1. Garoto encontra lua
Ao sentar em sua surrada poltrona, vovô Tom arrancou o livro das mãos do neto que apertava os olhos à luz da vela, lutando com as sombras para discernir as palavras naquelas páginas amareladas.
- Se continuar assim vai acabar precisando de um desses mais cedo do que pensa! - falou à Daich, ajustando os óculos redondos ao rosto.
O velho era um homem enrugado, portador das típicas mãos calejadas e dos cabelos tão brancos como dentes de leão à espera do sopro, espetados e ansiosos para realizar pedidos. Sua coluna era torta já que, em certo ponto da vida, ele começou a crescer para baixo ao invés de para cima sob o peso de um milhão de tábuas e toras de madeira que repousavam intermitentemente sobre as costas. Quem olhasse para aquele grupo de trabalhadores voltando para casa depois que suas cotas de árvores foram alcançadas, veria uma fileira triste de homens acariciando as juntas doloridas, encurvados como pontos de interrogação.
O menino se empertigou ao sentir a capa esfarrapada deslizar por seus dedos e ergueu os olhos para onde o avô afundava no couro da poltrona.
- Ei, eu estava lendo! - Daich protestou.
Sua mão logo subiu na tentativa de recuperar o livro, mas não pôde romper a distância que um dos braços do velho colocou entre eles, os movimentos furiosos do menino contrastando com a sugestão de sorriso que brincava nos lábios de Tom.
- Vovô!
Tom se inclinou até a altura do rosto de Daich que já se contorcia em indignação.
- Está vendo isso? - perguntou ao neto, apontando a testa sulcada de rugas com um dedo nodoso. - E isso? - prosseguiu, mostrando os pés de galinha ao redor dos olhos e a flacidez abaixo da garganta.
- Ahã. Velhice. E daí? - Daich rebateu.
- Seu avô está tentando lhe ensinar uma lição aqui, ora. Escute com atenção.
O garoto estava rígido, se esforçando para manter uma expressão indiferente, mas o suspiro frustrado e as olhadelas que variavam entre o idoso e o livro já provavam sua rendição.
- Que lição? - o neto questionou.
O velho se aproximou ainda mais, os óculos repousando quase no limite do nariz.
- Você não quer acabar como um homem manco e meio cego que não viu nada além das colinas feiosas que cercam nossa Butler, quer? - Tom perguntou. - Saia de casa. Procure coisas novas. Veleje pelo Mar Safira, viaje o mundo e prove comidas estrangeiras. Até os bichos saem da toca uma vez ou outra e você aqui, encolhido em cantos escuros.
- Não vai dar, vovô. Já é de noite. Eu não vou sair lá fora para...
O velho riu.
- Não estou dizendo para ir agora. Só acho que tem passado tempo demais com o nariz enfiado nos livros. Corra lá fora pra variar um pouco. - ele recomendou. - Pare para contar estrelas e soprar beijos para a lua.
- Mas, vovô... como que vou soprar beijos pra alguém que nem está mais lá - disse ele, arremessando um breve olhar pra o teto acima.
- Bem... - foi a vez do avô suspirar. - Frágil como é, não me surpreende que tenha sido movida de seu lugar tão facilmente, mas isso é coisa dos deuses, não cabe a nós julgar. Acho que as estrelas devem sentir falta de sua rainha e é uma pena que você nunca a tenha visto.
- Foi o Grande Outro que deu um peteleco nela, não foi? - o menino questionou e, juntando polegar e indicador, reproduziu o mesmo movimento que o deus teria feito com seus dedos.
- Foi - balançou a cabeça. - Os dois não se dão muito bem. Dizem que no passado, ele a arremessou tão longe que as terras se partiram e o mar jorrou para preencher os espaços entre elas. E agora aconteceu de novo. O Pai Terra nunca soube lidar muito bem com esses sustos. É um senhor meio rabugento e adoentado, vive se mexendo embaixo de nós. Você já sentiu?
- Às vezes. Mas, vovô... como você quer que eu embarque em um navio? Eu não tenho coragem de sair se o Pai Terra anda tão bravo. O papai é lenhador e não temos barco nenhum, só uma canoa velhinha. Nossa casa fica muito longe da costa e não sei se mamãe...
Bastou um estalo da língua de Tom para cortar a frase do menino pela metade.
- Tsc, tsc!. Pode parar com isso
- o velho lenhador pediu. - Nossa família sempre teve esse costume horrível e não vou deixar que isso vá adiante.
- Que costume? - Daich quis saber, erguendo as sobrancelhas.
- O costume de desistir dos próprios sonhos. Uma doença altamente contagiosa, devo dizer. Olha só aquele homem! - Tom disse e gesticulou com a cabeça em direção à cozinha.
Ali, o pai de Daich capturava os últimos nacos de carne numa coxa de galinha com mordidas ruidosas enquanto sua mãe, Jeyne, terminava de esfregar as panelas sujas, totalmente alheios à conversa que se desenrolava na sala.
- Sei que não parece agora, mas Dan foi o melhor contador de histórias que eu já vi - Tom confidenciou. - Ele as escrevia em folhas soltas por aí e as recitava como nenhum poeta seria capaz de fazer, mas conforme cresceu e lhe ofereceram o machado, só a madeira o interessava. Foi ali que percebi que os bosques eram muito bons na arte de roubar meninos.
Daich virou-se para encarar o pai por um instante. Dan sempre tinha sido um homem endurecido, de constituição forte devido aos anos erguendo troncos de pau ferro, olhos estreitados sob as pesadas sobrancelhas e uma boca que já não sabia o que era sorrir. Sendo assim, imaginá-lo como um pequeno escritor que rabiscava seus próprios contos não era a mais simples das tarefas.
- É... - o mais velho prosseguiu.- Aposto que nem os sábios conseguem explicar como essa terra modesta, que sempre se mostrou tão talentosa para gerar seus sonhadores, consegue ser ainda mais habilidosa quando o assunto é matá-los, de um milhão de maneiras diferentes.
O menino voltou-se para o avô, as feições comprimidas pela impaciência. Toda aquela coisa de furto de garotos e sonhadores assassinados não caíram tão bem assim em seus ouvidos.
- Tudo bem, vovô. Mas pode me devolver o livro? - ele pediu, inclinando a cabeça. - Quero saber como a história do pássaro cinzento termina!
- Já chegou naquela parte que o dono dele prende uma corrente em seu pé? - Tom perguntou, molhando a ponta do indicador na língua para virar as páginas.
- Não! - Daich exclamou, sacudindo a cabeça.
O idoso se inclinou para frente, uma expressão travessa brotando em seu rosto.
- Então, já deve ter passado da parte em que os corvos tentam pegar a chave da gaiola e...
- Vovô! - o terror jorrou na voz do menino. - Não me conta o que acontece. Me dá o livro e deixa eu saber sozinho.
Tom semicerrou os olhos em suspeita, mas toda aquela súplica foi o suficiente para convencê-lo. Entregou logo o volume ao neto que o puxou de volta para si como um tesouro recuperado.
- Pode voltar a ler, mas quero que entenda uma coisa! - o avô disse, numa voz que não dava margem à negociação. - Livros podem nos ajudar a imaginar nossas aventuras e até servir de mapa para elas, mas fazem muito pouco quando o assunto é vivê-las, e digo isso por experiência própria. Um dia você baixa os seus olhos na página e quando os levanta outra vez, os cabelos já estão grisalhos e seu corpo tão rígido quanto uma rocha. Então, por favor, pare de ficar encontrando um mas em todas as coisas e vá viver! Está me entendendo?
Daich não tinha ouvido todas as palavras. Ao invés disso, discerniu apenas aventuras, mapa e vivê-las antes de se curvar sobre o livro numa imitação quase competente da postura torta do avô, passando o dedo sobre as frases e acomodando-as silenciosamente nos lábios.
- Daich! - o velho lenhador chamou para em seguida liberar um suspiro teatral. - Pelos deuses, ninguém te ensinou a ouvir os mais velhos?
Não houve nenhuma comoção diante do comentário. O sermão jamais funcionaria vindo da mesma boca que o aconselhara a ignorar quase qualquer coisa que não fosse uma boa história. No fim, era a única linguagem que ele realmente compreendia.
Assim que notou aquilo, Tom exprimiu um sorriso fraco.
- Tudo bem. Vou deixar que desvende o pássaro e todo o resto, mas vou logo avisando que o final é um pouco triste.
O idoso ainda manteve o olhar em Daich na esperança de obter alguma resposta, mas não tardou em se dar por vencido e deixou que as costas caíssem de volta no couro macio da poltrona.
Ao que parecia, livros também eram excelentes ladrões de meninos.
Daich cresceu.
Tornara-se um rapaz que poderia atrair os olhares das moças, mas que não se contentara nenhum pouco com todas aquelas mudanças. Sua voz engrossou, os braços esticaram-se ao ponto de conseguirem alcançar a parte alta das prateleiras e roupas favoritas encolheram para nunca mais servirem naquelas novas formas e contornos.
E não foi só seu corpo. Quase toda Butler pareceu acompanhá-lo naquela metamorfose repentina, exceto o céu que permanecia tão sombrio como sempre estivera.
Devido as intrigas divinas, os moradores começaram a preparar suas construções para o advento dos tremores da terra. Os pedreiros pararam de erigir suas torres de pedra e tetos ornamentados. Os mais pobres que podiam fortalecer as sustentações de suas casas, o faziam. Quem não podia, apenas rezava e torcia para que tudo ficasse em pé. As estradas começaram a ser tomadas por vegetação e destroços, só para lembrar aos viajantes que, por mais corajosos que fossem, o velho Pai Terra não faria distinção entre eles, a mercadoria ou os cavalos. Engoliria todos com a mesma boca faminta.
Aos doze anos, antes mesmo de aprender a assobiar, Daich já suava com as primeiras toras de marupá, uma madeira branca e leve que era carregada pelos mais novos nos meses iniciais como aprendiz de lenhador. O menino pálido de cantos escuros foi aquecido pelo sol até suas cores mudarem para um bronzeado cor de cobre. Os músculos foram enrijecendo e as mãos, que mal conheciam os calos, tornaram-se duras e ásperas como couro curtido.
Vovô Tom, que sempre havia sido uma fonte inesgotável de histórias, foi ficando cada vez mais quieto. Andava meio distante desde que um tronco de carvalho esmagou seu pé. A cegueira que veio logo depois só colaborou para que as lendas e poemas fizessem o caminho de volta em sua garganta, engolidas para o lugar secreto onde ele as mantinha. Temia que talvez já estivesse entrando naqueles anos, onde a cabeça dos velhos começava a ficar confusa e embaralhada.
- Não se preocupem - Tom pedia, numa voz tão quebradiça quanto folhas mortas. - Os males da idade são como amigos antigos.
No entanto, ninguém pôde mais ignorar o quão frágil estava se tornando e todos passaram a cercar a poltrona onde ele se empoleirava como mariposas rodopiando a chama de uma lamparina.
Lá estavam os olhos e mãos preocupadas de Jeyne, depositando colheradas cuidadosas de sopa em seus lábios e mantendo um guardanapo à postos afim de apanhar o caldo que lhe escorresse pelo queixo. Lá estavam os braços de Dan, para ajudá-lo a se trocar e guiá-lo até a latrina. Lá estava Daich, posicionado em um banquinho ao lado dele e atento para qualquer reação que esboçasse.
Todos tentaram se convencer de que podiam se acostumar com aquilo, que era só um esforço a mais a se fazer na rotina. Porém, meses antes de Daich passar pela sua iniciação e aplicar uma machadada simbólica em um louro vermelho, o avô faleceu.
Havia várias histórias grandiosas sobre heróis mortos, algumas que o próprio Tom já tinha contado. Um garoto que caiu no mar depois que a cera de suas asas derreteu, uma guerreira assassinada pelo próprio exército e do homem devoto que se sacrificou para salvar pecadores.
Por isso foi tão amargo na língua de todos dizer que aquele senhor gentil deu seu último suspiro na cama onde costumava sonhar, coberto por um lençol que fedia à urina. Os cabelos brancos e desarrumados se destacando na penumbra como um dente de leão que ninguém, nem mesmo o tempo, se atreveu a soprar.
Pior ainda, que partiu como a figura que ele mais abominava. Um velho manco e cego que nunca conheceu o mundo apropriadamente.
Daich já tinha começado a se acostumar com o peso que curvava seus ombros e a eterna visão das botinas sobre os descampados ao redor dos bosques, para onde se carregavam as pranchas de madeira.
O interior da Mata dos Lenhadores cheirava a terra úmida. Aquele era um lugar de altas sentinelas, coroadas por folhagens cinza esverdeadas, de poderosos carvalhos, de árvores de pau-ferro tão velhas quanto a própria Butler e uma sessão de nogueiras e cerejeiras, tombadas apenas quando os ricos apareciam com suas bolsas recheadas de moedas. Ali, espessos troncos se elevavam enquanto galhos teciam um teto verde e raízes brigavam sob o solo. Aquele era um lugar de barulho, onde machados trabalhavam e homens seguravam firme nas extremidades de serras, levando-as de lá para cá.
Daich até tentava olhar para o horizonte como o avô pediu, mas tudo que encontrava era um sol escaldante que feria seus olhos e deixava fantasmas coloridos em sua visão. À noite, só havia um céu escuro e vazio. Então ele dormia, perdido em seu luto e cansado demais até para sonhar.
Porém, em certa madrugada, a consciência o puxou de volta sem nenhum motivo aparente além
de roubar suas preciosas horas de sono. Molhado de suor, ele escapou para o quintal afim de tomar um pouco de ar. De onde estava, podia ver a vaca magricela do senhor Devan mastigando a grama ressecada e a forma indistinta de alguém adormecido debaixo de um agrupamento de pinheiros além da cerca. Talvez fosse um pedinte ou criança faminta que não tinha encontrado lugar melhor para passar a noite.
Não era o cenário ideal para aquele encontro, mas assim que ergueu a cabeça, Daich a viu.
Era redonda. Era brilhante. Era distante.
Mas também era linda.
Majestosa em seu trono feito de noite, com os súditos cintilantes a se curvar perante ela. Tão preciosa quanto as piscadelas que Tom costumava liberar em sua direção.
- Qual o seu nome? - Daich perguntou, baixinho.
A resposta veio com a brisa que sussurrou em seus ouvidos numa língua que ele não conhecia.
A lua da qual o avô tanto falava tinha voltado a brilhar. E Daich estava perdidamente apaixonado.
* Olá.
Não sei como você chegou aqui, mas de qualquer maneira, SEJA BEM VINDO.
Diz aí suas primeiras impressões da história? O que achou do Daich?
Tenho que dizer que eu adorei escrever esse personagem.
Respira fundo que a história ainda não acabou. Mas antes de prosseguir, não esquece de deixar seu voto.
#EscritoresAgradecem
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