Farrapos do Paraíso
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O inferno existe, e agora eu sei que seu horror reside no fato de ser feito apenas de farrapos do paraíso.
- Alec Covin
- Aqui está a sua ferramenta, pode devolver ao dono - anunciou Liam, estendendo ao Niall o pé de cabra que ele lhe emprestara.
- O dono é do estado da Califórnia - respondeu o jovem oficial da polícia, guardando a alavanca metálica no porta-malas do carro.
SANTA MONICA
SETE HORAS DA NOITE
- Obrigado por ter vindo me pegar.
- Onde está o seu carro?
- O Harry pegou emprestado.
- O Harry perdeu a carteira!
- Digamos que ele tenha se zangado comigo - admitiu Liam, de cabeça baixa.
- Você lhe contou a verdade? - ele perguntou preocupado.
- Contei, mas isso não o deixou entusiasmado a voltar ao trabalho.
- Eu não falei?
Ele fechou a porta do carro e, lado a lado, eles desceram a extensão da ponte levadiça que dava acesso à praia.
- Mas enfim - preocupou-se Liam -, você não acha isso maluco? Se destruir por uma história de amor?
Ele o fitou com um olhar triste.
- Pode até ser maluco, mas acontece todos os dias. Acho comovente e terrivelmente humano.
Liam deu de ombros e deixou Niall se adiantar um pouco.
Alto, com a pele fosca, cabelos mais escuros escondendo o louro que um dia pertenceu a ele, como a asa graúna e olhos claros como a água, Niall Horan parecia um príncipe.
Nascido na Irlanda, chegara aos Estados Unidos aos nove anos. Liam e Harry o conheciam desde criança. Suas famílias - ou o que delas restava - moravam no mesmo prédio caindo aos pedaços de MacArthur Park, o Spanish Harlem de Los Angeles, ponto de viciados em heroínas e de acertos de contas com rajadas de pistolas automáticas.
Os três haviam divido as mesmas aflições, o mesmo cenário de prédios insalubres, calçadas repletas de lixo e lojas com portas de ferro amassadas e pichadas.
- Que tal nos sentarmos um pouco? - ele sugeriu, desdobrando uma toalha.
Liam se juntou a ele na beira da areia branca. As marolas lambiam a praia projetando uma espuma prateada que mordiscava os pés descalços dos que passavam por ali.
Superlotada no verão, a praia estava muito mais calma naquele fim de tarde de outono. Intocado, o famoso píer de madeira de Santa Monica acolhia há mais de um século os moradores de Los Angeles, que, após um dia de estresse e a agitação da metrópole.
Niall arregaçou as mangas da camisa, tirou os sapatos e fechou os olhos, oferecendo o rosto ao vento e ao sol aconchegante de fim de outono. Liam o observava com uma dolorosa ternura.
Assim como ele, Niall não fora poupado pela vida. Tinha apenas quinze anos quando seu padrasto foi assassinado com uma bala na cabeça, vítima de um assalto à sua mercearia durante os funestos motins que incendiaram os bairros pobres da cidade em 1992. Depois da tragédia, ele brincara de esconde-esconde com o serviço social para não ser entregue a adoção, preferindo se instalar na casa de Blake Mamma, uma velha prostituta, sósia de Tina Turner, que desvirginara metade dos machos de MacArthur Park. Bem ou mal, ele continuou os seus estudos, trabalhando paralelamente: garçom no Pizza Hut, vendedor de bijuterias batatas, recepcionista em congressos irrelevantes. Seu maior feito foi triunfar, na primeira tentativa, na prova de admissão da escola de polícia, passando a fazer parte da polícia de Los Angeles tão logo completou vinte e dois anos e sendo promovido a uma velocidade estonteante: primeiro officer, depois dectitve, até alcançar há poucos dias a patente de sergeant.
- Você tem falado com o Harry pelo celular os últimos dias?
- Eu mando sempre duas mensagens por dia - respondeu Niall, abrindo os olhos -, mas o máximo que recebo são respostas curtas.
Ele olhou severamente para Liam.
- O que podemos fazer por ele agora?
- Primeiro, impedir que acabe consigo mesmo - ele respondeu, tirando dos bolsos tubos de soníferos e ansiolíticos que havia surrupiado.
- Você tem noção de que isso tudo que está acontecendo é em parte culpa sua?
- É culpa minha se a Aurore terminou com ele? - ele se defendeu.
- Você sabe muito bem a que estou me referindo.
- A crise financeira mundial é culpa minha? O fato de Madoff ter sumido com cinquenta bilhões de dólares? E me diga sinceramente: o que você achava da garota?
Niall sacudiu os ombros em gesto de impotência.
- Não faço ideia, mas tenho certeza de que ela não era pra ele.
Ao longe do píer, o parque de diversões funcionava a todo vapor. Os gritos das crianças se misturavam com o cheiro de algodão-doce e maçã do amor. Com a roda-gigante e montanha-russa, o parque fora construído diretamente na água, diante da pequena ilha de Santa Catalina, que era possível avistar através da fina névoa.
Liam suspirou.
- Receio que ninguém venha conhecer o fim da Trilogia dos Anjos.
- Pois eu conheço. - Niall respondeu tranquilamente.
- Você sabe o fim da história?
- O Harry me contou.
- Sério? Quando?
Seu olhar parecia nublado.
- Há muito tempo - ele respondeu vagamente.
Liam franziu o cenho. Certa decepção se misturou à surpresa. Ele acreditava saber tudo da vida de Niall. Viam-se quase que diariamente, ele era seu melhor amigo, sua única família de verdade e - embora Liam se recusasse a admitir - o único homem por quem nutria algum sentimento.
Eram unidos por um vínculo muito forte, enraizado na infância, um misto de pudor e respeito. Ainda que Liam nunca tivesse ousado exprimir seus sentimentos, Niall era o menino dos seus olhos, e Liam se preocupava com ele pelos riscos da sua profissão. Ele não sabia disso, mas às vezes Liam pegava o carro e passava a noite no estacionamento do prédio de Niall, apenas porque era reconfortante ficar perto dele. A verdade é que, mais que tudo no mundo bem que realidade esse verbo ocultava: medo de que Niall fosse atropelado por um trem? De quem fosse alvo de uma bala perdida ao prender um Junkie? Ou, que era mais provável, de se conformar em vê-lo com outra pessoa?
***
Niall colocou os óculos escuros e abriu mais um botão de sua blusa. Apesar do calor, Liam resistiu à vontade de arregaçar as mangas da camisa. Seus bíceps eram tatuados com sinais cabalístico, testemunhos permanentes de sua antiga filiação ao famoso MS-13, também conhecido como Mara Salvatrucha, uma gangue extremamente violenta que dava as cartas nas veias de MacArthur Park e da qual Liam fizera parte por não ter o que fazer aos doze anos de idade. Filho da mãe britânica e pai mexicano, Liam era considerado um "chicano" pelos membros do clã, criado por jovens imigrantes salvadorenhos que o haviam submetido à prova iniciativa de corton: um trote que, no caso das meninas, consistia num estrupo coletivo e, no caso dos meninos, num espancamento com duração de treze minutos. Um trote absurdo, supostamente promovido para testar a coragem, a resistência e a lealdade, mas quase sempre terminava em sangue.
Apesar da pouca idade, Liam ainda assim havia sobrevivido e, durante mais de dois anos, roubara carros, passara crack, subornara comerciantes e venderá armas de fogo para a Mara. Aos quinze anos, exclusivamente pela violência e pelo medo. Preso nessa espiral e tendo a morte ou a prisão como único horizonte, devia sua salvação exclusivamente à inteligência de Harry e à amizade de Niall, que tinham conseguido arranca-lo daquele inferno, desmentindo o princípio segundo o qual ninguém deixava Mara, sob pena de morte.
O sol poente lançava seus últimos raios. Liam piscou várias vezes, para se proteger da luminosidade e expulsar as lembranças e os sofrimentos do passado.
- Posso te convidar para comer os frutos do mar?
- Acho que, com o que sobrou na sua conta, sou eu quem devo te convidar - observou Niall.
- É uma forma de comemorarmos a sua promoção - disse ele, estendendo a mão para ajudar Niall a se levantar.
Deixaram a praia desanimados e percorreram a pé os poucos metros de ciclovia que ligava Venice Beach a Santa Monica.
Foram então caminhando pela Third Street Promenade, uma rua larga ladeada por palmeiras que abrigava diversas galerias de arte e restaurante de moda.
Instalaram-se no terraço da brasserie Anisette, cujo cardápio, em francês, tinha pratos com nomes tão exóticos quanto frisée aux lardons, entrecôte Aux échallotes ou pommes dauphinoses.
Liam insistiu em provar um drinque chamado pastis, que serviram à moda californiana, em um copo grande cheio de gelo.
Apesar dos malabaristas, músicos e engolidora de fogo que animavam a rua, o jantar foi melancólico. Niall estava triste, Liam, atormentado e cheio de culpa. A conversa girou em torno de Harry e Aurore.
- Você sabe por que ele escreve? - Liam perguntou subitamente no meio da refeição, dando-se conta de que ignorava um ponto essencial da psicologia de seu amigo.
- Como assim?
- Sei que Harry sempre gostou de ler, mas escrever é diferente. E você o conhecia melhor que eu na adolescência. O que levou o Harry a criar sua primeira história na época?
- Não faço ideia - Niall se apressou em responder.
Mas, sobre esse último ponto, ele mentia.
***
MALIBU
OITO HORAS DA NOITE
Após rodar sem rumo pela cidade, estacionei o Bugatti ameaçado de apreensão em frente à casa que eu acabava de saber que não me pertencia mais. Algumas horas antes, embora no fundo poço, eu me encontrava diante de uma fortuna de dez milhões de dólares. Agora, estava apenas no fundo do poço...
Quebrado, ofegante sem sequer ter corrido, me joguei no sofá, com os olhos perdidos no emaranhado de vigas que sustentava a suave inclinação do teto.
Eu estava com dor de cabeça, com a coluna moída, as mãos úmidas e o estômago embrulhado. As palpitações me oprimiam e me asfixiavam: me sentia vazio por dentro, consumido por uma queimação que acabara por alcançar a minha pele.
Durante anos eu passara as noites escrevendo, investindo nisso todas as minhas emoções e toda energia. Depois, passei a fazer conferências e sessões de autógrafos nos quatro cantos do mundo. Criara um organismo de caridade para que as crianças do meu antigo bairro tivessem acesso ao estudo da arte. E, por ocasião de alguns shows, eu mesmo tocara bateria com meus "idolos":os Rock Bottons Remainders.*
(*Banda de rock formada por escritores conhecidos - Stephen King, Scott Turow, Matt Groening, Mitch Albom.. - cujos concertos arrecadam fundos destinados a financiar projetos de alfabetização)
Mas naquele momento eu havia perdido o gosto por tudo: pessoas, livros, música e até pelos raios do sol que se punham sobre o oceano.
Eu me obriguei a levantar, fui para fora e me apoiei no parapeito da varanda. Mais baixo, na praia, como um vestígio da época dos Beach Boys, um velho Chrysler amarelo com madeira envernizadas exibia orgulhosamente no vidro traseiro o lema da cidade:Malibu, where the mountains meet the Sea.*
(*Malibu, onde as montanhas encontram o mar)
Fixei o olhar até ficar cego na linha flamejada que roçava o horizonte e iluminava o céu antes de ser carregada pelas ondas. Esse espetáculo, que outrora tanto me fascinara, não evocava mais nenhum encantamento em mim. Eu não sentia mais nada, como se meu estoque de emoções tivesse de esgotado.
Só uma coisa podia me salvar: reencontrar Aurore, seu corpo de cipó, sua pele de mármore, seus olhos de prata e seu cheiro de areia. Mas eu sabia que isso não aconteceria. Sabia que tinha perdido o combate e que, ao fim da batalha, me restava apenas a vontade de queimar os neurônios com metanfetamina ou qualquer outra porcaria que estivesse ao meu alcance.
Eu precisava dormir. De volta à sala, nervoso, procurei meus remédio, mas pressenti que Liam havia dado sumiço neles. Corri até a cozinha e vasculhei os sacos de lixo. Nada. Tomado de pânico, voei até o andar de cima, abri todos os armários e terminei enfiando a mão dentro de minha mala de viagem.
Espremidos em um pequeno bolso, uma caixa cheia de sonífero e alguns ansiolíticos me esperavam ali desde minha última viagem a Dubai para uma sessão de autógrafos em uma grande livraria no Mail of the Emirates.
Quase à minha revelia, despejei todos os comprimidos na mão e fiquei observando por um momento à dúzia de pílulas e azuis que pareciam rir da minha cara:
Você não tem coragem!
Eu nunca estivera tão próximo do vazio. Na minha cabeça, Imagens aterrorizantes se chocavam: meu corpo na extremidade de uma corda, a mangueira de gás na boca, o cano de um revólver na têmpora. Cedo ou tarde, minha vida terminaria assim. E, no fundo, eu não sabia disso desde sempre?
Você não tem coragem!
Enfiei o punhado de pílulas na boca como uma tábua de salvação. Tive dificuldade para engolir, mas um gole de água mineral fez tudo descer.
Então, me arrastei até o quarto e desabei na cama.
O espaço estava vazio e frio e era contornado por uma imensa parede de painéis de vidro luminescente azul-turquesa, transparente na medida para deixar penetrar a luz do dia.
Enrosquei-me no colchão, aterrado por pensamentos mórbidos.
Pendurado na parede Branca, os amantes de Marc Chagall me observavam com compaixão, como se lamentassem não poderem amenizar meu sofrimento. Antes mesmo de comprar a casa (que deixara de ser minha) ou o anel de Aurore (que também não era mais minha), a aquisição do quadro do mestre russo tinha sido a minha primeira loucura. Sobriamente intitulada Amantes em azul, a tela datava de 1914. Eu tinha ficado louco por aquela pintura, que representava um casal abraçado unido num amor misterioso, sincero e plácido. Para mim, simbolizava a cura de duas criaturas feridas, costuradas uma à outra para dividir uma única cicatriz.
Caindo suavemente em um estado de profunda sonolência, tive a impressão de me desconectar progressivamente das dores do mundo. Meu corpo se desfazia, minha consciência me abandonava, a vida me deixava....
Notas Finais
Agora as coisas vão começar....
Se preparem nosso garoto de papel no próximo capítulo ♥
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