Capítulo 17 - O Miado do Gato
A noite os esmagou pesadamente assim que deixaram o naufrágio para trás. Arrow, que reassumira seu posto no timão por volta do meio-dia, agora assobiava distraidamente uma canção que para Toby, talvez por influência do desastre que acabara de presenciar, pareceu fúnebre.
Alguém, com um forte cheiro de rum, subiu as escadas e largou-se na coberta perto do timão. Toby não precisou fazer esforço para reconhecê-lo; seu gorro vermelho o denunciava à distância, mesmo no escuro: era o maldito criado de bordo que pela manhã lhe atirara a água suja de um balde nos pés a mando de Jenkins.
Toby apanhou uma caneca de rum que tinha deixado de lado ainda a pouco, e, pensando pagá-lo na mesma moeda, despejou todo o líquido na cara do patife. Este, porém, bêbado como um porco, apenas lambeu a bebida em volta dos lábios e permaneceu no mesmo lugar.
Toby percebeu em seguida que o marujo viera tirar uma soneca ali em cima, escondido do Capitão, e até pensou em delatá-lo, mas se deteve ao ouvir uma discussão exaltada no convés.
Não pôde compreender como começou, mas ficou aflito ao perceber que era seu companheiro, Theodore Hawkins quem discutia aos gritos com o velho abutre.
– Poupe-me de sua ironia, velho estúpido! – gritou Theodore, aborrecido.
Jenkins deu uma gostosa gargalhada ao ver a irritação que fervia no rosto do rapaz.
– Dê-me uma boa razão para obedecê-lo, menino – desafiou o velho, arrogante como sempre.
Theodore, que aparentemente era mais impulsivo que Toby, desembainhou a espada e investiu violentamente contra o velho, que recuou com um salto, erguendo rapidamente a espada para defender-se, porém ambos foram detidos por um tiro que arrancou a espada da mão de Theodore.
– O que está havendo aqui? – inquiriu o Capitão Flynn, enquanto a fumaça subia da pistola em sua mão.
– Não se mete! – gritou Theodore, avançando contra Jenkins com um facão que trazia ao cinto.
Dois marujos o seguraram rapidamente pelos braços – um deles levou um corte perto do cotovelo, quando o rapaz se debateu para soltar-se –, e Bud tomou a faca de sua mão.
O Capitão desceu muito depressa e avançou para ele com passos duros e o olhar extremamente colérico.
– Como é? – indagou Flynn, quando se chegava ao moço.
E como ele não respondia, agarrou-o com violência pela gola da camisa – muito mais abotoada que a dos demais piratas –, e gritou, baforando forte em seu rosto:
– Como você ousa se dirigir com essa petulância ao seu Capitão, moleque atrevido?
– Você não é meu Capitão! – gritou Theodore de volta, livrando-se das mãos de Flynn, mas sem conseguir se desvencilhar dos marujos que o seguravam.
Toby correu para o convés para tentar deter o companheiro, percebendo que ele estava alterado pelo álcool – e possivelmente pela insônia também –, porém as palavras de Theodore vinham num jorro:
– E se não estou enganado, você nem deveria estar no comando deste navio. Está marcado para morrer, apodrecendo lentamente por causa da praga de uma bruxa, e eu nem quero saber como encontrou este navio, mas de uma coisa eu tenho certeza: você é um embusteiro!
– Pare! – gritou Toby, dando um chacoalhão no companheiro.
O Capitão Flynn empurrou Toby de lado, e erguendo o braço com um movimento brusco, esbofeteou Theodore com as costas da mão com toda a força.
– Chega de dar rum a este moleque insolente! – gritou o Capitão, com o olhar enfurecido, como uma fera que se adianta para estraçalhar a presa. – Cinco chicotadas devem lhe ensinar a respeitar seu Capitão.
– Não! – interveio Toby, escudando o companheiro.
– Saia do caminho! – ordenou Flynn, empurrando-o com tanta força que ele se chocou contra a amurada.
Mas levantando-se imediatamente, Toby se dirigiu ao Capitão com uma expressão aflita.
– Dê as chicotadas em mim! – suplicou.
O Capitão, que estava pronto para tirá-lo do caminho outra vez, franziu o cenho, enquanto a raiva parecia aumentar em seus olhos.
– Você enlouqueceu de vez? – indagou Flynn, querendo livrar-se logo dele.
– Pode dar dez se achar que mereço – insistiu Toby com veemência –, mas em mim!
– Não! – protestou Theodore.
O Capitão, percebendo o desespero latente no rosto do rapaz que o desacatou, deu um sorriso diabólico e encarou Toby.
– Como quiser – rosnou.
Toby se apressou em despir o capote, o colete, o talabarte e a camisa, encarando o Capitão com firmeza e resolução.
A tatuagem que se via pela gola do rapaz, o pedaço de corda cortada, descia pelo dorso segurando uma caveira enforcada sobre um abismo. Nos braços de Toby ainda se via três ou quatro tatuagens: as palavras "caverna do homem morto", um pêndulo descendo contra um figo, a inscrição N21NE36N12 que parecia uma indicação de mapa, e alguma coisa traçada perto da axila que ninguém conseguiu identificar, dada a escuridão e a posição dos braços do rapaz.
Dois marujos o seguraram com os braços em volta do mastro principal, enquanto Theodore lutava para se livrar das mãos firmes dos piratas, gritando pragas e palavrões.
Bud ergueu o gato de nove rabos, mas o Capitão deteve seu braço.
– Eu mesmo quero ter o prazer de fazer isso – disse Flynn.
E tomando o chicote na mão com um olhar sádico, respirou fundo e desferiu o primeiro golpe. Theodore guinchou de horror, querendo esconder o rosto para não assistir aquilo. Toby conteve o gemido.
O Capitão respirou fundo novamente e, com o olhar ainda mais enfurecido, deu o segundo golpe. Theodore virou o rosto, mas Bud o puxou de volta com violência para que assistisse.
Flynn deu um sorriso sádico – talvez percebendo a reação de Theodore –, e desferiu o terceiro golpe. Desta vez o sangue escorreu nas costas de Toby. Theodore fechou os olhos, ainda resistindo em olhar.
– Abra os olhos! – gritou Jenkins. – Assista como homem ao que você fez a ele!
Flynn deu a quarta chicotada. Toby mal conseguiu conter o grito: os flagelos de metal do chicote se prenderam em sua carne e levaram uma grossa camada de pele quando foi puxado.
Após o quinto golpe, suas costas tinham um vergão em carne viva, de onde jorrava um rio lento de sangue. Então Flynn parou e devolveu o chicote ao contramestre, com um sorriso satisfeito brincando nos lábios.
– Creio que já basta – disse o Capitão. – Vai ensinar aos dois a não serem tão impertinentes.
Toby abraçou o mastro, respirando dolorosamente, e esforçando-se para se sustentar em pé sozinho.
O Capitão deu uma gargalhada divertida, vendo o horror com que Theodore evitava olhar para as costas feridas do companheiro.
– Estou curioso, Sr. Reid... – disse o Capitão, com a voz irônica. – Por que quis receber o castigo no lugar dele?
Toby não respondeu, lutando contra a vontade de deixar-se cair sobre os joelhos até que a dor que latejava em suas costas se tornasse suportável.
– Vai me deixar livre para fazer suposições a seu respeito? – insistiu o Capitão.
Toby puxou o ar devagar, arrependendo-se em seguida ao sentir uma fisgada em suas costas. Mesmo assim, voltou-se para o Capitão, esforçando-se para ficar ereto, e dando-lhe um olhar furioso.
– Fiz uma promessa ao pai dele antes de morrer – respondeu, com a voz rude e entrecortada. – Prometi protegê-lo como a um irmão mais novo.
E fazendo um novo esforço para tomar fôlego, completou:
– Posso ser um pirata, mas honro a minha palavra.
– Tem certeza de que é só isso? – insistiu Flynn, com um sorriso debochado que era mais característico de Jenkins do que dele.
– Por que duvida? – desafiou Theodore, empregando toda a raiva na voz. – Acha impossível um pirata ser um homem de palavra?
– Não – disse o Capitão, balançando a cabeça para ambos os lados. – Absolutamente. Apenas me pareceu que o Sr. Reid o protegeu como um homem protege a mulher que ama.
A suposição do Capitão arrancou gargalhadas e deboches da tripulação, e fez os dois jovens reagirem: Theodore cerrou os dentes, travando o maxilar com raiva, e Toby apertou com força o punho fechado; todavia nenhum dos dois pareceu constrangido.
– Já deu o castigo que queria – disse Toby, com a voz estoicamente firme. – Agora nos deixe em paz.
E respirando devagar, esgueirou-se lentamente de volta ao seu posto ao lado do timão.
Toby se debruçou ligeiramente sobre a balaustrada, apertando a madeira com força e fechou os olhos por um instante, antes de apanhar a bússola no cinto e verificar se permaneciam firmes no curso apesar de toda a confusão.
Arrow continuava a assobiar a mesma canção fúnebre, como se nem ao menos tivesse se apercebido da briga, e mantinha o navio firme na rota indicada.
Passado pouco tempo, Toby viu o Capitão adentrar o camarote, dando-lhe um olhar satisfeito antes de passar pela porta, e em seguida Gilbert subiu até onde ele estava.
– Vá descansar, rapaz – disse o Imediato com a voz mansa, muito diferente do tom preferido do Capitão e do velho abutre. – Eu assumo até amanhã.
Toby lhe deu um olhar agradecido, e desceu devagar até o convés, onde Theodore o esperava com um olhar arrependido, segurando suas roupas nas mãos. Passou direto por ele, com o olhar vazio, e desceu até o porão.
Era provavelmente o último lugar onde desejaria estar, todavia era também o único onde não haveria nenhuma alma viva para lhe atormentar.
Theodore desceu em seguida, trazendo além das roupas, um balde com água e uma flanela limpa para lavar seus ferimentos.
Deteve-se um instante ao ver os ossos amontoados na cela. A luz fraca da lâmpada que Toby trouxera projetava uma sombra imensa no fundo da cela, fazendo a pilha de esqueletos parecer maior.
– Eles não mordem – rosnou Toby, ligeiramente aborrecido.
Theodore assentiu, e repousou o balde no chão, ajeitando as roupas do companheiro num canto. Toby se deixou finalmente cair sobre os joelhos, e, respirando dolorosamente, estendeu-se de bruços no chão, sentindo a carne novamente se rasgar a cada movimento largo.
A súbita lembrança do pesadelo que tivera em sua segunda noite a bordo do Maestrel lhe assombrou por um instante. Parecia um presságio de que aqueles homens realmente pretendiam descarná-lo vivo. Se não o mataram desta vez, ele estava certo de que não estava longe disso, pois assim que o Capitão chegasse ao vale dos mortos, sua utilidade chegaria ao fim, e sua vida e a do companheiro também.
Theodore umedeceu a flanela na água limpa e aproximou cuidadosamente das costas de Toby, que guinchou baixinho com a dor do contato. O sangue havia parado de correr, mas as feridas não eram tão superficiais como de costume. Flynn empregara toda a sua força nos golpes, como se realmente quisesse fatiar a carne de Toby com os flagelos do chicote.
Theodore soluçou baixinho, e então Toby percebeu que chorava.
– Me perdoe – sibilou Theodore envergonhado.
Toby respirou fundo, e deu um gemido baixo de dor.
– O Capitão tem razão – admitiu Theodore. – Preciso parar de beber até voltar a dormir...
Toby fechou os olhos. Embora os movimentos fossem delicados, a flanela raspava nos ferimentos de uma maneira muito incômoda, e a única coisa que ele desejava naquele momento, mais que o alívio da dor, era um pouco de silêncio.
– Eu prometo me comportar melhor daqui para frente... – insistiu Theodore.
– Será que você pode parar de falar disso? – murmurou Toby, num tom ríspido.
Theodore se desculpou e fez silêncio por um instante.
– Ao menos poderemos desembarcar deste navio maldito depois que retornarmos do vale dos mortos – sibilou Theodore, umedecendo outra vez a flanela no balde, deixando um rastro de sangue na água. – Nem que seja para ficar à deriva...
Toby deu um curto e doloroso suspiro, e decidiu não compartilhar seus temores com o companheiro. Somente o desejo obsessivo pela fonte impedia o Capitão de matá-los, e isso não lhes dava mais que três dias de vida.
Agora Toby se perguntava se realmente fizera a coisa certa forçando o Capitão a resgatar seu companheiro do navio da morte. Talvez Theodore estivesse mais seguro no Emissário; ao menos, nada de pior poderia lhe acontecer. Mas agora estavam perdidos. Ele conseguiu reaver a vida do amigo, mas ambos estavam com os minutos contados para retornar ao Emissário, e desta vez, ninguém os traria de volta.
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