O mal pelo mal
Voltei <3
Terminei a faculdade e agora encontrei o livro para continuar a adaptação...
Faz um tempo desde que escrevi, então vamos lá!
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Eu queria que você entendesse o que é a verdadeira coragem, em vez de pensar que coragem é um homem com um fuzil na mão. A verdadeira coragem é saber que você começa vencido, mas mesmo assim agir até o fim.
- Harper Lee
Bretanha
Finitère Sul
Sábado, 25 de setembro
O terraço ensolarado do restaurante dominava a baía de Audierne. Apesar do frio, a costa bretã era tão bela quanto a mexicana.
— Brrr, que frio! — tritou Tommo, subindo o zíper do agasalho.
Com sua cirurgia marcada para a segunda-feira seguinte, havíamos decidido espairecer nos proprorcionando um fim de semana de descanso longe de Paris. Sem pensar no futuro, eu gastara parte de nosso dinheiro no aluguel de um carro e de uma casinha perto de Plogoff, defronte à ilha de Serin.
Com cerimônia, o garçom pousou no centro da mesa a bandeja de frutos do mar que havíamos pedido.
— Você não vai comer nada? — ele se espantou.
Cético, eu olhava o sortimento de ostras, ouriços-do-mar, lagostins e vôngoles, sonhando com um hambúrguer com bacon.
Apesar de tudo, tentei destrinchar um lagostin.
— Parece criança — ele brincou.
Ele me passou uma ostra sobre a qual acabara de espremer uma fatia de limão.
— Prove, não existe nada melhor no mundo.
Observei aquela gosma com desconfiança.
— Pense naquela manda no México! — Ele insistiu.
Saber descrever os sabores do mundo real...
Engoli de olhos fechados a carne rija de molusco. Tinha um gosto picante, salino e iodado. Um perfurme de alga e avelã que se prolongava na boca.
Rindo, Tommo me dirigiu uma piscadela.
Atrás de nós, percebíamos o vaivém dos lagosteiros e dos botes multicoloridos que afundavam suas redes para apanhar conchas e crustáceos.
Não pensar no amanhã nem em quando ele não estiver mais aqui.
Viver o presente.
Uma caminhada pelas ruelas tortuosas do porto, depois ao longo da praia de Trescadec. Passeio de carro pela baía de Trépassés até a ponta de Raz, sempre com Tommo insistindo em tomar a direção. Gargalhadas ao relembrar o episódio do xerife que nos parara por excesso de velociodade na Califórnia. Compreensão de que compartilávamos muitas lembranças. Desejo espontâneo, mas prontamente interrompido, de falar do futuro.
E depois da chuva, claro, que nos surpreendeu no meio de nosso passeio pelos rochedos.
— Aqui é como na Escócia, a garota faz parte da paisagem — ele me disse, enquanto eu começava a arfar. — Ou você imagina visitar as Highlands e o Lonch Lommond num dia de sol?
***
Roma
Piazza Navona
Sete horas da noite
— Prove, a boca até dói de tão bom! — disse Niall, estendendo a Liam uma colherada de sua sobremesa: tartufo maison com chantili.
Com um olhar malicioso, Liam degustou o sorvete de chocolate. Tinha consistência bastante densa e um sabor próximo da trufa, que combinava às mil maravilhas com o recheio de cerveja.
Estavam numa mesa no terraço de um restaurante da Piazza Navona, local de passagem obrigatória para qualquer um que pusesse os pés na Cidade Eterna. Cercada de terraços e sorveterias, a famosa praça fazia a festa dos retratistas, mímicos e ambulantes.
Já anoitece, e uma garçonete veio acender velo no centro da mesa. A temperatura estava amena. Liam observava o amigo com ternura. Apesar da decepção de ter perdido o rastro livro de Harry, ambos haviam passado uma tarde prazerosa, descobrindo a cidade. Por várias vezes, ele quase lhe confessara o amor que calava havia tanto tempo. Mas o medo de perder a amizade com o Niall refreava seu ímpeto. Sentia-se vulnerável e temia ter o coração destroçado. Adoraria que ele o enxergasse por outro prisma. Adoraria lhe oferecer outra imagem de si mesmo. Desejava-lhe mostrar o homem que ele era capaz de ser quando sentia-se amado.
Ao lado deles, um casal de australianos jantava com a filinha de cinco anos, que começara a trocar risadinhas e piscadelas com Niall.
— A garotinha é mesmo um doce, não é?
— É, ela é uma coisinha.
— E educada!
— Você pensa em ter filhos? — ele perguntou, de maneira um pouco abrupta.
Niall imediatamente se pôs na defensiva:
— Por que a pergunta?
— Hum... porque você seria um ótimo pai.
— Como você sabe? — Niall replicou com agressividade.
— Dá pra sentir.
— Pare com essas tolices!
Liam se sentia ao mesmo tempo consternado e surpreso diante da violência da sua resposta.
— Por que você reagiu desse jeito?
— Conheço você e tenho certeza que isso faz parte do seu repertório para conquistar suas dondocas. Você acha que é o que elas querem ouvir.
— De maneira nenhuma! Você está sendo injusto comigo! O que foi que eu fiz para você me tratar com tanta rispidez? — ele se irritou, derrubando um copo.
— Você não me conhece, Liam! Não sabe de nada da minha vida particular.
— Então me conte caramba! Que segredo é esse que te pertuba tanto?
Niall o fitou pensativo e quis acreditar na sinceridade dele. Talvez tivesse se exaltado à toa.
Liam levantou o copo que derrubara e secou a toalha com o guardanapo. Ele se arrependia de ter gritado, mas, ao mesmo tempo, não aguentava mais aquels súbitas reviravoltas de humor de Niall quando estava com ele.
— Por que você ficou tão agressivo quando toquei nesse assunto? — ele perguntou, com uma voz mais calma.
A verdade saiu sozinha. Como uma abelha que escapou de uma redoma da qual fora prisioneiro por anos.
Congelado em sua posição, Liam estava surpreso. Não via nada além dos olhos de Niall, que brilhavam na noite como estrelas tristes.
Niall pegou sua passagem de avião e colocou-a sobre a mesa.
— Quer saber? Muito bem. Vou arriscar e confiar em você. Vou lhe contar meu segredo, mas exijo que depois disso você não acrescente nenhuma palavra que seja e não faça nenhum comentário. Vou contar o que ninguém sabe e, quando tiver terminado, vou me levantar daqui e pegar um taxi para o aeroporto. O último voo para Londres é às nove e meia da noite, e de lá pego outro às seis da manhã para Los Angeles.
— Tem certeza que...
— Sim. Conto e vou embora. E depois terá de esperar pelo menos uma semana antes de me ligar ou voltar a dormir na minha casa. É isso ou nada.
— Fechado. — ele assentiu. — Como você quiser.
Niall olhou em volta. No centro da praça, agarrados ao obelisco, as imensas estátuas da Fonte dos Quatro Rios lhe dirigiram olhares severos e ameaçadores.
— A primeira vez que ele fez isso — começou — foi na noite do meu aniversário. Eu tinha doze anos.
***
Bretanha
Plogoff, Ponta do Raz
— Não vai me dizer que sabe acender uma lareira? — divertiu-se Tommo.
— Claro que sei! — respondi irritado.
— Então vá em frente, bonitão. Ficarei aqui admirando você com meus olhos de garoto submisso.
— Se você acha que me pressiona desse jeito...
Para grande felicidade de Tommo, a tempestade desabava sobre o local, sacudindo as janelas e despejando uma chuva torrencial nas vidraças de nossa casa, na qual reinava um frio polar. Aparentemente, a expressão "charme rústico" que estava no anúncio era sinônimo de "sem calefação" e "isolamento com problema".
Acendi um fósforo e tentei atear fogo no monte de folhas secas que eu colocara sob as toras de lenha. O montinho rapidamente se inflamou... para morrer logo depois.
— Nada muito definitivo — julgou Tommo, tentando disfarçar o sorriso.
Envolvido em seu penhoar, com uma tolha nos cabelos, ele se dirigiu saltitando até a lareira.
— Me passe um pouco de jornal, por favor.
Procurando na gaveta de um armário tipicamente bretão, encontrei um velho L'Équipe, datado de 13 de julho de 1998, dia seguinte à vitória da França na Copa do Mundo. A manchete da primeira página estampava para PARA SEMPRE na diagonal e mostrava Zinedine Zidane abraçando Youri Djorkaeff.
Tommo desdobrou as páginas uma a uma e as amassou para formar uma bola fofa.
— É fundamental que o papel respire — explicou. — Foi meu pai quem me ensinou.
Em seguida, sem economizar, fez uma triagem nos gavetos, conservando apenas os pedaços mais secos, e os colocou sobre o papel amassado. Dispôs então as toras mais grossas para formar uma espécie de fogueira indígena.
— Agora pode acender — disse orgulhoso.
De fato, dois minutos mais tarde uma bela labareda creptava na lareira.
O ronco do vento fez as vidraças tremerem com tanta força que achei que se estilhaçariam. Em seguida, uma janela bateu e um apagão mergulhou na sala penumbra.
Fui dar uma olhada na caixa de fusíveis, esperando que a luz voltasse.
— Não é nada — eu disse, assumindo um ar tranquilo. — Sem dúvida um disjuntor ou um fusível...
— Pode ser — ele respondeu, zombando —, mas isso aí é o hidrômetro. A caixa de fusíveis fica na entrada...
Bom jogador, respondia à sua observação com um sorriso. Enquanto eu atravessava a sala, Tommo agarrou minha mão e...
— Espere!
Tirou a toalha dos cabelos e soltou o cinto do penhoar, que caiu no chão.
Então eu o tomei nos braços, enquanto nossas sombras deformadas se enlaçavam nas paredes.
***
Roma
Piazza Navona
19h20
Com a voz frágil, Niall contou a Liam o martírio de sua infância destruída. Falou daqueles anos de pesadelo longo dos quais seu padrasto vinha se juntar a ele na cama. Daqueles anos em que perdera tudo: o sorriso, os sonhos, a inocência, a alegria de viver. Daquelas noites em que, no momento de deixá-lo, a besta voraz finalmente saciada sempre repetia: "Não conte nada à sua mãe, hein? Não conte nada".
Como se a mãe dele soubesse!
Falou da culpa, da lei do silêncio e da vontade de se atirar debaixo de um ônibus todas as tardes em que voltava da escola. Depois, do aborto que uma das suas parceiras tivera aos 14 anos e que a deixou dilacerada, quase morta, um descuido dos dois que causou um sofrimento incurável no ventre vazio.
Falou principalmente de Harry, que o ajudara a se agarrar à vida, criando para ele, ao longo dos dias, o universo mágico da Trilogia dos anjos.
Por fim, tentou fazer com que ele compreendesse sua desconfiança em relação aos homens, sua descrença na vida e as crises de angústia que ainda hoje subtamente o desestabilizavam, mesmo quando se sentia melhor.
Niall parou de falar, porém não se levantou da cadeira.
Liam cumprira com a palavra e não abriria a boca. Um pergunta, contudo, impôs por si só.
— Mas quando isso terminou?
Niall hesitou em responder. Voltou a cabeça para constatar que a pequena australiana havia ido embora com os pais. Bebeu um gole d'água e vestiu o suéter que trazia nos ombros.
— Essa é a outra parte da verdade, Liam, mas não tenho certeza se isso me pertence.
— E a quem pertence, então?
— Ao Harry.
***
Bretanha
Plogoff, Ponta do Raz
O fogo começava a arrefecer, espalhando a luz vacilante pela sala. Nos braços um do outro, enroscados debaixo do mesmo cobertor, nos beijávamos com o ardor da idade dos primeiros amores.
Uma hora mais tarde, levantei-me para reavivar as brasas e colocar mais uma tora na lareira.
Estávamos mortos de fome, mas o armário e a geladeira estavam vazios. No armário do bar, consegui desencavar uma garrafa de sidra que curiosamente era made in Quebec. Tratava-se de sidra de gelo, vinho fabricado à base de maçãs colhidas em pleno inverno, quando ainda estão congelados. Tirei a rolha da garrafa dando uma olhada através das vidraças - o temporal não dava para enxergar a um palmo do nariz.
Envolta na colcha da cama, Tommo se juntou a mim na janela com duas canecas de pedra-sabão.
— Eu gostaria que você me contasse uma coisa — ele começou, me beijando o pescoço.
Recolheu minha jaqueta deixada no encosto de uma cadeira para pegar minha carteira.
— Posso?
Aquiesci com a cabeça. Ele abriu o forro semidescosturado atrás da divisória de cédulas e o revirou, para tirar dali o cartucho de metal.
— Quem você matou? — ele perguntou, mostrando-me o pequeno projétil.
***
Los Angeles
MacArthur Park
29 de Abril de 1992
Tenho dezessete anos. Estou na biblioteca do liceu, estudando para as provas, quando uma aluna entra gritando.
— Eles foram absolvidos!
Na sala, todo mundo compreende que ele se refere ao veredicto do caso Rodney King.
Um ano antes, esse jovem negro de vinte e seis anos foi detido pela polícia de Los Angeles por excesso de velocidade. Embriagado, se recusou a cooperar com os oficiais, que tentaram dominá-lo com cassetetes elétricos. Diante de sua resistência, os policiais o espancaram violentamente, sem desconfiar que a sendo filmada de uma sacada por um cinegrafista amador, que no dia seguinte enviou a fita para a televisão. Rapidamente, as imagens foram reproduzidas e exibidas diversas vezes nos canais de tevê mundo afora, causando raiva, vergonha e indignação.
— Foram absolvidos!
Imediatamente, as conversas se interrompem e palavrões chovem de todas as direções. Sinto que a indignação e o ódio começam a se alastrar. Os negros são maioria no bairro. Imediatamente compreendo que as coisas vão descambar e que é melhor eu ir para casa. Na rua, a notícia do veredcto se propaga com um vírus. O ar está carregada de agitação e indignação. Naturalmente, não é a primeira cagada policial nem o primeiro papelão do judiciário, mas dessa vez existem imagens, o que muda tudo. O planeta inteiro viu quatro policiais tresloucados moerem o infeli de pancada - mais de ciquenta golpes de cassetete e uma dezena de pontapés desferidos contra um homem algemado. Essa absolvição incompreensível é a gota-d'água que fará o copo transbordar. Os anos Reagan e Bush causaram estragos terríveis entre os mais pobres. As pessoas estão cheias. Cheiam do desemorego e da miséria. Cheias do desemprego e da miséria. Cheia da devastação causada pelas drogas e de um sistema educacional que reproduz as desigualdades.
Ao chegar em casa, ligo a tevê enquanto preparo uma tigela de cereais. Motins irrompem em diferentes pontos da cidade, e vejo as primeiras do que virá a ser rotina dos próximos três dias: saques, incêndias e choques com a polícia. Os conjuntos habitacionais que ficam nas imediações do cruzamento da Florence com a Normandie estão tulmutuados. Indíviduos fogem levando caixas de papelão cheias de comida, que acabam de roubar nas lojas. Outros puxam carrinhos ou plataformas com rodinhas para transportar imóveis, sofás ou eletrodomésticos. As autoridades em vão pedem calma, e eu pressint que a coisa não vai parrar. E, para falar a verdade, isso me vem bem a calhar...
Junto todas as minhas economias, escondidas em um aparelho de rádio, e pego meu skate para voar até a casa de Marcus Blink.
Marcus é um pequeno delinquente do bairro, um dos "mansos", que não pertence a gangue nenhuma e se limita a vender uns comprimidos, passar um pouco de maconha e revender armas. Fizemos o primário juntos, e ele me trata bem porque duas ou três vezes ajudei a mãe dele a preencher os papéis da previdência social. O bairro está em ebulição. Todo mundo já percebeu que as vão tirar partido do caos para acertar as contas com outras quadrilhas e com a polícia. Por cem dólares, Marcus me passa uma Glock 22, das dezenas que ele carrega por toda a preferia nessa epoca decadente em que inúmeros tiras corruptos vendem suas armas de serviço depois de as declararem perdidas. Por mais vinte doláres, compro também um carregador de quinze cartuchos. Armado, volto para casa, sentindo no bolso o metal frio e pesado da arma.
***
Não durmo direito essa noite. Penso em Niall. Agora tenho apenas uma preocupação: que os maus-tratos que ele sofre parem definitivamente. A ficção pode muito, mas não tudo. As histórias que conto a ele permitem incursões num mundo imaginário, no qual, por poucas horas, ele escapa da tortura física e mental infligida por seu carrasco. Viver na ficção não é uma solução duradoura, tampouco cair nas drogas ou se embriagar para esquecer a miséria.
É incontrolável: cedo ou tarde, a vida real acaba sempre por prevalecer sobre o imaginário.
***
No dia seguinte, a violência recomeça ainda mais acirrada, em total impunidade. Os helicópteros dos canais de televisão sobrevoam a área constatemente, transmitindo ao vivo as imagens dessa cidade em estado de sítio que virou Los Angeles: saques, pancadaria, prédios em chamas, trocas de tiros entre as forças da ordem e os amontinados. Inúmeras reportagens revelam a desorganização e a apatia da polícia, incapaz de impedir os saques.
Sob pressão, em virtude do número de mortos, o prefeito faz uma declaração à imprensa decretando estado de emergência e manifestando a intenção de recorrer aos soldados da Guarda Nacional e instaurar o toque de recolher. Má ideia: nos conjuntos habitacionais, as pessoas pressentem que a festa está chegando ao fim, o que tem como consequência intensificar os saques.
Em nosso bairro, sobretudo os estabelecimentos dos asiáticos são pilhados. As tensões entre negros e coreanos estão no auge, e, nesse segundo dia de motins, a maioria das biroscas, quintadas e lojinhas de bebida pertencentes aos coreanos é destruída e saqueada sem que a polícia intervenha.
Daqui a pouco será meio-dia. Já faz uma hora que, equilibrando em meu skate, estou de tocaia em frente à mercearia do padrasto de Niall. Hoje de manhã, ignorando os riscos, ele abriu sua loja, sem dúvida supondo que os saques não o afetariam. Mas agora ele também se sente em perigo e pressinto que se prepara para abaixar sua cortina de ferro.
É a hora que escolho para sair do mato.
— Quer ajuda, sr. Alvarez?
Não desconfia de mim. Ele me conhece bem e minha cara inspira confiança.
— Ok, Harry. Me ajude a guardar oos painéis de madeira.
Pego os dois e entro atrás dele na loja.
é uma mercearia vagabunda, como dezenas no bairro. O tipo de loja que oferece essecialmente produtos de primeira necessidade e que está fadada a fechar as portas da noite para o dia, devorada pelo Walmart da esquina.
Cruz Alvarez é um latino de estatura mediana, atarracado, de rosto largo e quadrado. Um ar de canastrão, cara de cafetão ou de gerente de boate.
— Cansei de falar que um dia esses vagabundos... — começa ele, antes de se voltar e perceber a Glock 22 apontada em sua direção.
A mercearia está vazia, não há câmeras. Só preciso apertar o gatilho. Não quero lhe dizer nada, nem mesmo "Morra, filho da puta". Não estou aqui para fazer justiça, para aplicar a lei. Tampouco para ouvir suas explicações. Não há em meu gesto nenhum glória, nenhum heroísmo, nenhuma coragem. Só quero que o sofrimento de Niall chegue ao fim, e esse foi o único meio que me ocorreu. Meses atrás, sem dizer nada a ele, fiz um denúncia anônima num centro social de planejamento familiar, que não deu em nada. Enviei uma carta à policia, que foi ignorada. Não sei onde está o bem, não sei onde está o mal. Não acredito em Deus, também não acredito no destino. Acredito apenas que meu lugar é aqui, atrás dessa arma, e que é meu dever apertar o gatilho.
— Harry, o que é que te d...
Chego mais perto para atirar à queima-roupa. Não quero errar e quero usar uma única bala.
Disparo.
Sua cabeça explode, espirrando sangue em minha roupa.
Estou sozinho na loja. Estou sozinho no mundo. Não me aguento sobre minhas pernas. Meus braços tremem arriados junto ao corpo.
Fuja!
Recolho o cartucho e o guardo no bolso, bem como a Glock. Depois volto correndo para casa. Tomo uma ducha, queimo minhas roupas e, após me dar ao trabalho de limpá-la, livro-me da pistola, jogando-a num cesto de lixo. O cartucho, prefiro guardá-lo para me entregar no caso de algum inocente ser acusado em meu lugar, mas eu teria mesmo coragem de fazer isso?
Provavelmente, nunca vou saber.
***
Bretanha
Plogoff, Ponta do Raz
— Não contei a ninguém o que fiz aquela manhã. Simplemente convivi com isso.
— E o que aconteceu depois? — perguntou Tommo.
Estávamos deitados novamente no sofá. Aconchegado atrás de mim, ele passava a mão em meu peito enquanto eu agarrava seu quadril como se fosse uma jangada.
Falar me tirara um peso das costas. Eu sentia que ele me entendia sem me julgar, e era tudo que eu esperava.
— À noite, Bush pai fez um pronunciamento na tevê dizendo que a anarquia não seria tolerada. No dia seguinte, quatro mil homens da Guarda Nacional patrulhavam a cidade, logo seguidos por vários conotinentes de marines. A calma começou a voltar no quarto dia, e o prefeito suspendeu o toque de recolher.
— E o inquérito?
— Os motins resultaram em uns cinquenta mortos e milhares de feridos. Nas semanas seguintes, milhares de prisões foram feitas na cidade mais ou menos legítimas, mais ou menos arbitrárias, mas ninguém nunca foi formalmente acusado do assassinato de Cruz Alvarez.
Tommo passou a mão em minhas pálpebras e pousou um beijo em meu pescoço.
— Agora você precisa descansar.
***
Roma
Piazza Navona
— Até logo, Liam. Obrigado por ter me ouvido sem me interromper — disse Niall, se levantando.
Ainda em choque, Liam o imitou, mas o segurou suavemente pela mão:
— Espere... Como tem certeza que Harry fez isso se ele nunca falou nada?
— Sou da polícia, Liam. Dois anos atrás, fui autorizada a consultar alguns arquivos e pedi para ter acesso aos dossiê do assassinato do meu padrasto. Não é muita coisa: dois ou três interrogatórios com vizinhos, algumas fotografias da cena do crime e um levantamento de impressões digitais completamente furado. Todo mundo estava se lixando para quem tinha assassinado o pequeno comerciante de MacArthur Park. Só que, numa das fotografias, era possível ver claramente um skate encostado na parede, comuma estrela cadente estilizada pintada na plataforma.
— E esse skate...
— Fui eu que dei para o Tom — Niall disse, se virando.
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