Aurore
Estávamos os dois perdidos na floresta de uma cruel época de transição; perdidos em nossa solidão; [...] perdidos em nosso amor absoluto [...]: pagãos místicos privados de catacumbas e de Deus.
– Victoria O campo, em correspondência com Pierre Drieu La Rochelle.
BOURBON STREET BAR
DUAS HORAS MAIS TARDE
Uma série de relâmpagos riscou o céu. A trovoada rondou e uma chuva violenta se abateu sobre o hotel, sacudindo as palmeiras, estremecendo os telhados de colmo e ricocheteando na superfície da agua. Eu me refugiara no terraço coberto do bar de vinho, instalado numa casa de fazenda de estilo colonial que lembrava alguns casarões de New Orleans. Com uma xícara de café na mão, observava os turistas que, expulsos pelo dilúvio, voltavam ao conforto da suíte.
Eu precisava ficar sozinho para me recuperar. Estava furioso comigo mesmo. Furioso por ter me deixado abalar pelo beijo de Tommo e me prestando àquele fingimento ridículo com o único objetivo de causar ciúme em Aurore. Não tínhamos mais quinze anos, e aquelas criancices já não faziam o menor sentido.
Esfreguei os olhos e voltei ao trabalho. No topo da tela, eu observava o cursor piscar disparadamente à esquerda da página em branco. Eu havia ligado o velho Mac trazido por Niall na esperança um tanto louca de que aquela peça de museu desencadeasse meu processo criativo. Naquele teclado, na época de meu “esplendor”, eu escrevera centenas de páginas, mas o computador não era uma varinha mágica.
Incapaz da minha concentração, de alinhar três palavras, eu havia, juntamente com a confiança, perdido o fio da história.
A tempestade havia deixado a atmosfera pesada e opressiva. Imóvel diante da tela, senti a náusea tomar conta de mim. Meio zonzo, minha cabeça estava longe, monopolizada por outras preocupações, e escrever o início de um capítulo que fosse me parecia mais arriscado que escalar o Himalaia.
Terminei o café e levantei para pedir outra xícara. O inteior do ambiente ostentava um aspecto de pub inglês. Madeiras, marchetaria e sofás de couro imprimiam ao lugar uma atmosfera aconchegante e confortável.
No balcão, notei a impressionante coleção de garrafas enfileiradas atrás do bar de mogno. Mais que um café, o lugar nos incitava a pedir um uísque ou um conhaque, degustá-los baforando um havana e ouvindo ao fundo um vinil riscado de Dean Martin.
Pois justamente, em um canto do bar, alguém acabava de se instalar e fazia soar as primeiras notas de “As Time Goes By”. Virei-me preparado para topar com Sam, o pianista negro de Casablanca.
Sentada em um banquinho de couro, Aurore vestia um suéter comprido de caxemira e uma malha preta com motivos de renda. Dobradas de lado, suas pernas esguias se prolongavam nos saltos agulha grená. Ela ergueu a cabeça em minha direção, continuando a tocar. Suas unhas estavam pintadas de violeta e o indicador esquerdo ostentava um anel se ágata. No pescoço, reconheci a pequena cruz de pedra que ela usava em seus concertos.
Ao contrário dos meus, seus dedos corriam ligeiros sobre o teclado. Com naturalidade, ela passou de Casablanca a “La complainte de lá butte”*, antes de improvisar em cima de “My Funny Valentine”.
(Célebre canção francesa composta para o filme French Cancan, de Jean Renoir — N. do T.)**
O bar estava quase vazio, mas os poucos clientes que ali estavam a observava fascinados, enfeitiçados pelo que dela emanava: uma combinação entre o mistério de Marlene Dietrich, a sedução de Anna Netrebko e a sensualidade de Melody Gardot.
E eu, nem curado nem desintoxicado, era vítima da mesma atração. Doía-me revê-la. Ao me abandonar, ela carregava consigo tudo que havia de solar em mim: minhas esperanças, minha confiança, minha fé no futuro. Ela secará minha existência, esvaziando-a dos risos e das dores. Acima de tudo, asfixiaria meu coração, sugando-lhe toda e qualquer possibilidade de amar novamente. Agora, minha vida íntima parecia uma terra calcinada, sem árvores nem passarinhos, para sempre congelada no frio do inverno mais rigoroso. Eu não tinha mais apetite nem vontade, a não ser a de incinerar diariamente os neurônios a golpes de remédios para assim diluir lembranças penosas demais para enfrentar.
* * *
Eu havia me apaixonado por Aurore como alguém que esbarra num vins fatal e devastador. Eu a conhecera no Aeroporto de Los Angeles, na fila de embarque de um voo para da United Airlines com destino a Seul. Eu estava embarcando para a Coréia do Sul para promover meus livros; ela, para tocar Prokofiev. Gostei dela desde o primeiro minuto, por tudo e por nada: um sorriso melancólico, um olhar franco, um jeito especial de levar os cabelos para trás da orelha, virando o rosto como que em câmera lenta. Depois, admirei cada uma das suas inflexões de sua voz, sua inteligência, seu humor, a aparente distância que mantinha seu visual. Na sequência me apaixonei por cada um dos seus defeitos secretos, por sua angústia diante da vida, pelas feridas sob a armadura de ferro. Durante alguns meses, conhecemos uma felicidade insolente, que nos projetou para as mais altas esferas: as do silêncio, do excesso de oxigênio e das vertigens.
Obviamente eu pressentia que haveria um preço a pagar. Eu ensinava literatura e não me esquecera das advertências de mais escritores prediletos: Stendhal e sua cristalização; Tolstói e sua Ana Karenina se jogando de um trem depois de ter sacrificado tudo pelo amado; Ariane e Solal, os dois amantes de Bela do senhor,* terminando sua inexorável decadência drogadas de éter na sórdida solidão de um quarto de hotel. Mas a paixão é como uma droga: conhecer seus efeitos devastadores nunca impediu ninguém de continuar se destruindo depois de ter entrado na engrenagem.
Impregnado pela falsa convicção de que eu só era com ela, terminara por me persuadir de que nosso amor tinha futuro e de que seriamos bem sucedidos onde os outros haviam fracassado. Mas Aurore não conseguia extrair o que havia de melhor em mim. Ela me remetia a traço de caráter que eu detestava e que, nai de hoje, me empenhava em combater: certa possessividade, o fascínio pela beleza de acreditar que por trás de um rosto angelical havia sempre uma bela alma e o orgulho narcisista de ser associado a tão deslumbrante mulher, marca da vantagem conquistada sobre outros machos de minha espécie.
Ela certamente sabia tomar distância em relação a notoriedade e afirmava não se iludir com nada, mas raramente a fama aprimorar a personalidade de quem a alcança. Mais do que aplacá-las, ela aprofunda as feridas narcisista.
Eu estava ciente disso tudo. Sabia que Aurore, acima de tudo, vivia a angústia de ver a beleza murchar e temia perder o talento artístico — os dois poderes que os céus lhe conferiram e que a distinguiam dos demais mortais. Ela sabia que a voz firme podia falhar. Sabia que, por trás do ícone seguro de si, se escondia uma mulher vacilante, com dificuldades para encontrar um equilíbrio interior e que combatia a ansiedade com a hiperatividade, correndo as capitais do mundo, agendando concertos com três anos de antecedência, encandeando relacionamentos breves a rompimentos inconsequentes. Até o fim, contudo, eu julgara poder ser seu porto seguro, e ela, o meu. Para isso, seria preciso confiarmos um no outro, mas, como de seu feitio, ela adotara a ambiguidade e o ciúme como meio de sedução, o que de fato não ajudava a criar um clima sereno. Nossa paixão terminou de pernas para o ar. Nós teríamos, sem dúvida, sido felizes em uma ilha deserta, mas a vida não é bem assim. Seus amigos, pseudointelectuais parisiense, nova-iorquinos ou berlinenses, não engoliam meus romances populares, ao passo que, do meu lado, Liam e Niall a consideravam esnobe, altiva e egocêntrica.
* * *
O temporal não dava trégua, obstruindo as janelas com uma grossa cortina de chuva. No ambiente aveludado e refinado do Bourbon Street Bar, Auroere desferiu os últimos acordes da canção “A Case of You”, que acabava de interpretar com uma voz bluesy e sedosa.
Durante os aplausos, ela tomou um gole da taça de Bordeaux deixada sobre o piano e agradeceu à plateia inclinando a cabeça. Em seguida, fechou o instrumento, dando a entender que o show havia terminado.
— Bem convincente — eu disse, me aproximando. — Norah Jone que se cuide.
Ela me estendeu a taça para me desafiar.
— Vamos ver se não perdeu.
Pousei os lábios onde ela pousara os seus e provei um da bebida. Ela havia tentado me iniciar a sua paixão pela enologia, mas terminar o relacionamento comigo antes que eu pudesse assimilar as bases.
— Hum... Château Latour 1982 — chutei.
Ela esboçou um sorriso diante da minha falta de convicção e decretou:
— Château Margaux 1990.
— Pois eu continuo com a minha Coca light, é menos complicado no que se refere a safras.
Ela riu como ria antes, quando nos amávamos. Fez aquele movimento bem lento com a cabeça, que lhe era peculiar quando queria agradar, e uma mecha dourada escapou do grampo que prendia seus cabelos.
— Como vai?
— Bem — ela respondeu. — Você, em compensação, parece que continua acuado no Paleolítico Inferior — observou, fazendo alusão à minha barba. — E, a propósito, como está a boca? Conseguiram costurar?
Perplexo, franzi o cenho.
— Costurar o quê?
— O pedaço do seu lábio que o garoto arrancou no restaurante. Não sabia que você era gay, ou bi. É seu mais novo namorado?
Esquivei-me da pergunta, pedindo no balcão “um igual ao da senhorita”.
Ela insistiu:
— Ele é bonito. Não necessariamente elegante, mas bonito. Em todo caso, parece uma paixão vulcânica...
Contra ataquei:
— E você e seu atleta, tudo certo? Ele pode até não ser muito, mas é uma gracinha. Seja como for, vocês ficam bem juntos. E é deu grande amor, pelo que pude ler.
— Deu para ler esse tipo de publicação agora? Eles escreveram tanta besteira sobre a gente que eu achei que você está vacinado. Quanto ao grande amor... Ora, Harry, você sabe muito bem que nunca acreditei nisso.
— Nem comigo?
Ela deu outro gole no vinho e desceu do banquinho para debruçar-se na janela.
— Meus relacionamentos nunca foram intensos, exceto com você. Foram prazerosos, mas eu sempre consegui fazer economia da paixão.
Era uma das coisas que haviam nos separado. Para mim, o amor era como oxigênio. Era a única coisa que dava certo verniz, brilho e intensidade à vida. Para ela, por mais mágico que fosse, no fim das contas tudo não passava de fraude ilusão.
Com os olhos no vazio, ela expôs seu pensamento:
— Os laços se fazem e desfazem, é a vida. Uma bela manhã, um fica e o outro vai embora, e nem sempre sabemos por quê. Não posso dar ao outro com uma espada de Dâmocles em cima da cabeça. Não quero construir a minha vida sobre sentimentos, porque sentimentos mudam, são frágeis e volúveis. Você os julga profundos, e eles se desmoronam diante de uma saia que passa, de um sorriso cativante. Faço música porque ela nunca sairá da minha vida. Gosto de livros porque eles estarão sempre ali. Além do mais, desconheço um caso de amor que tenha sido eterno.
— Porque você vive em um universo narcisista, no círculo dos artistas e das celebridades, onde tudo se acaba com a velocidade da luz.
Pensativo, ela se dirigiu lentamente ao terraço e descansou a taça na mureta.
— Não soubemos ir além do êxtase do início — ela analisou. — Não soubemos perseverar...
— Você não soube perseverar — retifiquei convicto. — É você a culpada pelo fracasso do nosso amor.
Um último relâmpago clareou o céu e o temporal se afastou tão rápido como chegara.
— Pois tudo que eu queria — continuei — era dividir a vida com você. No fundo, acho que o amor se resume a isto: à vontade de viver as coisas a dois, crescendo com as diferenças do outro.
O nevoeiro começava a se dissipar, e um buraco de céu azul conseguiu perfurar as nuvens.
— O que eu queria — insisti — era construir algo com você. Eu estava pronto para esse compromisso, pronto para viver as provações a seu lado. Não teria sido fácil, nunca é, mas era o que eu queria: aquela rotina que triunfa sobre os obstáculos que pontuam nossa existência.
Na sala principal, alguém havia se sentado ao piano. Motas de uma variação íntima e sensual de “India Song” chegavam até nós.
De longe, vi Zayn Malik chegando com uma prancha de surfe debaixo do braço. Para evitar ser apresentado a ele, dirigi-me à escada de madeira, mas Aurore me segurou pelo braço.
— Eu sei de tudo isso, Harry. Sei que nada é definitivo, que nunca devemos prometer nada...
Ela tinha na voz um lado comovente e frágil; o verniz da mulher fatal estava prestes a rachar.
— Sei que para merecer o amor é preciso se entregar de corpo e alma e correr o risco de perder tudo... mas eu não estava preparada para isso e continuo assim até hoje...
Desvencilhei-me da pressão de sua mão para descer os poucos degraus. Ela acrescentou às minhas costas:
— .... sinto muito se te fiz pensar o contrário.
Notas Finais
Perdão pela demora, eu prometo que não vou abandonar essa história e estamos quase perto fim...
Espero que quem esteja acompanhando, esteja gostando :-)
Próximo capítulo tem Niam ♡
All the Love, A.
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