Capítulo 10 - Ao Barlavento da Tempestade
Até ao fim da tarde, Toby procurou se ocupar dos pequenos serviços que os marujos lhe incumbiam, como dar nós em cordas, polir facões e espadas, e ajudar o cozinheiro em qualquer coisa. Seria inútil tentar limpar o convés durante o dia, com a tripulação circulando para lá e para cá.
Ao cair da noite, porém, ele apanhou um balde e uma escova e começou o serviço que o Capitão lhe delegara. Sentia-se frustrado, rebaixado a mero criado de bordo, depois de ter sido homem de armas e até navegador. Teria se tornado Imediato no navio de seu pai se o destino tivesse sido generoso e permitido que o velho Burton Reid vivesse alguns anos mais.
É bem verdade que realizar aquelas tarefas ridículas foi de grande serventia para Toby, permitindo que ele conhecesse melhor a tripulação e decidisse qual daqueles homens seria mais facilmente ludibriado a abandonar o navio.
Tinha dois marujos em vista: o rapaz da pólvora, que estava claramente insatisfeito com sua função, principalmente por já ter dois membros amputados por causa de ferimentos de batalha – a perna esquerda, que fora substituída por um toco de madeira, e a mão também esquerda, que agora ostentava um garfo ligeiramente torto –, e decerto acreditaria em qualquer conversa, contanto que Toby prometesse promovê-lo a homem de armas em outro navio; e um marujo magricela que Toby observara atentamente o dia todo, e muito obviamente não tinha controle sobre a bebida.
Outro benefício de seu trabalho inútil foi descobrir o nome do Capitão da escuna. Quando abordou teve receio de perguntar e acabar trazendo à memória do Capitão alguma lembrança de onde o conhecia, já que ele próprio não imaginava porque seu rosto parecia tão familiar. Mas ao ouvir um marujo se dirigir ao Capitão como Keefe, Toby finalmente se lembrou.
Foi há muito tempo – ele nem se atrevia a calcular quanto –, saqueou um navio do tal Capitão Keefe perto do continente, quando ainda pilhava com seu pai. Na época, Keefe liderava uma fragata com doze bocas de fogo; veloz, mas muito inferior se comparada ao galeão com vinte e oito canhões que Burton Reid comandava.
Supostamente, Keefe possuía desde vinte anos atrás cartas de corso para navegar pela coroa inglesa, mas se tal documento realmente existiu ninguém jamais pôde comprovar, e certamente concorria contra ele o fato de algumas pessoas saberem que ele continuava a trocar seus butins em Tortuga. Toby estava quase convencido de que o Capitão não passava de um bucaneiro escondido detrás de um boato.
De qualquer modo, a lembrança trouxe um alento para o rapaz. Keefe provavelmente não se lembraria de Toby, pois ele nem mesmo tinha barba ainda na última vez em que se encontraram, e se antes não disse seu verdadeiro nome, agora Toby faria o impossível para escondê-lo. Além disso, não permaneceria naquele navio por muito tempo.
Todas estas observações, na verdade, são de pouca importância aos fatos que se sucederam; descritas apenas para esclarecer os eventos anteriores.
Desde o fim da tarde, Toby se inquietara com o aparecimento de uma nuvem estranha no horizonte ao sul, fosse pela cor, pelo tamanho ou por ser a primeira que via em muitos dias. Um temor inexplicável e agourento penetrou-lhe na alma à medida que a nuvem se alastrava rapidamente, cercando o horizonte, como uma linha baixa de costa.
Ao cair da noite, o ar quente envolveu o navio de uma só vez, carregado de exalações espirais que subiam como vapores e se perdiam na escuridão. Toby não tardou a perceber, com maior temor, que não corria nem a mais leve brisa no ar, e observou por alguns minutos a chama de uma lâmpada acesa no convés, que ardia sem que se notasse o menor movimento.
O vigia deu o alarme de tempestade, quase ao mesmo tempo em que Toby começou a bater impetuosamente à porta do camarote do Capitão. Keefe veio imediatamente ao convés, sem se importar em calçar as botas, e ficou paralisado ao ver a horrível mudança no horizonte.
Como percebesse que o Capitão não se moveria tão logo para dar ordens aos homens, Toby gritou para a tripulação, que já se achava toda no convés, atraída pelo alarme do vigia:
– Ferrar as velas! Baixar âncora!
– Está louco, marujo? – protestou o Imediato, quando o Capitão não se manifestou para repreender o rapaz. – Baixar âncora diante da tempestade...
– Obedeça! – ordenou o Capitão, com um grito vindo do fundo da garganta.
E como alguns homens quisessem protestar, Keefe completou:
– Nem a todo o pano poderemos escapar do furacão. Ainda mais sem vento! Se ficarmos parados, ao menos teremos a chance de que passe por nós sem fazer grande dano.
E beijando a cruz de madeira que trazia ao peito, completou:
– Que Deus nos ajude!
Os marujos obedeceram à ordem; em seguida desceram ao alojamento da tripulação, onde as horas se arrastaram lentas, até que perto da meia-noite o navio começou a estremecer com a violência das ondas. O forte ruído sussurrante do redemoinho deixou os homens mais inquietos, até ser interrompido pelo som crepitante de ferro se partindo. Então sentiram o balanço forte do navio sendo arrastado pela tempestade.
Um marujo gritou um palavrão, enquanto corria atônito para o convés, seguido por boa parte da tripulação. Toby subiu atrás deles, prevendo que o navio não resistiria à força do vento, mas recusando-se a aceitar o destino. Seu encontro com o Emissário era inevitável, mas ele não estava disposto a encontrá-lo sem a vítima viva que prometera dar em lugar de Theodore.
Como imaginava, a força do furacão partira a corrente que segurava a âncora, e o navio agora rasgava o oceano, bordejando ao vento da tempestade, completamente desgovernado.
Dois marujos lutavam com o timão para recuperar o controle do navio, mas todos os seus esforços foram inúteis. O furacão arrastava a escuna com violência para o norte, de onde subitamente, como uma sinistra aparição, um navio negro surgiu, vindo rapidamente contra eles.
Toby se agarrou ao mastro principal, prevendo o choque iminente dos navios, e apertou os olhos, preferindo não ver como chegaria o seu fim.
Com o balanço do vento, o navio envergou ligeiramente para frente, fazendo a carga se desprender e rolar violentamente para a proa. Com o peso todo na frente, a popa se ergueu, e alguns marujos escorregaram pelo convés, caindo inevitavelmente no oceano.
O casco erguido da escuna foi impulsionado para frente pela força do furacão, arremessando os homens que restaram para longe. Toby caiu com estrondo no convés do navio negro que vinha contra a tempestade, errando por pouco as pernas de um marujo que despencara à sua frente. Uma enorme onda inundou o convés em seguida, com tamanha força, que poderia tê-los varrido da coberta, não fosse o fato de Toby ter se agarrado à balaustrada, segurando com uma das mãos o pé do marujo que com ele caíra no convés.
A escuna tombou com o casco para cima, esmagando toda a tripulação do Capitão Keefe que havia sido arremessada ao mar, e em seguida, mergulhou para as profundezas.
Após a passagem da onda, Toby ajudou o marujo a se levantar, segurando firme na amurada do navio negro. Era um sujeito baixinho e robusto, cego de um olho, mas muito habilidoso com o canivete, pelo que pôde observar naquele dia.
A tripulação lutava contra o vento e a maré para manter o navio em curso, indo cada vez mais para o centro da tempestade. O trabalho exigia tanta força e atenção, que ninguém por perto pareceu aperceber-se da presença dos dois náufragos, exceto um homem que Toby imaginou – sem nem mesmo compreender porque – ser o Capitão.
– Ei, vocês dois! – gritou o homem, com um fortíssimo sotaque espanhol, ajudando outros dois marujos a manter a vela principal firme em sua posição. – Já que o furacão os jogou em nossa tripulação, não fiquem aí parados. Ajudem aqui, mexam-se!
Um de cada lado, Toby e o outro marujo ajudaram os homens a sustentar a vela em curso com o auxílio dos cordames, enquanto o Capitão subia ao convés de tombadilho para ajudar o timoneiro, um homem velho, embora de aparência forte e austera.
A muito custo, mantiveram o navio firme contra o vento, apesar do balanço violento das ondas se chocando contra o casco e a proa.
Quando alcançaram o olho do furacão, a violência e o tamanho das ondas aumentaram consideravelmente, agora vindo de todos os lados. O navio chegou a inclinar ligeiramente a estibordo com o choque da maré, e por um instante, Toby pensou que ele fosse a pique. Em seguida endireitou-se, não se sabe como, mas Toby considerou profundamente que tenha sido por milagre, e seguiu bordejando até que o olho passou por cima deles completamente.
Apesar da força do vento contrário, era assombrosa a velocidade com que o navio rasgava o oceano em direção ao sul. Foi uma madrugada angustiante, mas pouco antes do amanhecer, a tempestade ficou para trás.
Os marujos estavam tão exaustos, que deliberadamente se deitaram no convés até quase ao fim da manhã.
Apesar do cansaço e do corpo doído pelo esforço e pela violência das ondas que se chocavam contra eles o tempo todo, Toby sentia-se aliviado por estar vivo, mas principalmente pela presença daquele único marujo que sobrevivera com ele ao naufrágio da escuna. Era como se o destino, e não ele, tivesse escolhido sua vítima.
Ao levantar-se, Toby lançou um olhar distraído à bandeira negra que tremulava levemente no baixo do mastro, com o desenho branco de um crânio humano perfurado por uma adaga de lâmina irregular embebida em sangue. Já tinha ouvido algo sobre essas cores. El Falcón Negro, um galeão espanhol famoso por ser o único navio até hoje a sobreviver a um encontro com o Maestrel.
As histórias eram confusas, como tudo a respeito do galeão fantasma. Alguns diziam que o Capitão Pizarro fizera um pacto com o Capitão do Maestrel, prometendo pagar tributos regulares em troca de sua liberdade. Outros diziam que Pizarro fora reconhecido pelo Capitão do Maestrel como sendo descendente direto de um homem que salvou sua vida no passado, pelo que o Sanguinário teria uma dívida eterna. Uma versão mais perturbadora dizia que o tributo pago por Pizarro para não perecer diante do galeão fantasma foi sua esposa, entregue ao Capitão do Maestrel para ser sua concubina eterna.
Esta última versão Toby sabia que não era verdadeira, pois nos três dias em que esteve a bordo do galeão fantasma ele não viu mulher alguma, nem ouviu sua voz, nem mesmo dentro do camarote do Capitão.
De qualquer modo, sendo Toby inglês, lhe causava certo receio estar a bordo de um navio pirata espanhol. Todavia ele não deixava de estar agradecido, pois El Falcón Negro era comprovadamente um navio quase tão resistente quanto o Maestrel. Não fosse por isso, e diante da tragédia que acometera a escuna do Capitão Keefe, ele teria encontrado o Emissário mais cedo que o planejado.
O Capitão estava em pé diante do timão, verificando o horizonte com a luneta. Era um homem alto, vestido inteiramente de negro, e não tinha um único cabelo na cabeça. A barba, por outro lado, embora curta, cobria seu rosto como uma mancha escura e espessa. Trazia um diamante miúdo na orelha direita e um medalhão de prata ao peito.
Toby o observou por um instante, até que ele finalmente baixou a luneta e o encarou sem expressão.
– Quer me dizer alguma coisa, mandrião? – indagou, sinalizando que ele podia subir ao convés de tombadilho.
Enquanto subia as escadas, Toby notou no cinto do Capitão uma adaga de lâmina irregular, idêntica a da bandeira: de um lado, o fio cortante, ligeiramente curvado; e do outro, uma sequência de dentes pontudos e afiados.
– Não pretendo fazê-los prisioneiros, se é o que veio negociar – garantiu Pizarro, quando o rapaz pisava o último degrau. – Mesmo sendo ingleses.
Toby não questionou que ele já conhecesse sua nacionalidade; afinal, Keefe navegava o tempo todo com a bandeira da Inglaterra içada no pavilhão, inclusive no momento do naufrágio.
– Não pensei o contrário – disse Toby.
O Capitão tornou a erguer a luneta diante do olho. Abaixo deles, perto do tombadilho, um marujo informava ao Imediato sobre os danos que a tempestade e a água salgada que escorrera aos deques e ao porão causaram à carga, sobretudo às rações de boca. Boa parte dos suprimentos seriam mais difíceis de engolir agora que em qualquer outra circunstância.
Apesar de falarem em espanhol, Toby compreendia perfeitamente cada palavra, fato que provocou nele mesmo grande espanto. Depois de tantos anos, e com todo o cansaço pesando em seu corpo e em sua mente, era inacreditável que o conhecimento do idioma de sua mãe não estivesse debilitado.
Como Toby demorasse demais a dizer o que queria, o Capitão se virou, a tempo de surpreendê-lo verificando a bússola. Navegavam cada vez mais para o sul, porém ele não tinha nem a mais remota ideia de onde se encontravam naquele momento, depois de toda a confusão da tempestade.
– Faz ideia de onde estamos? – perguntou Toby, finalmente, com uma expressão angustiada.
O Capitão tornou a erguer a luneta e respondeu, dando de ombros:
– Se bem conheço estas águas, não muito longe de Porto Rico.
Toby deu um suspiro frustrado.
– Têm urgência de chegar a algum lugar? – indagou Pizarro, parecendo na verdade desinteressado na resposta.
– Para dizer a verdade, sim – admitiu Toby, cauteloso. – Deveria encontrar uns companheiros meus até amanhã.
Pizarro baixou novamente a luneta, desta vez voltando-se completamente para Toby e analisando sua expressão. E como não encontrasse nada em seu rosto que lhe revelasse alguma coisa além do cansaço, verificou atentamente suas vestes, demorando-se com os olhos na tatuagem que aparecia pela gola do rapaz, do lado direito de seu pescoço. O Capitão forçou os olhos, tentando identificar o que era, mas só pôde ver o desenho da ponta cortada de uma corda.
– Esteve recentemente em Tortuga, pirata? – indagou o Capitão, agora desconfiado.
– Não trago nenhum ouro comigo, se é o que quer saber – respondeu Toby, com algum atrevimento.
– Sossegue, rapaz! – acalmou o Capitão. – Não o estou criticando. Também não me rendi ao corso, e nem pretendo.
Toby percebeu que Pizarro tocava levemente o cabo da adaga, agora que o reconhecera como um bucaneiro, e ficou atento.
– Não quero problemas, Capitão – garantiu Toby, tentando se mostrar tranquilo. – Estou fugindo da morte há seis dias, e francamente não acho que o furacão tenha sido o pior. Se puder me largar em qualquer praia no caminho com o marujo que despencou comigo do outro navio, já lhe serei grato.
Pizarro franziu o cenho, analisando muito atentamente o rosto de Toby enquanto falava. Estava realmente arriscando muito, mas naquele instante, o rapaz se reconhecia incapaz de lutar, de modo que a única alternativa que lhe restava era apelar para a pouco provável misericórdia do pirata espanhol.
Parecendo compreender que Toby não mentia, o Capitão deu um suspiro longo, e sem relaxar a postura, nem desprender a mão do cabo da adaga, perguntou:
– E onde você deveria encontrar seus amigos?
Toby tentou ler a expressão do Capitão antes de responder, procurando algum traço de desconfiança ou maldade, mas, em verdade, aquele homem parecia apenas curioso.
– O navio deve estar em algum lugar entre São Martinho e Guadalupe – disse, decidindo-se pela evasiva.
– Bem, se tiver sorte, talvez o encontremos no caminho, então – disse Pizarro. – Vamos um pouco além, para Martinica. Devemos passar por São Martinho até o anoitecer.
Toby agradeceu gentilmente. Porém o Capitão o olhou com uma expressão muito séria, e advertiu severamente:
– Embora não esteja preocupado por ter piratas ingleses em minha tripulação agora, não estou esquecido de que somos inimigos pátrios, de modo que vou ficar de olho em vocês dois.
E aproximando mais seu rosto do rapaz, com o olhar firme e intimidador, acrescentou:
– Melhor não tentarem nenhuma gracinha, ratos!
O tom escolhido pelo Capitão não era exatamente de ameaça, mas Toby compreendeu pelo modo como ele apertou com as pontas dos dedos o cabo da adaga ao falar, que ele seria capaz de atravessar seu crânio com ela sem dó, igual ao desenho da bandeira.
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