Capítulo 3 - A Bordo do Galeão Fantasma
Talvez o balanço do mar naquela jangada improvisada tivesse deixado o rapaz de casaco marrom completamente louco. Isto, ou qualquer outro acontecimento das últimas três noites. O fato é que o rapaz agora tinha um plano em mente que só funcionaria por milagre.
Mal terminou de engolir o rum, o rapaz se levantou e saiu da taverna. O navio partiria dali a duas horas, dissera o homem do chapéu emplumado ao tal Jenkins. Isto dava ao rapaz, ao menos, mais duas horas de vida. O resto talvez ele pudesse barganhar quando estivesse a bordo do Maestrel.
Seria um erro se aproximar do navio fantasma remando o escaler que roubara em Hispaniola, porque isto certamente chamaria a atenção do vigia – se houvesse algum. Então o rapaz se arriscou a nado, embrenhando-se no nevoeiro até alcançar o casco do navio. Foi uma subida difícil. Ele teve medo de se apoiar nas cordas e elas denunciarem sua chegada, por isso escalou o casco, agarrando-se por vezes a pequenas rachaduras onde mal cabia um dedo. Quando alcançou o convés a bombordo, sentiu-se feliz por perceber que estava completamente sozinho.
Todavia o rapaz não se permitiu descansar nem um só instante, e desceu em busca de um bom esconderijo. Se tudo o que ouvira sobre o Capitão do Maestrel era verdade, ele logo saberia que havia um clandestino a bordo, mas o rapaz torcia para não ser descoberto até estarem em alto mar.
O possível único lugar que não seria revistado antes da partida era o porão onde ficavam as celas de prisioneiros, portanto era o lugar mais seguro para ele agora. Estava muito escuro lá embaixo, mas ele achou melhor não acender nenhuma lamparina para evitar que percebessem sua presença.
O rapaz tateou o caminho até a cela mais próxima que encontrou aberta, e se sentou num canto. Havia alguma coisa jogada no chão que ele julgou ser um monte de gravetos, talvez para serem usados como lenha para o fogão, embora ele não conseguisse imaginar porque alguém guardaria a lenha nas celas.
Tentou ficar alerta, encolhido num canto, esperando amanhecer. As histórias sobre o Maestrel sempre foram muito vagas, mas ele não se lembrava de nenhum relato de desastres provocados pelo navio fantasma à luz do dia. Talvez o sinistro só tivesse poder à noite, e durante o dia não fosse muito mais perigoso que outro navio qualquer. Todavia isto não lhe dava grandes esperanças. Quando se apresentasse para o Capitão, fosse dia ou noite, ele estava certo de que sua vida estaria por um fio.
Enfim, alguns minutos depois, a escuridão e o cansaço acabaram por vencê-lo e ele adormeceu, sem perceber se o navio já deslizava sobre a água ou se permanecia ancorado.
Um pesadelo perturbou seu sono repetidas vezes a noite toda. O tempo inteiro ele via o rosto do companheiro, pálido e frio, sendo arrastado pela água, envolto em sangue. Mas em um dado momento, o morto abria os olhos e começava a chamá-lo para as profundezas. Então a lenha que estava à sua volta na cela incendiava, e ele não conseguia abrir a porta para escapar. O fogo lambia sua pele como uma fera voraz, crescendo ao seu redor, ao mesmo tempo em que o companheiro se distanciava nas profundezas e desaparecia; e ele próprio morria aos poucos sufocado e ferido pelas chamas.
Quando despertou, uma claridade débil penetrava o porão através da abertura de acesso à coberta de cima. Não era o bastante para que ele se sentisse seguro, mas foi o suficiente para ele perceber que não estava deitado sobre a lenha.
Ao seu redor, milhares de ossos humanos estavam amontoados, alguns até vestidos com trapos antigos e podres.
O rapaz se levantou de um salto e apertou as costas contra a madeira fria do porão, tateando de lado até abrir a porta da cela, sem despregar os olhos dos ossos sobre os quais dormira. Quando finalmente se viu fora da cela, sentiu uma mão pousar em seu ombro, e engoliu seco de pavor.
A carne enrugada e as unhas enormes e pontudas como as garras de um animal causaram-lhe mais medo do que se fossem ossos secos. O rapaz se virou devagar, o terror lhe congelando até a alma, e ficou de frente para o marinheiro que o descobrira. O sujeito não parecia tão velho, mas seu rosto era enrugado e feio, cor de bronze, pigmentação adquirida pela constante exposição ao sol que a vida no mar exigia. Talvez fosse o medo, já latente por encontrar-se dormindo em meio aos ossos no porão de um navio fantasma, mas o rapaz sentiu seu coração paralisar como morto ao ver a enorme cicatriz que atravessava o lado esquerdo do rosto do marujo.
Estava pronto para implorar pela vida quando o marinheiro o puxou com toda a força pelo braço, arrastando-o para cima até o convés principal, onde o Capitão já o aguardava. Ao lado dele, o velho Jenkins, alto como um mastro, parecia uma figura ainda mais medonha durante o dia do que quando o vira na taverna naquela noite.
– Ora, vejam, temos um clandestino a bordo – rugiu o Capitão. – Senhores, onde está nossa educação? Vamos dar as boas-vindas ao... Como é mesmo o seu nome?
O rapaz encarou o Capitão por um instante, analisando sua expressão, que, embora dura, não parecia exatamente furiosa; e após breve hesitação, respondeu, mal encontrando a voz:
– Toby Reid.
– Toby Reid – repetiu o Capitão, parecendo experimentar as palavras em contraste com o rosto do rapaz para ver se combinava.
E dirigindo-se à tripulação:
– Toby Reid decidiu voluntariamente se juntar a nós, embora eu não tenha recrutado nenhum novo marujo em nossa breve passagem por Tortuga.
Alguns marujos deram uma risada baixa, como se o Capitão acabasse de lhes contar uma anedota.
– O que sugere que eu faça com você? – perguntou o Capitão ao rapaz, com uma expressão desafiadora. – Por acaso sabe que navio é este?
– O Maestrel – respondeu o rapaz, ainda com a voz trêmula.
– Sim, o Maestrel – confirmou o Capitão, aproximando-se do rapaz com uma expressão carrancuda. – Eu deveria pregar suas tripas no mastro como punição por sua ousadia...
O Capitão fez uma pausa, analisando o rosto do rapaz, parecendo degustar com certo prazer o medo que lhe incutia.
– Mas admito que estou curioso – prosseguiu, com a voz calma. – Se você sabe que navio é este, e seu propósito no oceano, o que o levou a embarcar?
E sem dar chance ao rapaz de articular uma resposta, o Capitão ergueu a voz com exaltação:
– Por acaso está procurando a morte?
– Para falar a verdade, estou! – respondeu Toby, tentando não permitir que qualquer medo soasse em sua voz.
O Capitão o encarou com uma expressão espantada, porém imperturbável.
– Devia ter dado nó numa corda e se enforcado com ela, então – disse o Capitão. – Seria menos doloroso para você.
Toby agitou o corpo para se livrar das mãos do marinheiro da cicatriz, sem que ele ao menos afrouxasse os dedos, e respondeu desafiadoramente:
– O mar levou uma coisa minha que eu quero de volta! E eu sei que este navio pode me ajudar a recuperá-la.
O Capitão deu um meio sorriso, curioso.
– E o que o faz pensar que eu o ajudaria? – indagou, parecendo divertir-se com a ousadia do rapaz.
Toby enfiou a mão no bolso do casaco e retirou um pacote embrulhado em oleado, impecavelmente costurado e impenetrável à água do mar.
– Devo adivinhar o que é? – perguntou o Capitão, com a mesma calma de sempre.
– O que é que vocês foram buscar em Port Royal? – desafiou o rapaz.
– Espera que lhe preste conta de nossa navegação? – respondeu o Capitão, com alguma impaciência.
O rapaz balançou a cabeça negativamente, o medo agora baixando a guarda ao perceber um pequeno sinal de interesse do Capitão.
– Você esteve me perseguindo desde três noites atrás – disse Toby, sentindo que o Capitão agora dirigia toda a sua atenção ao que ele viera propor. – Sabe muito bem o que há neste embrulho, e onde o peguei. Pode escolher me ajudar em troca dele, ou pode me matar agora. Apenas devo adverti-lo de que se escolher me matar, muito em breve terá uma surpresa bem desagradável.
O Capitão estreitou os olhos.
– E qual seria? – indagou, tentando parecer calmo como antes, mas seus olhos ficavam mais vorazes a cada segundo em que encarava o embrulho na mão do rapaz.
Então Toby sorriu.
– Faça a prova! – desafiou.
O Capitão o encarou por quase um minuto em silêncio, e então ordenou com o olhar que o marujo da cicatriz soltasse o rapaz, e o conduziu até o seu camarote no castelo de popa.
Até fechar a porta, o Capitão permaneceu com a mesma expressão imperturbável, mas ao ficar sozinho lá dentro com Toby, a impaciência finalmente se mostrou em seu rosto.
– Diga logo o que quer e me dê o embrulho! – disse, num jorro.
Toby, porém, sentou-se calmamente numa cadeira atrás da mesa de refeições do Capitão e repousou o embrulho sobre a perna, sem pressa nenhuma. Havia no centro da mesa um pequeno navio de madeira, aparentemente pregado ao tampo, que era a réplica perfeita do galeão fantasma.
– Há quanto tempo é o capitão do Maestrel? – perguntou, com um sorriso atrevido.
– Tempo o bastante para arrancar seus olhos com minhas mãos sem sentir remorso! – respondeu o Capitão, zangado, debruçando-se sobre a mesa, o rosto carrancudo bem perto do rapaz.
Toby respirou fundo antes de prosseguir:
– Há muito tempo, quando era apenas um garoto navegando com o meu pai, eu vi ao longe, numa tempestade, um navio abominável surgir das profundezas. Você já deve tê-lo visto. Dizem que ele carrega as almas dos que morrem no mar até o outro lado; ao lugar de descanso.
– Sim, eu já o vi – respondeu o Capitão, impaciente e furioso.
– Imagino que saiba como encontrá-lo – disse o rapaz, calmamente.
– Pode ser – confirmou o Capitão, com um aceno de cabeça. – Mas se quer embarcar nele, devo dizer que o jeito mais rápido é caminhar na prancha.
– Não quero embarcar nele – corrigiu o rapaz, aproximando seu rosto do Capitão, destemidamente. – Quero de volta um companheiro meu que está a bordo dele.
– E por que acha que a morte lhe devolveria seu companheiro? – indagou o Capitão, com uma expressão em que o rapaz pôde ler perfeitamente que o julgava louco.
– Porque você vai pedir que o devolva.
O Capitão torceu o nariz, endireitando a postura.
– E acha que ele me atenderia? – A pergunta do Capitão soou como zombaria.
– Conheço sua fama – disse o rapaz. – Se você realmente é quem diz ser, a morte certamente lhe obedecerá.
O Capitão deu uma pancada leve com o punho na mesa, encarando o rapaz com uma expressão pensativa.
– E se eu decidir ignorar sua solicitação e jogá-lo ao mar para que encontre o navio sozinho? – propôs o Capitão, sem se deixar intimidar.
– Você vai descobrir que o que trago neste embrulho não vai levá-lo aonde quer ir – disse Toby com segurança. – Não sem a minha ajuda.
O Capitão pesou as palavras do rapaz, enquanto perscrutava seu rosto em busca da mais sutil hesitação. Alguma coisa pareceu emergir em suas lembranças, e o fez sorrir de um jeito nervoso.
– Pois bem, então – respondeu o Capitão. – Vou ajudá-lo a encontrar seu amigo, mas não posso prometer que ele terá sua vida de volta.
– Eu sei que pode – afirmou Toby, convicto. – Ou não terá o que quer...
O Capitão abriu a porta do camarote, aborrecido, e parou um instante diante da balaustrada, retirando alguma coisa do bolso. Toby não pôde ver direito; era uma coisa pequena, que o Capitão lançou ao ar por um segundo, apanhando em seguida com a outra mão, e imediatamente gritou para o timoneiro um novo curso a seguir.
Podia estar maluco, mas Toby seria capaz de jurar que o objeto que o Capitão consultara antes de indicar a rota era uma moeda.
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