sob a expectativa de um novo tremor.
Sem demora, como uma maneira de compensar o fiasco, Daich se levantou para uma nova tentativa. Recuperou o machado e atingiu a árvore num movimento meio atrapalhado. A lâmina afiada penetrou o louro vermelho em meio à antigas machadadas que se enchiam de âmbar endurecido.
Quanto mais forte e profunda fosse a investida, melhores as chances de fazer a seiva vermelha jorrar. Um lenhador que não sangrava a árvore era visto como mau agouro. Um presságio nada agradável do ele poderia se tornar.
As primeiras visões que um aprendiz tinha a oferecer eram quase tão importantes quanto as últimas.
Então, Daich esperou e os homens olharam em expectativa.
Até que a seiva começou a escorrer do sulco em pequenos fios avermelhados, fazendo o golpe se assemelhar à uma boca arreganhada e sangrenta.
Pelo vexame na iniciação, o pai de Daich o arrastou para a pescaria.
O homem tinha cedido algumas noites para o filho, sabendo que as juntas demoravam a se acostumar ao trabalho. Entretanto, quando o fim do dia se aproximava, ele não podia ignorar as vozes de fofoca e risadinhas ao redor dele.
— Você viu o filho do Dan?
— Não, mas ouvi dizer que o garoto nem aguentou o peso do machado.
— Que vergonha. Meu filho, Kato, treina todos os dias em uma castanheira para não fazer feio no dia de sangrar a árvore.
— É. Mas você lembra quem era o avô dele? Provavelmente o garoto andava por aí fingindo que era um guerreiro lendário ao invés de se preparar para o trabalho.
— Lembra que o velho disse que juntaria moedas para comprar um navio e atravessar o Mar Safira? Me disseram que ele nem sabia formar uma frase coerente no final.
Pelo menos, Daich supôs que fosse algum tipo de punição quando empurraram a canoa da parte rasa e a fizeram flutuar noite à dentro. Em algumas ocasiões, os homens se juntavam e saíam em uma flotilha de barcos, tremendo sob o frio da madrugada e usando arrastões para enredar os cardumes.
Naquele dia, os mosquitos vieram antes dos peixes, perfurando a pele exposta enquanto eles ainda procuravam um lugar onde arremessarem suas linhas. Havia couro de animais e botas esquecidas entre as tábuas de assento, além de anzóis, redes e varas de pescar.
Apesar de ser visto como um homem duro e resoluto, Dan era paciente para ensinar ao filho tudo o que ele precisaria saber para se virar em Butler. A primeira das lições: nem só de árvores vive um lenhador. Ele havia lhe ensinado a caçar e a pescar, a limpar uma carcaça, a tirar as espinhas de um peixe e a encontrar seu caminho pelos bosques. A remendar velas e tarrafas, tapar vazamentos e principalmente todos os nomes de madeiras e para quais serviços elas cairiam melhor.
O bordo era fácil de entalhar, aceitava bem os detalhes que os artesãos aplicavam em sua superfície. O freixo resistente era bom para cabos de martelo. O marupá com sua leveza era excelente para fazer móveis, principalmente para que as donas de casa pudessem movê-los com mais facilidade na hora da limpeza.
E Daich aprendeu, principalmente a gostar de tudo aquilo. Não de todas as partes, é claro; mas havia certas coisas que ainda atraiam o olhar dele. Naquele momento, desfrutava da calmaria e contemplação que a pesca exigia, dos murmúrios do vento através das árvores e da correnteza afagando a canoa. Todavia, enquanto aguardava os puxões em sua linha, Daich também lutava para manter os pensamentos quietos com uma expressão de seriedade, mas não conseguiu evitar que sua mágoa subisse pelo peito e arremessasse as palavras através da boca.
— Eles estavam falando mal do vovô.
O garoto pensou que a repreensão viria. Era óbvio que precisariam do silêncio se quisessem que os peixes nadassem até seus anzóis. Porém, Dan respondeu com um tom gentil tão inesperado que Daich o estudou num surto de curiosidade.
— Eu escutei — o homem confessou. — Ouvi tudo que eles disseram. Mas, sabe de uma coisa? Seu avô nunca foi a pessoa mais fácil de se lidar.
Daich pensou ter visto um traço de tristeza na expressão do pai, algo que era compreensível depois que tinham perdido Tom.
Eram suas palavras que não faziam sentido.
— O que isso quer dizer? — o garoto teve de perguntar.
O lenhador viu a descrença do filho e liberou um suspiro de exasperação.
— Não se ofenda, Daich. Não estou dizendo que ele não era uma boa pessoa, mas tinha a tendência de encarar a vida de uma maneira tão despretensiosa que, por muitas vezes, negligenciava suas responsabilidades.
Assim que falou aquilo, deu um puxão em sua linha afim de averiguar a isca. Quando notou que ainda estava intacta, jogou-a de volta na água.
— O que está dizendo? — Daich indagou. — Ele trabalhou até o fim da vida e só parou quando não pôde mais.
Inesperadamente, o homem sorriu com o que parecia ser escárnio.
— Acha isso engraçado? — o jovem disparou. — Uma multidão de pessoas fazendo pouco do seu pai e você só ri como se fosse alguma piada?
A raiva de Daich derramou-se, fazendo seu caminho através da superfície do rio e espantando qualquer peixe abaixo dela.
— Como pode desonrar a memória dele assim? — acrescentou, quando percebeu que Dan não responderia. — Ele sempre esteve lá, ajudando, nos fazendo rir e contando as melhores histórias.
Dan permanceu atento à pesca por mais alguns segundos. Quando se virou para o filho, sua voz rouca era baixa, mas tão pesada quanto o impacto do machado ao acertar uma árvore.
— Eu já fui um grande apreciador dessas histórias, sabia? Até escrevi um milhão delas num caderno de capa escura — ele contou. — Porém, enquanto eu dizia no papel que minha mãe era uma deusa imortal, na realidade ela havia morrido depois que a febre da tarde a abateu. Narrava todas as minhas regalias como herdeiro de fortuna, das garotas bonitas até as vestes caras, enquanto na vida real tive que começar a trabalhar bem cedo para ajudar a manter minha casa. Cortava árvores como um homem adulto e brandia o machado até as bolhas das minhas mãos estourarem.
A lâmina de sua voz se tornava mais cortante à cada palavra e, quando prosseguiu, estava afiada o bastante para competir com uma espada.
— Enquanto isso, seu avô estava por aí, contando suas preciosas histórias e bebendo junto com cantores — ele se deteve naquele momento, reconsiderando. — Não estou dizendo que ele também não trabalhava, nós dois sempre compartilhávamos as juntas doloridas no fim do dia. Porém, nunca vou esquecer da ocasião em que não havia nada para comer, nem um farelo de pão e ele me disse que reclamações e cara feia não encheriam nossas barrigas. Que rir um pouco espantaria a fome. No dia seguinte, eu entraria na Mata dos Lenhadores pela primeira vez e descobriria que derrubar árvores encheria a despensa de novo. Que carregar tábuas faria meus bolsos tilintarem com as moedas. Sempre serei grato pelo seu avô, sei que tudo teria sido ainda mais difícil sem aquele velhinho, mas as risadas e histórias dele fizeram muito pouco pra encher minha barriga.
Por mais rígido que Dan aparentasse estar agora, tudo que o filho via nele era dor. A ruína de um menino sem infância que fantasiava com a leveza das brincadeiras, enquanto lutava com o peso do ferro para sobreviver. Mágoas soterradas há tanto tempo que Daich pôde perceber o alívio do pai em trazê-las para fora. De repente, entendeu toda aquela conversa do avô sobre as milhões de maneiras que Butler encontrou para matar seus sonhadores e, mergulhado no desconforto do momento, notou estar diante de uma das piores delas.
— Me desculpe, pai. Eu não sabia.
Dan balançou a cabeça.
— Não se preocupe. Sei que aprender a manter os pés no chão não é a mais empolgante das lições, mas assim que você a entende, as outras ficam mais fáceis. Sugiro que faça o possível para comprendê-la — ele explicou, a voz baixa como um segredo. — Agora, é melhor ficar quietos se quisermos levar algum peixe para casa.
Daich deixou que as palavras assentassem em sua mente, antes de lançar um demorado olhar para o alto. Ele entendia as coisas que o pai havia dito e sabia quanto terror podia existir em Butler, mas ainda nutria a esperança de que Lua aparecesse novamente para lembrá-lo de que a mágica ainda estava lá. Que algo maior esperava por ele além das fronteiras daquele mundo deprimente.
Deveria tentar fazer diferente, parar de encaixar seus pés nas pegadas deixadas por outros e descobrir sua própria trilha, um caminho que ninguém ainda ousara percorrer. Talvez sua história pudesse até criar algo novo, um chamado para todos que se deixaram abater por aquela terra cruel.
Porém, para seu total desamparo, o céu noturno estava apagado. Tinha uma leve suspeita de que a noite anterior não passara de algum delírio febril. Talvez pudesse ter se contentado com as histórias do avô sobre os astros que governavam a noite ou com as duras lições do pai, mas Daich sabia que elas não bastariam.
Depois de vislumbrar o brilho de Lua, as velas que o rodeavam à noite nunca mais lhe seriam suficientes para afugentar a escuridão. A deusa era seu farol agora e era impossível desviar os olhos.
Ele permaneceu ao lado do pai. Aborrecido e silencioso, sem uma beliscada sequer na isca. A ideia de voltar para casa com as mãos vazias já começava a espetar o fundo da sua mente.
Então, como se respondendo seu chamado, ela apareceu.
As nuvens desacortinaram-se e Lua o cumprimentou, seu reflexo tremeluzindo na água, perto o suficiente para tocar. Daich encarou o pai e o ângulo pronunciado que o nariz quebrado fazia em seu perfil. Se ele tinha visto a deusa, não demonstrou e se curvou ainda mais esperando a linha ser puxada.
Eufórico, o garoto mal pôde se conter no lugar e fez balançar a canoa de leve.
— Fique quieto — o pai ralhou. — Vai acabar espantando os peixes.
Assim Daich permaneceu, desejoso. Os dedos envolvendo a vara de pescar, quando na verdade queriam acariar o rosto prateado de sua amada.
* Se você gostou do capítulo, deixe seu voto e comentários. O que esse amor (quase) proibido poderá proporcionar ao nosso protagonista, hein?
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