The paper boy
Boa Leitura Sweets ♥
Votem e comentem ♥
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O espírito dos romancistas é habitado, ou possuído, por seus personagens, assim como o espírito de uma camponesa supersticiosa o é por Jesus-Maria-José, ou de um louco, pelo diabo.
— Nancy Huston
Dentro de casa, a calma sucedera à tempestade. Após ter aceitado voltar para a sala, o garoto foi ao banheiro enquanto eu preparava um chá e dava uma geral no meu armário de remédios.
MALIBU COLONY
NOVE HORAS DA MANHÃ
Ele se juntou a mim na mesa da cozinha. Havia tomado banho, vestido um roupão e estancado a hemorragia, pressionando os cortes com a toalha.
— Tenho um kit de primeiros socorros — eu disse —, mas não tem muita coisa.
Ele acabou encontrando água oxigenada numa bolsa e limpou o ferimento com cuidado.
— Por que você fez isso?
— Porque você não queria me escutar, caramba!
Eu o observei abrir o corte para verificar a profundidade.
— Vou te levar ao hospital. Você precisa levar pontos.
— Eu mesmo faço isso, sou enfermeiro, não se esqueça. Só preciso de fio cirúrgico e de uma agulha esterilizada.
— Puxa! Esqueci de incluir esses itens na minha lista da última vez que fiz compras.
— Você também não tem ataduras adesivas?
— Preste atenção, você está numa casa de praia, não num pronto-socorro.
— Ou então linha de seda ou de crina de cavalo? Isso poderia resolver. Não, você tem coisa melhor! Tenho certeza que vi um produto milagroso lá no...
Ele pulou do banquinho no meio da frase e, como se estivesse em casa, foi vasculhar as gavetas da minha escrivaninha.
— Pronto, achei! — exclamou, voltando a se sentar triunfante com um tubo de Super Bonder na mão sem ferimentos.
Tirou a tampa do tubinho – que trazia a inscrição: “Especial para cerâmica e porcelana” – e aplicou um risco de cola no ferimento.
— Espere, você tem certeza do que está fazendo? Não estamos num filme!
— Não, mas eu sou um herói de romance — ele respondeu com malícia. — Não se preocupe, foi para isso que inventaram essa cola.
Ele aproximou as beiradas do corte e as manteve unidas por alguns segundos, para a cola fazer efeito.
— Pronto! — exclamou com orgulho, exibindo a mão artesanalmente suturada.
Ele mastigou a torrada na qual eu havia passado manteiga e tomou um gole de chá. Por detrás da sua xícara, eu via seus grandes olhos tentando ler meus pensamentos.
— Você está sendo muito mais gentil, mas continua não acreditando em mim, não é? — adivinhou, limpando a boca na manga do roupão.
— Uma tatuagem não é verdadeiramente uma prova — observei de maneira prudente.
— A mutilação é, não?
— Uma prova de que você é violento e impulsivo, isso sim!
— Então me faça algumas perguntas!
Eu me esqueceu balançando a cabeça:
— Sou escritor, não policial nem jornalista.
— Bela desculpa, não?
Joguei na pia o que havia em minha xícara. Por que é que eu empurrava goela abaixo aquele chá de detestava aquilo?
— Escute, proponho um trato...
Deixei minha frase suspensa, refletindo sobre a maneira como apresentaria as coisas.
— E qual seria?
— Vou fazer uma série de perguntas sobre a vida de Tommo, mas se vacilar, uma única vez que seja, você vai embora daqui sem criar caso.
— Combinado.
— Estamos entendidos. No primeiro erro, você some desta casa, se não ligo para a polícia na mesma hora. E dessa vez pode se estraçalhar todinho com a faca de açougueiro que eu vou te deixar mijando sangue no terraço!
— Você é sempre fino assim ou está fazendo um esforço?
— Estamos entendidos?
— Ok, mande as perguntas.
— Nome completo, data e local de nascimento?
— Tommo Donelly, nascido em 11 de agosto de 1984, em Milwaukee perto do lado Michigan.
— Nome da mãe?
— Valéria Stanwik.
— Profissão do pai?
— Trabalhava como operário na Miller, a segunda maior cervejaria do país.
Ele respondia na lata, sem nenhuma hesitação.
— Melhor amigo?
— Para meu grande pesar, não tenho nenhum amigo de verdade, apenas colegas.
— Primeira relação sexual?
Ele levou um tempo para refletir, me lançando um olhar triste, decerto para me fazer compreender que seu mal-estar vinha unicamente da natureza da pergunta.
— Aos dezesseis anos, na França, durante uma viagem de estudo do idioma a Côte d'Azur. O nome dele era Théo.
À medida que ele ia respondendo, eu ia sendo tomado pela preocupação e, ao ver seu sorriso satisfeito, compreendo que ele tinha consciência de sua vantagem. De qualquer forma, uma coisa era certa: ele sabia meus romances de cor.
— Bebida predileta?
— Coca-Cola. A autêntica: nem light, nem zero.
— Filme favorito?
— Brilho eterno de uma mente sem lembranças. Um filme perturbador sobre a dor de amar. Poético e melancólico. Já assistiu?
Ele desfolhou o corpo longilíneo e foi se instalar no sofá. Mais uma vez fiquei impressionado com a semelhança com Tommo: o mesmo castanho meio alourado mas escuro como chocolate, a mesma beleza natural, sem afetação, as mesma entonações esganiçadas, o mesmo timbre de voz, que eu me lembrava de haver escritos em meus livros como “provocante e sarcástico, alternadamente seguro e juvenil”.
— Qualidade que procura num homem?
— Por acaso é o questionário de Proust?
— Parecido.
— Na verdade, gosto de homem que seja homem. Não gosto muito daqueles caras que querem a todo custo aflorar seu lado gay, sabe?
Balancei a cabeça em dúvida. Estava me preparando para continuar quando ele tomou a palavra:
— E você, que qualidade aprecia em uma pessoa?
— A imaginação, eu acho. O humor é suprassumo da inteligência, você não acha?
Ele apontou para o porta-retratos digital no qual desfilavam fotografias de Aurore.
— Mas a sua pianista não parece muito engraçada.
— Vamos voltar à vaca-fria — sugeri, juntando-me a ele no sofá.
— Você fica excitado essas fazendo essas perguntas, não é? Está tomando gosto pelo poderzinho! — divertiu-se.
Mas eu me recusei a me deixar distrair e continuei o interrogatório:
— Se pudesse mudar alguma coisa na aparência física?
— Gostaria de não ter muita bunda e essas cochas afeminadas.
Eu estava de queixo caído. Estava tudo certo. Ou aquele garoto era louco e se identificara com o personagem de Tommo por um mimetismo espantoso, ou ele realmente era Tommo, e então era eu quem enlouquecera.
— E então? — ela zombou.
— Suas respostas provam apenas que você estudou meus romances com afinco. — eu disse, tentando na medida do possível disfarçar minha surpresa.
— Nesse caso, faça outras.
Era justamente o que eu pretendia fazer. Para provar, joguei meu livro na lata de lixo cromada da cozinha, abri o laptop, leve como o ar, e digitei a senha para acessar meus arquivos. Para falar a verdade, eu tinha muito mais informações sobre os meus personagens do que as que usava efetivamente nos romances. Para entrar em completa sintonia com meus “heróis”, eu havia adquirido o hábito de escrever, para cada um deles, uma detalhada biografia de cerca de vinte páginas. Nelas, compilava o máximo de dados possível, desde a data de nascimento até a música favorita, passando pelo nome da professora do maternal. Três quartos dessas indicações não subsistiam no resultado final do livro, mas o exercício fazia parte do trabalho invisível que gerava a misteriosa alquimia da escrita. Com a experiência, eu terminara por me convencer de que aquela prática dava certa credibilidade a meus personagens, ou pelo menos um pouco de humanidade, o que talvez explicasse por que os leitores se identificavam com eles.
— Você faz mesmo questão de continuar? — perguntei, abrindo o arquivo dedicado a Tommo.
O garoto tirou de uma das gavetas da mesinha de centro um pequeno isqueiro prateado e um velho maço aberto de Dunhill – cuja existência eu próprio ignorava –, possivelmente esquecido por uma das mulheres que tivera antes de Aurore. Com certo estilo, acendeu o cigarro.
— Não desejo outra coisa.
Dei uma olhada na tela e pincei uma referência ao acaso.
— Banda de rock preferida?
— Hum... Nirvana — ele começou, antes de voltar atrás — Não, Red Hot!
— Nada muito original.
— Mas é a resposta certa, não é?
Era. Um golpe de sorte, provavelmente. Hoje em dia todo mundo gosta de Red Hot Chili Peppers.
— Prato preferido?
— Se um colega de trabalho me fizesse essa pergunta, eu responderia salada caesar, para não não passar por comilão, mas meu prato favorito é uma porção bem gordurosa de fish & chips!
Dessa vez não podia ser coincidência. Senti gotas de suor brotando em minha testa. Ninguém, nem mesmo Liam, jamais lerá as biografias “secretas” de meus personagens, que só eram armazenadas no meu computador e com acesso muito restrito. Recusando-me a admitir o que era evidente, emendei outra pergunta.
— Posição sexual preferida?
— Vai se foder!
Ele saiu do sofá e apagou o cigarro, passando-o na água da torneira.
A não resposta me deu nova confiança.
— Quantos parceiros já teve? E dessa vez responda! Você não tinha direito a um coringa e mesmo assim acaba de usá-lo.
Ele me lançou um olhar que era tudo, menos benevolente.
— No fundo, você igual a todos os outros. Só pensa naquilo...
— Nunca afirmei ser diferente. Então, quantos?
— Você já sabe mesmo: uns dez...
— Quantos, exatamente?
— Não vou ficar calculando na sua frente!
— Levaria muito tempo?
— O que você está querendo dizer? Que sou um vagabundo?
— Eu não disse isso.
— Não disse, mas que pensou, pensou.
Insensível a seu pudor, continuei a lhe infligir o que cada vez mais parecia um suplício.
— E então, quantos?
— Dezesseis, eu acho.
— E entre esses “dezesseis, eu acho”, quantos você amou?
Ele suspirou.
— Dois. O primeiro e o último: Théo e Jack.
— Um virgem e um devasso. Você gosta dos extremos.
Ele me olhou com desprezo.
— Uau, que classe! Você é mesmo um gentleman.
Por trás de minhas provocações, não me restava senão admitir que ele acertava sempre.
TRIIM!
Alguém tinha acabado de tocar a campainha, mas eu não tinha a menor intenção de abrir a porta.
— Suas perguntas idiotas acabaram? — ele perguntou em tom de desafio.
Tentei uma armadilha.
— Livro de cabeceira?
Constrangido, ele encolheu os ombros.
— Não sei. Não leio muito, não tenho muito tempo.
— A boa e velha desculpa!
— Se você me acha muito burro, pode assumir a culpa! Gostaria de lembrar que saí direto da sua imaginação. Foi você quem me criou!
TRIIM! TRIIM!
Na porta, a visita perdia a paciência com a campainha, mas se cansaria muito antes de mim.
Desnorteado pela situação e pasmo diante das respostas absolutamente corretas, me deixei levar sem me dar conta de que meu interrogatório descamba para assédio.
— Maior arrependimento?
— Ainda não ter tido filho.
— Momento mais feliz da vida?
— A última vez que acordei nos braços de Jack.
— Última vez que chorou?
— Esqueci.
— Insisto.
— Não sei, não choro por pouca coisa.
— A última vez que foi importante.
— Há seis meses, quando tive que sacrificar meu cachorro. O nome dele era Argos. Não está escrito na sua fichinha?
TRIIM! TRIIM! TRIIM!
Eu devia ter me contentado com aquelas respostas. Tinha mais provas que o necessário, mas aquilo tudo havia me deixado completamente desorientado. Aquele joguinho me lançara em outra dimensão, em outra realidade, que minha mente se recusava a admitir. Transtornado, voltei minha cólera contra “Tommo”.
— Seu maior medo?
— Do futuro.
— Você se lembra do pior dia da sua vida?
— Não me pergunte isso, por favor.
— É a última pergunta.
— Por favor...
Apertei-lhe o braço com firmeza:
— Responda!
— ME SOLTE, você está me machucando! — ele gritou, se debatendo.
— HARRY! — bradou uma voz atrás da porta.
Tommo havia se desvencilhado de mim. Seu rosto estava pálido e um fogo triste flamejada em seu olhar.
— HARRY! QUER ABRIR ESSA PORRA?! OU PREFERE QUE EU VOLTE COM UMA RETROESCAVADEIRA?
Liam, claro...
Tommo se refugiar no terraço. Minha maior vontade era ir consolá-lo pelo mal que acabará de lhe infligir, pois eu havia me dado conta de que ele não simulava sua raiva e sua tristeza, mas eu estava tão desestabilizado pelo que acabara de viver que encarava como um alívio a perspectiva de dividir a experiência com alguém.
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