Capítulo 22 - O "A" Escarlate
Toby retornou ao convés muito antes do amanhecer. Tinha uma aparência cansada. Decerto não conseguira dormir direito, preocupado com o bem-estar de Elena no convés de tombadilho, sob os cuidados duvidosos do velho Jenkins. E mesmo depois de ela ter garantido que estava bem, Toby continuou a olhar para o velho de um modo enviesado; o que curiosamente parecia diverti-lo mais do que aborrecê-lo.
O Capitão saiu de sua cabine ainda antes do início da manhã. A cada dia a aparência de Flynn se tornava mais repugnante: sua tez cada vez mais pálida; uma mancha escura crescia em torno de seus olhos, como uma ferida negra em seu último estágio de necrose. A mesma mancha ornava a pele de suas mãos desde quatro noites atrás, quando visitou a bruxa cega em Montserrat, mas ao redor dos olhos, parecia ainda mais assustadora.
Naquela manhã, Flynn estava insuportavelmente ansioso, em pé diante de seu camarote, buscando no horizonte qualquer sinal de que estavam chegando perto, jogando a moeda ao ar a cada poucos minutos, como quando estavam procurando o navio de ossos. Várias vezes Toby percebeu que o Capitão enrijecia, segurando-se firmemente na balaustrada diante da porta de seu camarote, apertando o peito como se tentasse suportar uma dor extrema.
Quase ao fim da manhã, Elena viu que o Capitão estava prestes a cair e correu em seu socorro. Foi de algum modo louvável o cuidado com que a moça acudiu Flynn, mesmo supondo que ele poderia estar planejando atravessá-los com a espada tão logo tivesse a informação de que precisava. Até o seu companheiro, Toby Reid demonstrou surpresa ao vê-la levar o Capitão para dentro do camarote, e aquela foi a única vez em toda a viagem que o olhar de Toby se encheu de ciúme.
– Se eu soubesse que seria amparado por uma mulher bonita, teria caído há mais tempo – sibilou o Capitão, em tom de brincadeira, quando Elena o colocou sentado na cama.
Mas ela lhe deu um olhar de reprovação ao comentário.
– Por que está sendo gentil comigo? – perguntou Flynn, recobrando a seriedade na voz.
Elena deu de ombros.
– Não tive até agora motivo nenhum para lhe querer mal, Capitão – respondeu.
– Nem pela surra que dei em seu companheiro? – conferiu Flynn.
– Isso me aborreceu – admitiu ela. – Mas não é por isso que vou lhe deixar cair da ponte.
Flynn deu um sorriso sem graça. Elena ajeitou os travesseiros e o ajudou a se recostar.
– Vou buscar um gole de água – disse ela, caminhando para a porta.
– Mande um dos marujos – disse Flynn. – Prefiro que você fique aqui.
Elena assentiu, e gritou da ponte para Keith buscar a água. Em seguida voltou-se, deixando a porta aberta.
– Teu companheiro vai ficar enciumado – disse o Capitão. – E não me agrada parecer fraco, mas não quero morrer sozinho neste camarote.
– Ora, Capitão... – sibilou Elena – Você não vai morrer.
Mas Flynn lhe deu um sorriso desanimado.
– Esta corda não vai me proteger para sempre – sibilou ele, apertando o peito num acesso de dor.
Elena apertou a mão do Capitão, e ele fechou os olhos um instante, respirando profundamente.
– Você disse ao Craven que uma bruxa o amaldiçoou – disse Elena baixinho, sem soltar a mão dele. – A mesma que foram ver em Montserrat, suponho...
Flynn assentiu, abrindo os olhos.
– Por que ela fez isso? – indagou.
– Porque eu a ofendi – disse o Capitão. – Num momento de raiva, eu desejei que ela apodrecesse no inferno com seus feitiços.
Os olhos de Elena sobressaltaram. Não era algo apropriado para se dizer a uma bruxa.
– Por que disse isso a ela? – perguntou Elena, assombrada.
– Por que motivo um homem perde a cabeça, Senhorita Cavanaugh? – riu-se Flynn. – Por uma mulher, é claro!
– A dona do lenço? – supôs ela.
– Sim – respondeu o Capitão, dando um suspiro melancólico. – O nome dela é Angélica; filha do Capitão Pizarro, a quem seu amigo Reid conheceu recentemente. Pizarro havia despertado a fúria dos portugueses ao atacar e destruir sozinho quatro caravelas que vinham carregadas de tesouros do Brasil.
A voz do Capitão estava muito fraca, e era visível que ele fazia grande esforço para contar a história:
– Por causa disso, o rei de Portugal enviou uma fragata, sob o comando de um bruxo poderoso que havia algum tempo trabalhava para ele, à ilha de Dominica, onde Angélica vivia com sua mãe, e ordenou que a raptassem.
Flynn se interrompeu, sufocando um gemido de dor, no mesmo instante em que Keith entrava no camarote, trazendo a água. Elena recebeu o copo e gesticulou ao garoto para sair.
O Capitão bebeu devagar, e logo prosseguiu com a história, apesar de Elena pedir que ele descansasse.
– Falar vai me manter acordado – explicou o Capitão –, e consequentemente, vivo.
Elena pôs o copo vazio sobre a mesa de cabeceira, onde havia uma ampulheta, cuja areia ligeiramente avermelhada escorria morosamente, restando muito pouco na parte superior do vidro.
Flynn respirou dolorosamente e prosseguiu:
– Quando eu soube do rapto, fui até Montserrat pedir que Cora me desse qualquer coisa: uma poção, um veneno, ou o que fosse para neutralizar a magia do bruxo e poder resgatar Angélica, mas ela se recusou a me ajudar. Foi então que eu a ofendi. Não pensei na hora, pelo modo tranquilo como ela reagiu, apenas alertando-me para ter cuidado com o que digo em momentos de raiva, que ela tivesse a intenção de se vingar. Ela me ofereceu uma caneca de rum para acalmar os ânimos, e só alguns dias depois eu percebi que ela o havia envenenado com a lama do pântano.
O corpo de Flynn se contorceu por um momento, experimentando uma dor ainda mais extrema.
– Nós atacamos a fragata portuguesa, mesmo sem a ajuda dela – prosseguiu o Capitão. – Jack Craven entrou na briga conosco. Dizem que o bruxo que estava no comando da fragata é imortal, mas por alguma razão ele teme o Emissário, ou alguém que está a bordo dele.
– Jack Craven, imagino... – supôs Elena.
– Não. A esposa dele! Acredito que você já tenha ouvido a história de como ele foi trazido de volta à vida após o enforcamento. Craven possui o coração de uma feiticeira, serva imediata da morte, e é a ela que o bruxo teme. Eu não sei por que, e nem me interessa descobrir, mas quando o Emissário surgiu das profundezas, o bruxo ordenou aos homens que recuassem.
Flynn deu um sorriso sádico, mesclado numa careta de dor.
– Nunca tive tanto prazer em chamar um navio para as profundezas – admitiu com rancor. – Mas eu sei que o bruxo está vivo; e também sei que ele não atentará contra Angélica novamente.
Elena franziu o cenho, mas antes que ela perguntasse qualquer coisa, Flynn explicou:
– Ele não vai se arriscar, pois essa briga não tem nenhum valor para ele.
E tomando fôlego devagar, prosseguiu:
– Eu joguei o navio dos portugueses no fundo do oceano, e o Emissário mergulhou em seguida para resgatar Angélica. O navio de Craven é muito mais rápido que o meu quando está submerso, e muito mais eficaz em manter os marujos que se afogavam longe. Não deixamos nenhum sobrevivente.
A estas últimas palavras, Flynn empregou um tom inescrupuloso de orgulho.
– Entreguei Angélica sã e salva ao pai dela – disse o Capitão –, sem que ela tivesse sequer sido marcada por Craven.
Então a expressão do Capitão se fechou em melancolia.
– Três dias depois os sintomas começaram a aparecer – prosseguiu. – Não é um mero envenenamento, como pode perceber, pois não há de fato nenhum veneno no pântano. Ele foi amaldiçoado há séculos. Apenas uma gota da lama é o suficiente para fazer um homem definhar lentamente, como estou definhando agora.
Elena quis dizer alguma coisa para confortá-lo, mas não conseguiu encontrar as palavras.
– Agora eu sinto que estou perto do fim – sibilou Flynn. – Depois que a lama do pântano mancha o coração não resta muito tempo. Sinto o gosto amargo da minha carne apodrecendo de dentro para fora. – Ele olhou para a mesa de cabeceira ao seu lado. – Vê esta ampulheta? As areias representam o tempo que me resta de vida.
Elena engoliu seco. Naturalmente a areia não escorria de modo natural, pois o objeto era pequeno, mas era evidente que a pouquíssima areia que restava na parte superior do vidro não duraria muito.
De repente o Capitão deu um sorriso largo.
– Veja como são as coisas... – sibilou Flynn. – Eu amaldiçoei tanto a sua presença no meu navio, Senhorita Cavanaugh, e talvez morra agora, enquanto você segura minha mão.
Elena não reagiu, mas evidentemente as palavras dele a deixaram perturbada.
– Esqueça o que acabei de dizer – pediu o Capitão, beijando a mão dela e repousando-a em seu peito.
– Eu o incomodo tanto assim? – perguntou ela, sem parecer ofendida.
Flynn balançou a cabeça para ambos os lados.
– Francamente, não – respondeu ele.
E mesmo ainda havendo uma interrogação na expressão dela, ele não disse mais nada.
Elena se virou de repente, e percebeu que Jenkins estava parado na porta, ouvindo a conversa, e por sua expressão agoniada, tinha ouvido muito.
– Não tem que me ver assim, pai – sibilou o Capitão, encarando o velho abutre.
Mas Jenkins não arredou pé. Elena franziu o cenho, ainda mais confusa.
– Pai? – estranhou ela, voltando-se para o Capitão. – Como você pode ser filho dele, se o nome dele é Jenkins e o seu é Flynn?
– Nunca ouviu falar em pseudônimo?
Elena ergueu as sobrancelhas, surpresa.
– Seu nome, então, é John Jenkins? – indagou ela, sorrindo. Àquela altura nenhum dos dois pensava em suas antigas rusgas.
– Jonathan Jenkins, na verdade – corrigiu o Capitão. – Mas nunca gostei desse nome. Sempre achei que parece o som de caixas de madeira se chocando no porão.
Elena não estava certa de ter compreendido, mas também não questionou. Talvez o pobre Capitão estivesse começando a delirar.
– E por isso decidiu se chamar Flynn...? – perguntou ela, com um sorriso divertido.
– Foi a mãe dele quem lhe deu esse apelido – contou Jenkins. – Nunca descobri porque, mas suspeito que seja porque ele tinha uma bela voz para o canto quando era mais jovem; fazia lembrar algum pássaro canoro.
O Capitão sorriu, e pareceu que ele resgatava com carinho alguma lembrança distante, mas logo voltou a ficar sério, encarando o velho abutre.
– Não queria que visse isso – disse Flynn.
– Não me parece tão mal – disse Jenkins, dando de ombros. – Considerando que mesmo com dor você arrumou um jeito de flertar com a moça...
Flynn ergueu as sobrancelhas, sorrindo, mas deu um suspiro melancólico.
– Ignore-o – disse para Elena. – Realmente estou fraco demais para cogitar qualquer coisa. Não tem com o que se preocupar.
Elena lhe deu um sorriso sem graça.
– Quer que eu os deixe a sós? – perguntou ela, sem soltar a mão do Capitão.
– Pode ir – respondeu Jenkins. – Eu cuido do meu filho.
Então ela assentiu e saiu do camarote, cerrando a porta atrás de si.
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