Sete - O anfitrião malquisto
"Esta seria a maior infelicidade de todas:
achar agradável um homem que decidimos odiar!"
Orgulho e Preconceito, Jane Austen.
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Karen agradeceu quando finalmente chegou ao ambiente climatizado do quarto em que ficaria hospedada. O clima era quente em Vera Cruz, mas a temperatura em Ravin era terrivelmente alta.
Ela tomou um rápido banho e solicitou que Ingrid lhe fizesse um penteado. A dama era boa nisso e Karen apreciava sua companhia.
As duas passaram aqueles minutos tendo uma boa conversa, como costumavam fazer. Ingrid usava grampos para prender o cabelo de Sua Alteza em um coque bem alto, com o qual ela estava habituada.
Nas laterais, contudo, duas mexas encaracoladas pendiam soltas, conferindo à princesa um charme ao qual ela mesmo ignorava. Quando a dama finalizou, constatou que o serviço estava perfeito e Karen, graciosa.
Ao tocar o sino que anunciava o horário da refeição, ela se dirigiu para o salão de jantar, onde se reuniu com seu irmão e a família De Ravin.
A mesa estava localizada no centro da grande sala, sobre a tapeçaria persa, tão antiga quanto cara. Acima deles, um enorme lustre de cristal iluminava o ambiente.
O imperador ocupava o assento de uma das pontas, enquanto Kilian, o do lado oposto. Os príncipes estavam nas laterais, em torno de seu pai, e ela sabia que deveria se acomodar próximo ao seu irmão.
Karen se sentia estranha. Ela e Kilian jamais fariam uma refeição tão fria e formal para tão poucos convidados.
Se estivessem em Salvaterra agora, jantariam na sacada, descontraídos, com o Duque Dumas Pascoal ao seu lado e observando as flores plantadas pelo senhor Arão. Cada segundo que se passava enquanto estava naquela mesa, conferia a Karen a certeza de que não pertencia àquele lugar.
− Diga-me, princesa − iniciou Roque, em uma tentativa desajeitada de chamar sua atenção. − Como está se sentindo agora que tem quinze anos completos?
Com o canto dos olhos, ela pôde perceber que Kilian controlava o meio sorriso debochado que já conhecia bem.
Virou-se, sem muita empolgação, para responder a pergunta do príncipe, a tempo de notar que o irmão dele estava rolando as pupilas sob as pálpebras, em sinal de tédio.
− Exatamente a mesma de semanas atrás – respondeu, seca, para que ele percebesse que nada havia mudado e que sua posição contrária ao casamento arranjado permanecia inalterada, mesmo com a substituição do noivo.
Ele assentiu, constrangido, fazendo-a sentir uma pontada de culpa. O pobre não merecia ser tratado assim quando nunca fora descortês com ela.
Mas ele era simplesmente, apesar de bonito, tão sem graça.
Não demorou muito para que ela se lembrasse da figura de Roque em seu baile, encarando-a com simpatia durante a valsa, enquanto ouvia aquelas palavras terrivelmente grosseiras proferidas pelo príncipe herdeiro.
Karen lembrou-se que, quando estava se sentindo sem saída, desejou que fosse Roque e não Sales, a pessoa com quem precisasse se casar.
De repente, lançando-lhe um olhar terno, mas sem sorrir demais (para evitar dar esse gosto ao irmão dele), ela se dirigiu ao jovem príncipe novamente.
− Você entenderá em breve − disse, com a voz mais doce que conseguiu. − Já que não falta muito para que comemoremos o seu próprio aniversário.
No novo mundo, a comemoração dos quinze anos de uma moça era equivalente aos dezessete de um rapaz.
Ele devolveu a Karen um olhar agradecido, mas palavra nenhuma saiu de sua boca. Sales, ela pôde notar, agora contraía o intercílio em sinal de curiosidade. Ele certamente não esperava aquela atitude condolente da princesa diante do péssimo jeito de seu irmão para cortejos.
− Se for como as jovens de nossa família, provavelmente estava ansiosa para seu baile de debutante − Sales comentou, sem erguer olhos. Ela imediatamente virou-se na direção dele e não disse uma palavra sequer.
Dessa forma, todos na mesa pareceram inquietar-se, exceto por ele, que estava alheio ao fuzilamento que recebia através dos olhos da princesa. Ela esperou que o silêncio durasse tempo demais, para que o príncipe olhasse em sua direção.
Quando finalmente o fez, encontrou o rosto de Karen, fitando-o com a expressão fechada. Era tudo o que a princesa precisava, de modo que voltou seu olhar para o prato e pôs-se a comer.
− Está certo − sussurrou Sales, não tão baixo que não pudesse ser ouvido. − Eu mereço isso.
Entendendo que ela não o perdoara e que não demonstrava o menor interesse por desenvolver qualquer contato amigável com ele, o príncipe voltou-se para o irmão, puxando algum assunto sobre armas, ao qual a moça ignorava.
Dom Fernão e Kilian também tinham sobre o que discutir. Karen só tinha a si mesma e, pela primeira vez, estava feliz por não receber atenção demasiada. Ainda mais satisfeita estaria, não fossem as olhadelas de soslaio que recebia de Roque com frequência.
Quando terminaram o jantar, Roque veio até ela a fim de convidá-la para um passeio pelo jardim na manhã seguinte. A princesa consentiu, evidentemente, porque sabia que estava ali para interpretar esse papel.
Ainda assim, não demorou a se retirar, deixando o rapaz sozinho com seus olhos brilhantes e seu sorriso satisfeito.
Após subir as escadas, ela virou no corredor, na direção onde ficava seu alojamento, mas antes mesmo que se aproximasse da entrada do quarto, percebeu a presença de uma figura grande e soberba parada em frente sua porta.
Só podia ser piada.
− Com licença − pediu, sem mesmo ter o trabalho de perguntar o que ele estaria fazendo ali.
− Por favor, não faça assim − disse o príncipe, tocando-a no braço. Karen imediatamente esquivou-se de sua mão com um movimento arredio.
− Não me toque, por gentileza – respondeu, seca.
Ela tentou passar pela muralha que parecia o corpo dele, mas viu-se completamente sem saída. O fato de Sales não respeitar seu desejo de manter distância só aumentava a antipatia que ela lhe dispensava.
− Karen, desculpe. Eu não vou te tocar. Apenas me escute − suplicou, levantando as mãos no ar, em sinal de rendição. Ele agiria conforme ela pediu.
− Não me chame assim − ralhou, considerando um disparate que ele tivesse coragem de lhe dirigir a palavra, quem dirá chamá-la pelo primeiro nome! − Acaso dei a entender que teria liberdade para isso, Vossa Alteza Imperial?
Sales abriu a boca, mas se conteve por um segundo, antes de responder:
− Esse título não soa bem na sua boca, Vossa Alteza Real. Mas farei como quiser.
Ele tinha razão. Parecia ridículo o modo como se dirigiram um ao outro, principalmente na situação em que estavam. Eram praticamente cunhados. Mesmo que, segundo os planos dela, isso não fosse durar muito tempo.
− Diga-me de uma vez o que quer, Sales − resmungou, dando-se temporariamente por vencida. − Eu realmente preciso descansar.
− Eu já disse – seu rosto era inexpressivo, contudo pareceu decifrar a expressão confusa do dela, no que se pôs a explicar: − Perdoe-me por ter dito palavras tão cruéis e pelas coisas que insinuei sobre você. Admito que algumas foram intencionais, entretanto, a partir de certo momento, não consegui me fazer entender. Posso ter sido mal interpretado, ainda assim insisto que me perdoe. Tenho me sentido péssimo desde aquela noite.
Ela piscou os olhos, desacreditada. Estava desarmada. Podia odiar um Sales que zombava dela, de seu irmão ou de seu país. Mas não era tão simples, por assim dizer, odiar um homem tão imponente que se demonstrava arrependido e, para completar, perdia perdão por tê-la magoado.
O problema era que ela estava decidida a odiá-lo e, às vezes, é infinitamente mais cômodo distorcer os fatos do que admitir que possa estar errada sobre eles.
− Então esta é a questão? − perguntou, fazendo com que ele a encarasse, confuso. − É isso que você deseja? Que eu te perdoe para que você se sinta melhor?
De repente ela se deu conta de que foi exatamente o que fizera com Roque, minutos atrás. Perdoara-o pelo constrangimento que lhe causara, apenas porque sentiu pena dele. Ela queria que Roque se sentisse melhor.
A questão é que Sales não era o irmão, e ele tinha feito muito mais do que escolher as palavras erradas para galanteá-la.
Como quem havia sido pego de surpresa, ele permaneceu mudo diante dessa contestação.
− Pois vou dizer-lhe uma coisa, Vossa Alteza Imperial – a princesa anunciou, com as mãos apoiadas nos quadris. − Não me importam seus sentimentos.
Dessa vez, ele, que cruzava os braços sobre o peito, apenas comprimiu os lábios, confirmando discretamente com a cabeça, como se tivesse captado algum recado, e deu um passo para o lado, liberando a passagem para a porta.
Karen avançou, com pisadas pesadas, entrando em seu quarto e, pela primeira vez em toda sua vida, contrariou os conselhos da mãe, batendo estridentemente uma porta no rosto de alguém.
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