As ruas de Roma
Voltei com mais um capítulo!!
Minha demora é porque minha mãe não tem como mandar o livro pra eu adaptar mas aí baixei ele no celular e aos poucos estou conseguindo editar!!
Desculpa pela demora gente...
E tenham uma boa leitura!!
——— The • Paper • Boy ———
Serás amado o dia em que conseguires mostrar tuas fraquezas sem que o outro sesirva delas para aumentar sua força.
— CESARE PAVESE
PARIS
14-24 DE SETEMBRO
Apesar da doença de Tommo, as duas semanas que antecederam a cirurgia foram umdos períodos mais harmoniosos de nossa vida "a dois".
Meu romance avançava consideravelmente.Eu redescobrira o prazer de escrever, e minhas noites de trabalho eram permeadas de um arroubo entusiasta e criativo. Eu tentava estabelecer as bases de uma existência serena e feliz para Tommo. Diante do computador, eu criava para ele, ao longo das páginas, a vida com a qual ele sempre sonhara: mais serena, livre de seus demônios, desilusões e mágoas.
Eu costumava trabalhar madrugada adentro, depois saía de manhãzinha, na hora emque as máquinas varredoras aspergiam as calçadas de Saint-Germain. Tomava o primeiro café do dia no balcão de um bistrô da Rue de Buci e dava uma passada na padaria no Beco Dauphine, que preparava tortas de maçã douradas que derretiam na boca. Voltava para nosso ninho, na Place Furstemberg, e preparava dois cafés com leite ouvindo rádio. Tommo vinha bocejando se juntar a mim, e tomávamos nosso café da manhã recostados no balcão da cozinha americana que dava para a pracinha. Ele cantarolava, tentando entender as letras dos sucessos populares franceses, enquanto eu limpava os farelos de massa folheada do canto de seus lábios e ele franzia os olhos para se proteger do sol queofuscava sua visão.
Quando eu voltava ao trabalho, Tommo passava a manhã lendo. Ele descobrira uma livraria inglesa perto de Notre-Dame e me pedira que lhe preparasse uma lista de romances essenciais. De Steinbeck a Salinger, passando por Dickens, ele devorou durante esses quinze dias vários romances que haviam marcado minha adolescência, fazendo anotações, me interrogando a respeito da vida de seus autores e copiando em um cadernoas frases que a haviam impressionado.
À tarde, após uma breve sesta, fui várias vezes com ele ao pequeno cinema da Rue Christine, onde estavam em cartaz antigas obras-primas das quais nunca ouvira falar, mas que descobria fascinado: O céu pode esperar, O pecado mora ao lado, A loja da esquina.
Depois da sessão, recapitulávamos o filme apreciando um chocolate vienense, e, sempre que eu mencionava uma referência que lhe era desconhecida, ele se detinha para anotá-la em seu caderno. Eu era Henry Higgins, ele, Eliza Doolittle. Éramos felizes.
À noite, aceitávamos o desafio de preparar determinadas receitas de um velho livro de culinária desenterrado da pequena biblioteca do apartamento. Com maior ou menor sucesso, experimentamos pratos como blanquette de vitela, pato com pera, polenta com limão ou — nosso maior triunfo — paleta de cordeiro com mel e tomilho.
Assim, ao longo de duas semanas, descobri outra faceta de sua personalidade: um jovem inteligente e sutil, determinado a ser culto. E o principal, desde que puséramos as armas de lado: eu me sentia desestabilizado pelos sentimentos que passei a nutrir por ele.
Depois do jantar, eu lhe passava as páginas que escrevera durante o dia para que ele lesse, o que servia de base para longas conversas. Havíamos surrupiado do barzinho da sala uma garrafa já pela metade de aguardente de pera williams. O rótulo artesanal estava meio apagado, mas garantia que a cachaça fora "destilada no respeito às tradições ancestrais" por um pequeno produtor do norte de Ardèche. Na primeira noite, o levanta defunto queimara nossa garganta e o achamos intragável, o que não nos dissuadiu de tomar uma talagada no dia seguinte. Na terceira noite, passamos a julgá-lo "não tão ruim assim", e "absolutamente fantástico" na quarta. Agora a pinga fazia parte de nosso cerimonial e, sob o efeito desinibidor do álcool, nos abríamos mais um para o outro. Tommo então me falou de sua infância, da monotonia de sua adolescência, da angústia em que amergulhava aquele sentimento de solidão que sempre a lançava de cabeça em histórias de amor furadas. Contou-me a respeito do sofrimento de nunca ter conhecido um homem que o amasse e o respeitasse, bem como de suas esperanças para o futuro e da família que sonhava constituir. Geralmente, acabava por dormir no sofá ouvindo os velhos trinta e três rotações esquecidos pela proprietária e tentando traduzir a canção daquele poeta de cabelos encanecidos que prendia um cigarro à boca e declarava que "com o tempo, tudo passa", que "esquecemos as paixões e esquecemos as vozes que nos diziam baixinho palavras de alento: não volte muito tarde e cuidado com o frio"
* * *
Depois de levá-lo ao quarto, eu voltava para a sala para me instalar diante da tela. Começava então para mim uma noite de trabalho solitário, às vezes gratificante, mas quase sempre dolorosa, pois eu sabia que Tommo viveria longe de mim os anos de felicidade que eu programara para ele, em um mundo criado por mim, mas no qual eu nem ao menos existia, ao lado de um homem que era meu pior inimigo.
De fato, antes que Tommo surgisse em minha vida, eu criara o personagem de Jack como um desabafo. Ele encarnava tudo que eu detestava ou que me incomodava na masculinidade. Jack era meu oposto, o tipo de homem que me horrorizava, aquele que eu não queria ser.
Quarenta e poucos anos, bonitão, pai de dois filhos, era vice-diretor de uma grande companhia de seguros em Boston. Casado ainda bem jovem, enganava sem nenhum pudora mulher, que acabara por se resignar. Presunçoso e bom de papo, conhecia bem a psicologia feminina como de garotos frágeis sentimentalmente e, logo no primeiro encontro, conquistava sutilmente a confiança desua interlocutora. Assumia sem escrúpulos em suas declarações e atitudes certa dose de machismo que o fazia viril e másculo. Mas, com aquela que seria a vítima de sua sedução, em geral era doce e carinhoso, e era por essa contradição que as mulheres se apaixonavam, sentindo a inebriante impressão de deter a exclusividade de um comportamento que ele recusava às outras.
Na verdade, tão logo alcançava seu objetivo, o caráter egocêntrico de Jack voltava a prevalecer. Manipulador, sempre assumia o papel de vítima para inverter as situações embenefício próprio. Sempre que desconfiava dele, desvalorizava o amante com palavras duríssimas, pois tinha a faculdade de detectar os defeitos das pessoas para jogá-los nacara delas.
Havia sido nas garras desse sedutor perverso e narcisista, que infligia mágoasincuráveis às suas conquistas, que cometi a tolice de lançar meu Tommo. Havia sido por ele que ele se apaixonara e era a seu lado que me pedia para construir sua vida.
Obviamente eu caíra em minha própria armadilha, mas é impossível mudar radicalmente o caráter de um personagem de romance. De nada adiantava eu ser o autor do livro, eu não era Deus. A ficção possui suas próprias regras e, de um volume para ooutro, aquele salafrário não podia subitamente se transformar no homem ideal.
Todas as noites, portanto, eu me fatigava remando contra a maré, fazendo Jack evoluir de degrau em degrau para humanizá-lo e torná-lo, ao longo das páginas, um pouco mais sociável.
Contudo, para mim, mesmo no resultado final daquela mutação um tanto artificial, Jack continuava Jack: o sujeito que eu mais detestava no mundo e a quem, por um estranho conluio de circunstâncias, eu era obrigado a entregar o homem pelo qual agora estava apaixonado.
* * *
PACIFIC PALISADES, CALIFÓRNIA
15 DE SETEMBRO
9H01
— Polícia! Abra, sr.Payne!
Liam despertou com dificuldade. Esfregou os olhos e saiu da cama vacilante.
Ele e Niall tinham ido dormir tarde, depois de passar boa parte da noite diante do computador, filtrando, infelizmente sem sucesso, fóruns de discussão e sites de venda online à procura do exemplar perdido. Sempre que possível, haviam deixado advertências e mensagens de alerta. Era um trabalho fastidioso, que haviam estendido a todos os sites italianos que, de perto ou de longe, tivessem alguma relação com venda de livros ou literatura.
— Polícia! Abra, senão eu.
Liam entre abriu a porta. Uma auxiliar do xerife o encarava. Uma moreninha de olhos verdes e charme irlandês que se poderia tomar por Teresa Lisbon.
— Bom dia, senhor. Karen Kallen, unidade do xerife da Califórnia. Temos ordens paraseu despejo.
Liam saiu na varanda enquanto um caminhão de mudança estacionava em frente à casa.
— Mas que porcaria é essa?
— Não complique nosso trabalho, por favor! — ameaçou a oficial.— Nestas últimas semanas, o senhor recebeu várias intimações de seu banco.
Dois carregadores já haviam se posicionado em frente à entrada, esperando apenas aordem para esvaziar a residência.
— A propósito — continuou a policial, estendendo-lhe um envelope —, aqui está aintimação para comparecer ao tribunal por subtração de bens ameaçados de confisco.
— Está se referindo ao..
— ao Bugatti que o senhor penhorou, isso mesmo.
Com um sinal de cabeça, ela liberou os dois carregadores, que em menos de meia hora despojaram a casa de todo o seu mobiliário.
— E isso não é nada comparado ao que fará a receita federal! — disse Karen sadicamente, fechando a porta da viatura.
Liam se viu sozinho, na calçada, com uma mala na mão. Subitamente tomou consciência de que não tinha onde passar a noite. Como um pugilista grogue, deu alguns passos para a direita, depois para a esquerda, sem saber muito bem para onde ir. Três meses antes, dispensara as duas pessoas que trabalhavam com ele e vendera os escritórios do centro da cidade. Pronto. Não tinha mais trabalho, teto, carro, nada. Por muito tempo se recusara a encarar a realidade, achando que no fim daria um jeitinho, mas dessa vez a realidade lhe dera uma rasteira.
Os raios do sol da manhã incendiavam as tatuagens que enfeitavam o topo de seu braço. Estigmas do seu passado, lembravam as ruas, as brigas, uma violência e uma miséria às quais ele julgava ter escapado.
O uivo de uma sirene de polícia o arrancou de seu devaneio. Virou--se com vontade defugir, mas não se tratava de uma presença hostil.
Era Niall.
Ele imediatamente compreendeu o que havia acontecido e não permitiu que oconstrangimento se instalasse. Determinado, pegou a mala de Liam e a enfiou no banco traseiro da viatura.
— Tenho um sofá-cama bem confortável, mas acho que você não vai conseguir ficarem casa sem fazer nada. Tenho um papel de parede na sala que quero tirar há muito tempo, e depois será preciso pintar a cozinha com tinta epóxi e consertar o cano do chuveiro. Também há vazamento numa torneira do banheiro e manchas de umidade. Na verdade, seu despejo me veio bem a calhar.
Liam lhe agradeceu com um discreto sinal de cabeça.
Talvez ele não tivesse mais trabalho, nem casa, nem carro.
Mas ainda tinha Niall.
Perdera tudo.
Menos o essencial.
* * *
ROMA
BAIRRO DO TRASTEVERE
23 DE SETEMBRO
O pintor Michael Clifford entrou no pequeno restaurante familiar de uma rua fora do centro. Em um cenário de móveis antigos, o lugar sugeria comida romana sem frescura. Ali se comiam massas numa toalha xadrez e se bebia vinho da jarra.
— Calum! — chamou.
A sala estava vazia. Eram apenas dez da manhã, mas o aroma de pão quente já seespalhava pelo ar. O restaurante pertencia a seus pais havia mais de quarenta anos,embora hoje fosse seu irmão que tocasse o estabelecimento.
— Calum!
Uma silhueta apareceu no vão da porta. Mas não era a de seu irmão.
— Por que está gritando desse jeito?
— Bom dia, mãe.
— Bom dia.
Sem beijo. Sem abraço. Sem empatia.
— Estou procurando o Calum.
— Seu irmão saiu. Está no Luke comprando a massa.
— Então vou esperar.
Como sempre que se viam sozinhos, um pesado silêncio se instalou sobre eles, poucose falavam. Durante muito tempo, Mike morara em Nova York; depois, quando voltara paraa Itália após o divórcio, primeiro se instalara em Milão, antes de comprar um apartamentoem Roma.
Para desfazer o mal-estar, passou para trás do balcão e preparou um expresso. Michael não era muito "família".O trabalho frequentemente lhe servia de pretexto para faltar abatizados, casamentos, primeiras comunhões e almoços de domingo que se eternizavam. Paradoxalmente, à sua maneira, amava seus pais e sofria por não saber como secomunicar com eles. A mãe nunca entendera sua pintura, menos ainda seu sucesso. Não lhe entrava na cabeça como havia quem comprasse telas monocromáticas por dezenas de milhares de euros. Mike achava que ela o via como uma espécie de charlatão, um engo do talentoso que conseguia levar uma vida confortável sem "trabalhar" de verdade. Aquela incompreensão minara a relação deles.
— Tem notícias de sua filha? — ela perguntou.
— A Sandra acabou de voltar às aulas, em Nova York.
— Não a vê nunca?
— Não muito — ele admitiu.— Lembra que a guarda é da mãe?
— E quando você a encontra as coisas não vão bem, não é?
— Bom, não vim aqui para escutar tolices! — exclamou Michael, levantando-se para irembora.
— Espere! — ela disse.
Ele se imobilizou diante da porta.
— Você parece preocupado.
— Assunto meu.
— O que queria perguntar ao seu irmão?
— Se ele tinha guardado umas fotografias.
— Fotografias? Você nunca tira foto! Repete o tempo todo que não gosta de acumularlembranças.
— Obrigado pela ajuda, mãe.
— Fotos de quem?
Mike encerrou o assunto.
— Volto mais tarde para falar com o Calum — disse, abrindo a porta.
A velha se aproximou e o segurou pela manga da camisa.
— Sua vida é como suas telas, Mike: monocromática, seca e vazia.
— Essa é a sua opinião.
— Você sabe muito bem que é verdade! — ela disse, triste.
— Até logo, mãe — ele fechou a porta atrás de si.
* * *
A mulher deu de ombros e voltou à cozinha. Sobre a velha bancada de madeira azulejada estava o artigo elogioso que o La Repubblica dedicara à obra de Mike. Terminou a leitura antes de recortá-lo e guardá--lo no grande arquivo onde, havia anos, depositavatudo que se escrevia sobre o filho.
* * *
Michael retornou a seu apartamento. Usou seus pincéis como gravetos para acender agrande lareira central em torno da qual se dispunha seu ateliê. Enquanto o fogo começava a crepitar, juntou todas as telas, suas últimas composições finalizadas, bem como seus trabalhos em curso, e os regou metodicamente com white spirit antes de atirá-los nas chamas.
Sua vida é como suas telas, Michael: monocromática, seca e vazia. Hipnotizado pela incandescência de suas pinturas, o artista contemplou como uma libertação o fato de seu trabalho se transformar em fumaça.
A campainha tocou. Mike se debruçou na janela e percebeu a silhueta arqueada da mãe. Desceu para falar com ela, mas, quando abriu a porta, ela havia desaparecido,contentando-se em deixar um grande envelope na caixa de correspondência.
Ele franziu as sobrancelhas e abriu o envelope sem demora. Continha exatamente as fotografias e os documentos que ele pretendia pedir ao irmão!
Como ela adivinhou?
Subiu de volta ao ateliê e esparramou sobre a bancada de trabalho as lembranças deuma época remota.
Verão de 1980: o ano de seus dezoito anos, o encontro com Stella, seu primeiro amor, filha de um pescador de Porto Venere. Seu passeio pelo porto em frente à confusão de casinhas estreitas e multicoloridas que davam para o mar; os banhos de mar vespertinos na pequena baía.
Natal do mesmo ano: Stella e ele passeando pelas ruas de Roma. Um flerte de férias que resistiu ao verão.
Primavera de 1982: a nota de um hotel de Siena, a primeira noite de amor do casal.
1982: todas as cartas que haviam escrito um para o outro aquele ano. Promessas, planos, entusiasmo, um turbilhão de vida.
1983: um presente de aniversário dado por Stella, uma bússola que ela comprara na Sardenha, gravada com a seguinte inscrição: "Para que a vida o traga sempre para mim".
1984: primeira viagem aos Estados Unidos.Stella de bicicleta na Golden Gate. Aneblina no ferry para Alcatraz. Os hambúrgueres e milk-shakes do Lori's Diner.
1985: risadas, mãos se estendendo um casal protegido por um escudo dediamantes. 1986: ano em que vendeu sua primeira tela. 1987: Vamos ter um filho ouesperamos um pouco mais.? As primeiras dúvidas.1988: a bússola perdendo o norte.
Uma lágrima silenciosa escorreu pela face de Mike.
Porra, só falta se mijar todo.
Tinha vinte e oito anos quando rompera com Stella. Uma fase sórdida, em que tudo desandara em sua vida. Não sabia mais que sentido dar à sua pintura e fora seu lar que sofrera as consequências disso. Uma manhã, se levantara e ateara fogo em suas telas,como acabava de fazer naquele dia. Depois, fugira como um ladrão. Não explicara nada, agindo por impulso, só pensando nele e em sua pintura. Encontrara refúgio em Manhattan,onde mudara seu estilo, deixando de lado o figurativo para depurar seus quadros ao extremo até pintar apenas monocromáticos esbranquiçados. Casara-se então com uma esperta galerista, que soubera promover seu trabalho e lhe abrir as portas do sucesso. Tinham uma filha, mas haviam se divorciado poucos anos depois, porém sem desfazer a sociedade.
Nunca mais havia encontrado Stella. Soubera pelo irmão que ela havia voltado a Porto Venere. Ele a apagara de sua vida, a renegara.
Por que remoer agora uma história tão antiga?
Talvez porque ela não tivesse terminado.
* * *
ROMA
BABINGTON'S TEA ROOM
DUAS HORAS MAIS TARDE
O salão de chá situava-se na Piazza di Spagna, bem ao pé da grande escadaria da Trindade dos Montes.
Luca se instalara numa mesinha ao fundo do salão. A mesma que costumava ocupar quando ia ali com Stella. O estabelecimento era o mais antigo do gênero em Roma. Fora aberto por duas inglesas, cento e vinte anos atrás, numa época em que chá era vendido apenas em farmácia.
A decoração não mudara nada desde o século XIX e fazia do lugar um enclave inglês em pleno coração de Roma, jogando com o contraste entre o lado mediterrânico da cidadee o charme British do café. As paredes eram revestidas por lambris e cobertas porestantes de madeira escura, que acolhiam dezenas de livros e uma coleção de antigosbules de chá.
Michael abrira o livro de Harry Styles numa página em branco, logo depois da montagem da sra.Kaufman. Ficara tocado pela encenação daquelas recordações, por aqueles pedaços devida que se sucediam. Como se fosse um livro mágico capaz de realizar desejos e ressuscitar o passado, Mike colou por sua vez as próprias fotos, ornamentando-as comdesenhos e impressões digitais. A última foto exibia Stella e ele numa lambreta. Férias romanas, 1982. Tinham dezenove anos. Na época, ela lhe escrevera estas palavras: "Nunca deixe de me amar."
Contemplou a foto por alguns minutos. Prestes a entrar na casa dos cinquenta, tiverauma vida relativamente boa, que lhe trouxera satisfações: viajara, vivera de sua arte,conhecera o sucesso. Contudo, pensando melhor, não conhecera nada mais intenso que aquela magia dos primórdios, quando a vida ainda era repleta de promessas e serenidade.
Luca fechou novamente o livro e colou na capa uma etiqueta vermelha, na qual escreveu algumas palavras. Pelo celular, conectou-se a um site de bookcrossing e postouuma curta nota. Em seguida, aproveitando-se de um instante em que ninguém olhava para ele, enfiou o livro numa das prateleiras entre um volume de Keats e outro de Shelley.
* * *
Michael se dirigiu até a praça para pegar sua motocicleta, estacionada perto da fila dos táxis.
Com um extensor, prendeu a bolsa de viagem no porta-bagagem e montou na Ducati. Margeou o parque da Villa Borghese, contornou a Piazza del Popolo, atravessou o Tibre e acompanhou o rio até o Trastevere. Sem desligar o motor, parou em frente ao restaurante da família e levantou a viseira do capacete. Como se esperasse por ele, sua mãe saiu na calçada, olhando para o filho na esperança, quem sabe, de que as palavras de
amor pudessem ser ditas com os olhos.
Então Mike arrancou em direção à estrada que saía da cidade. Apontou a moto para Porto Venere, ruminando que talvez não fosse tarde demais.
* * *
LOS ANGELES
SEXTA-FEIRA, 24 DE SETEMBRO
SETE HORAS DA MANHÃ
De camiseta e macacão, Liam estava encarapitado num banquinho alto. Com um rolona mão, passava tinta epóxi nas paredes da cozinha.
Niall abriu a porta do quarto para se juntar a ele.
— Já no batente? — perguntou, bocejando.
— É, não consegui mais dormir.
Ele examinou o aspecto da pintura.
— Não vá me fazer um trabalho porco, hein?
— Está brincando! Há três dias trabalho como um escravo!
— Tá certo. Até que você não está se saindo mal — o loiro admitiu.— Poderia, por favor, preparar um cappuccino para mim?
Liam obedeceu, enquanto Niall se instalava na mesinha redonda da sala. Ele preparou uma tigela de cereais, depois abriu o laptop para checar seus e-mails.
A caixa de correspondência estava lotada. Liam lhe passara a lista completa da "comunidade" dos leitores de Harry, que nos últimos anos, tinham enviado mensagens ao escritor pelo site. Graças a e-mails enviados para listas dos quatro cantos do mundo, Horan conseguira alertar milhares de leitores. Jogara limpo, avisando-os de sua busca por um exemplar "com defeito" do segundo volume da Trilogia dos anjos. Desde então, encontrava todas as manhãs várias palavras de estímulo em sua caixa de mensagens. Mas o e-mail que tinha diante dos olhos naquele momento era mais interessante:
— Venha ver isso! — Niall disse.
Liam lhe estendeu uma xícara de café fumegante e olhou por cima de seu ombro. Um internauta afirmava ter visto o maldito exemplar num site de bookcrossing. Niall clicou no link indicado e entrou efetivamente na página de uma associação italiana que, para promover a leitura, estimulava seus membros a abandonar livros em locais públicos, para fazê-los circular por entre outras pessoas. As regras do "livro viajante" eram simples: a pessoa que desejasse libertar um livro atribuía-lhe um código e o registrava no site antes de "soltá-lo".
Niall digitou "Harry Styles" na área de busca para obter a lista dos livros de seu amigo que poderiam estar por aí.
— É esse! — gritou Liam, apontando para uma das fotos. Grudou a cara na tela, mas Niall o empurrou:
— Me deixe ver!
Não havia dúvida: o livro tinha realmente a capa em couro azul-escuro, as estrelas douradas e as inscrições em letras góticas que formavam o título do romance.
Com um novo clique, Niall soube que o livro fora abandonado na véspera no café Babington's Tea Room, situado no número 23 da Piazza di Spagna, em Roma. Abrindo outra página, acessou todas as informações disponibilizadas por mike66, pseudônimo do homemque "soltara" o romance. O lugar exato onde o volume fora abandonado — uma prateleirano fundo do café —, bem como a hora da "libertação": 13h56, horário local.
— Temos que ir para Roma! — Niall decidiu.
— Não se precipite! — refreou-a Liam.
— Como assim?! — o loiro se revoltou.— O Harry conta com a gente. Você falou com ele pelo celular ontem à noite. Ele voltou a escrever, mas o Tommo ainda corre risco de morte.
Liam fez uma careta.
— Chegaremos tarde demais. Já se passaram várias horas desde que o livro foi abandonado.
— É, mas isso não é a mesma coisa que largá-lo em uma cadeira ou em um banco de praça! Ele deixou o exemplar em uma prateleira, no meio de outros livros. Podem se passar semanas antes que alguém note!
Ele olhou para Liam e compreendeu que, após tantas desilusões, ele acabara por perdera confiança.
— Faça o que você quiser, mas eu vou.
Niall se conectou ao site de uma companhia aérea. Havia um voo para Roma às 11h40. No meio do formulário havia uma pergunta questionando o número de passageiros.
— Dois — disse Liam, abaixando a cabeça.
* * *
ROMA
PIAZZA DI SPAGNA
DIA SEGUINTE
No centro da praça, perto da monumental Fontana della Barcaccia, o grupo de turistas coreanos bebia as palavras do guia:
— Durante muito tempo, a Piazza di Spagna foi considerada território espanhol. É aqui também que fica a sede internacional da Ordem de Malta, que goza de um status blá-blá-blá.
Com os olhos grudados no fundo da fonte, Iseul Park, de dezessete anos, estava hipnotizada pelo azul-turquesa claríssimo da água em cujo fundo mofavam as moedas lançadas pelos turistas. Jade detestava ser tachada como parte do clichê "turistas asiáticos em grupo", que às vezes era motivo de chacota. Ela não se sentia à vontade naquele cerimonial todo, naquela ultrapassada fórmula de viagem que consistia em visita ruma capital europeia por dia e esperar horas até que todos batessem a mesma fotografia no mesmo lugar.
Seus ouvidos zuniam, estava aturdida, tremia . Como se não bastasse, sentia falta de ar em meio à multidão. Frágil como uma pluma, esgueirou-se para escapar e se refugiarno primeiro café que encontrou pela frente.
Era o Babington's Tea Room, no número 23 da Piazza di Spagna.
* * *
ROMA
AEROPORTO FIUMICINO
— E então, eles vão abrir essa merda de porta ou não?! — exclamou Liam.
De pé no corredor central do avião, ele estava impaciente.
A viagem havia sido penosa. Depois de partir de Los Angeles, haviam feito escala em San Francisco e em Frankfurt antes de finalmente pousar em solo italiano. Consultou orelógio de pulso: 12h30.
— Tenho certeza que nunca encontraremos esse livro! — grunhiu.— Fizemos todoesse trajeto à toa e ainda por cima estou morrendo de fome. Você viu o que nos servir ampara comer. Pelo preço da passagem, dá vontade de mandar.
— Quer para de reclamar?! — suplicou Niall.— Não aguento mais ouvir você sequeixando por besteira! Você enche o saco!
Um murmúrio de aprovação percorreu a fila.
Finalmente a porta se abriu, permitindo que os passageiros desembarcassem. Com Liam em seu encalço, Niall desceu uma escada rolante na contramão e correu na direçãodo ponto de táxi. Para seu azar, a fila de espera era impressionante e a rotatividade dos veículos acontecia com infinita lentidão.
— Eu não disse?
Ele nem se deu ao trabalho de responder. Em vez disso, sacou o distintivo, ignorou a fila e apresentou com autoridade seu salvo-conduto ao funcionário encarregado dedistribuir os passageiros nos carros.
— American police. We need a car, right now! It's a matter of life or death! — Niall disse, à maneira do inspetor Harry.
Isso é ridículo. Não vai funcionar nunca, pensou Liam, balançando a cabeça.
Mas ele estava enganado.O sujeito sacudiu os ombros sem fazer nenhuma pergunta,e em menos de dez segundos estavam a bordo de um táxi.
— Piazza di Spagna — indicou Niall ao motorista.— Babington's Tea Room.
— E rapidinho! — acrescentou Liam.
* * *
ROMA
BABINGTON'S TEA ROOM
Jade Thirlwall instalara-se numa mesinha ao fundo do salão de chá. A jovem coreana tomara uma grande xícara da bebida e mordiscara um muffin com chantili.A cidade lhea gradava, mas teria preferido visitá-la com tempo para vagar pelas ruas, mergulhar emoutra cultura, falar com as pessoas, sentar na varanda ensolarada de um café sem ter oolho grudado no relógio e não se achar obrigada, pela pressão do grupo, a tirar uma foto acada dez segundos.
Enquanto aguardava, mantinha o olho grudado não no relógio, mas na tela do celular. Ainda nenhuma mensagem de Perrie. Se era uma da tarde na Itália, deviam ser sete da manhã em Nova York. Talvez ela ainda não tivesse acordado. Sim, mas haviam se separado havia cinco dias, ela não ligara uma única vez nem respondera às suas dezenasde e-mails e mensagens. Como era possível? No entanto, tinham vivido um mês dossonhos na NYU, onde Jimbo estudava cinema. Jade dedicara o fim do verão a uma viagem de estudos promovida pela célebre universidade nova-iorquina. Um período mágico durante o qual descobrira o amor nos braços do namorada americana. Na última terça-feira, Perrie a
levara ao aeroporto onde ela havia se reunido com seu grupo, e tinham prometido um a outra telefonar diariamente, continuar fazendo o amor crescer apesar da distância e, talvez, se reverem no Natal. Depois dessa bela promessa, Perrie não dera mais sinal devida e alguma coisa se partira dentro dela.
Deixou dez euros na mesa para pagar a conta. Aquele lugar tinha mesmo muitocharme, com aquelas madeiras e prateleiras de livros. Não faltava muito para que quem estivesse ali se sentisse em uma biblioteca. Levantou-se e não conseguiu deixar de percorrer as estantes. Na faculdade, estudava literatura inglesa, e alguns de seus autoresfavoritos estavam ali: Jane Austen, Shelley, John Keats e
Franziu as sobrancelhas ao descobrir um livro que destoava no meio dos outros. Harry Styles? Não era bem um poeta do século XIX! Tirou o livro da prateleira e notou uma etiqueta vermelha colada na capa. Levada pela curiosidade voltou discretamente à mesa para examinar o livro com mais atenção.
A etiqueta autocolante trazia uma estranha mensagem:
Olá! Eu não estou perdido! Sou de graça! Não sou um livro como os outros. Meu destino é viajar e percorrer o mundo. Leve-me com você, leia-me e depois me liberte numlocal público.
Hum. Jade estava um pouco cética. Descolou a etiqueta e percorreu o romance paradescobrir seu estranho conteúdo e suas páginas em branco, das quais outras pessoas haviam se apropriado para contar as próprias histórias. Alguma coisa a comoveu. Aquele livro parecia ter um poder magnético. A etiqueta afirmava que era de graça, mas ela ainda hesitava em enfiá-lo na bolsa.
* * *
ROMA
BABINGTON'S TEA ROOM
CINCO MINUTOS MAIS TARDE
— É ali! — bradou Liam, apontando a estante ao fundo do salão de chá.
Clientes e garçonetes levaram um susto ao avistar aquele elefante perdido em loja de porcelana. Ele correu até o móvel e percorreu as prateleiras com tamanho arrebatamentoque um bule centenário valsou nos ares até ser resgatado in extremis por Niall.
— Entre os livros de Keats e Shelley — ele precisou.
Pronto, chegavam ao fim! Jane Austen, Keats, Shelley, mas nada do livro de Tom.
— Estou ficando de saco cheio! — ele gritou, socando com raiva o lambri de madeira.
Enquanto Niall procurava o romance em outra estante, o responsável pela lojaameaçou chamar a polícia. Liam botou panos quentes nos ânimos e se desculpou. Enquanto falava, notou uma mesa vazia, onde um resto de muffin num pires conversava com umpote de chantili. Tomado por um pressentimento, aproximou-se do banco e descobriu opost-it carmim colado na madeira envernizada. Percorreu o texto com os olhos e soltou um longo suspiro:
— Por cinco minutos.— disse ao Niall, agitando o pequeno adesivo vermelho em suadireção.
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