Cinco - O sorriso fácil
Algumas pessoas envergonham-se em expressar ternura.
Julgando ser exagero ou falsidade
Escuta o que eu vou lhe dizer:- Cada um só dá o que tem.
E se há doçuras em você... Deixa escorrer!
Arnalda Rabelo
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Dom Fernão, passando os olhos nos guardas que estavam ao redor, acenou com a cabeça, indicando que estava de acordo. Todos entraram, e Kilian riu-se da memória trágica que lhe veio à mente: o choro da irmã, que ouvira há algumas horas através daquela mesma porta. Eles acabaram de realizar um trabalho vão, o que decidiu ignorar. Tinha problemas para se preocupar, maiores do que fofocas entre guardas e criados.
− Deixe que ele fale, Dom Fernão − Kilian sugeriu, cruzando os braços e se colocando de frente para o príncipe, mantendo alguns metros de distância entre os dois. − Quero ouvir o que pensa o homem que irá casar-se com minha irmã.
− Pois bem, se é o que deseja − o homem soltou em suspiro, gesticulando com irritação.
Sales agradou-se da oportunidade que recebera com, mal podia acreditar, a aprovação do pai. Ele não iria desperdiçá-la criando expectativas naquele singelo rei. Permaneceu inexpressivo, empenhado em demonstrar que não se importava com a opinião de Kilian a seu respeito, ou com o que quer que pudesse acontecer.
− Não vou mentir, eu estava enganado − soltou com indiferença. − Tive a impressão errada da sua irmã. Ela não parece uma aproveitadora, afinal.
O imperador, que estava sentado, levantou-se imediatamente para calá-lo. Seu irmão meneava a cabeça, escondida pelas mãos, em lamento pelo desastre que previa. Kilian, entretanto, avançou em sua direção para encará-lo ainda mais de perto.
– Repita o que disse.
Um arrepio percorreu o corpo de Karen. Ela sabia que para defendê-la, o irmão não se importaria com quem ele era. O problema era que nenhum daqueles dois pareciam desistir de qualquer coisa sem brigar primeiro. E qualquer briga que surgisse dali, teria a fatalidade de uma guerra. E uma guerra contra o império de Lima dizimaria seu país antes mesmo de começar. Imediatamente, ela começou a se arrepender por não ter aceitado a proposta de uma vez.
Ciente da superioridade de sua nação a Vera Cruz, Sales debochou da ameaça de Kilian. Com um sorriso irônico, desviou-se do olhar inquisitivo do rei, e acabou despejando sobre ele o que pensava de verdade.
− Não me leve a mal, meu caro. Você deve entender tão bem quanto eu como são essas coisas. Existem mulheres que dariam tudo por uma coroa.
− Ela já tem uma coroa − defendeu o rei, entre os dentes cerrados, enquanto o fuzilava com os olhos.
− De fato. Embora não como a minha − deixou escapar, arrependendo-se imediatamente por ter sido tão sincero. Virando-se para Karen, tentou inutilmente soar menos desagradável. − Mas não é nada pessoal, princesa. Eu apenas... sempre tive dificuldade de confiar em pessoas de riso fácil.
− Basta! − o pai interpelou enquanto uma veia assustadora surgia em sua testa. − O que pensa que está fazendo ao agir dessa maneira? Será possível que a essa altura da sua vida, você ainda seja incapaz de assumir um compromisso?
− O senhor já me comprometeu, meu pai. − Era terrível para ele que, por mais que tentasse, não conseguisse se fazer entender. − Infelizmente não percebe que eu não preciso de outra pessoa em minha vida, quando já sou um homem completo.
O imperador não pareceu se comover.
− Comple... − interrompeu-se para soltar uma risada desacreditada. − Completo? Você é um homem completo?
− Sim. Sou completo − reafirmou, sério. Sua convicção fez Karen enrugar a testa, perdida em seus pensamentos. Ela ficou desconfiada daquela escolha de palavras e curiosa para saber o significado que elas tinham. O que ele queria dizer com "ser completo"?
− Acha que me fará voltar atrás em minha palavra? Confiando você ou não, esse casamento acontecerá.
− Eu não disse o contrário − afirmou, simplesmente.
Estava ciente de que tudo o que saísse de sua boca agora, inevitavelmente, soaria como soberba ou desprezo.
− Isso está fora de questão − Kilian interveio, pensativo, dando-se conta de que não poderia permitir que aquilo fosse adiante.
Como alguém poderia criticar o sorriso de sua irmã, quando essa sempre fora, de longe, sua maior qualidade?
Karen era radiante, desde que nasceu. Foi o sorriso dela que o capacitou a superar a ausência precoce do pai, com quem passava a maior parte do tempo. Foi por aquele sorriso que encontrou forças para passar de príncipe regente a rei, imediatamente após completar a maioridade.
Não podia suportar a ideia de que Karen viveria com alguém que iria reprimi-la ou tirar-lhe o sorriso.
− O quê? − perguntaram Karen e Dom Fernão, em uníssono.
− Isso não vai acontecer − repetiu, e depois dirigiu-se a irmã, convicto. − Você não irá se casar com esse sujeito.
− Kilian − Karen interveio assustada. Seus olhos vagavam entre o irmão e o pai de Sales e, embora fosse isso o que queria desde o começo, sentiu medo. − Você tem... tem certeza?
Roque levantou-se, pronunciando-se pela primeira vez.
− Não pode estar falando sério. Não fica bem para um rei mudar de ideia.
Encarando-o, o rei lhe perguntou:
− Você tem irmãs, Vossa Alteza Imperial?
− Não − respondeu, baixando os olhos.
− Kilian − Dom Fernão suspirou, controlando-se. − Você sabe que não posso aceitar isso.
− Sei o que acha que deve ao meu pai. Mas isto está fora de questão − repetiu, apontando com o indicador, que vagava entre Karen e Sales.
− E quanto ao que deve a mim?
Agora ele se sentiu desafiado. Kilian não se esquecera que o acordo sobre o casamento de Karen fora feito na época em que Lima disponibilizou para Vera Cruz a tecnologia da vacina contra a Peste o que, muito provavelmente, salvou o país da devastação.
Apesar disso, não fazia sentido para ele que o imperador fizesse tanta questão de um casamento entre o herdeiro e sua irmã, tendo em vista que essa união seria, política ou economicamente, muito mais benéfica para a família Orleans do que a para a De Ravin.
− Não há vantagem para você nisso − justificou, tentando dissuadi-lo.
− Kilian, não seja moleque − ralhou o imperador, entredentes, já exaltado − Eu tenho uma dívida com seu pai. Uma dívida de vida.
− E pretende pagá-la condenando sua única filha a ser eternamente infeliz?
− Por Deus, eles são jovens! Vão mudar de ideia!
− Perdoe-me, Dom Fernão, mas não vejo como isso pode dar certo − lamentou-se o jovem, começando a pensar nos problemas que essa decisão lhe traria.
− Papai − Roque interviu, para a surpresa de todos. Seus olhos estavam atônitos, como se ele considerasse um pensamento brilhante. − Se me permite sugerir, por que não mantemos de pé, como já estava combinado, a recepção que faríamos à família real de Vera Cruz em nossa casa? Durante esses dias, peço permissão para cortejar a princesa Karen. Se ao final da viagem nos parecer bem, e se ela aceitar, que se case comigo.
Todos o encararam com estranheza, principalmente pela facilidade com que aquelas palavras surgiram de sua boca. Não parecia uma ideia nova, e tampouco pareceu agradar ao pai.
− Você, Roque? Esse não era o plano... – ponderava. − Não vejo cabimento. Você mal tem idade para se casar.
− Papai − ele insistiu, sereno. − Não é de hoje que tenho apreço pela princesa. Sempre nos demos bem, temos muito em comum e nossa idade é praticamente a mesma. Menos de dois anos me separam de meu irmão e não acho que esteja menos apto para me casar do que ele − argumentou, como se a justificativa do pai fosse absurda. − Não selaríamos a união de imediato, assim como os dois também não fariam. Além disso, acredito que Karen tenha simpatia por mim.
Todos os rostos do recinto se viraram para a princesa, de repente, buscando uma confirmação. Ela engoliu em seco. Não fazia mais do que alguns minutos que se livrara de um casamento indesejado e já havia encontrado outro. Não era isso que esperava para seu tão sonhado baile de quinze anos, mas não interviria dessa vez.
Se a união sugerida por Roque era facultativa, ainda teria algumas semanas para recusar. Deu apenas um meio sorriso, contido, receosa de que ele parecesse fácil.
Kilian, no fundo, ficou admirado com a atitude do príncipe, e o imperador, embora insatisfeito, também acabou conformando-se.
Ela estava contrariada só pelo fato de ter que se submeter ao cortejo de Roque, mas também sabia o que era sofrer pressão por parte de Dom Fernão. Ele era intimidante e não os deu outra escolha senão concordar com alguma daquelas propostas. A segunda, sem dúvidas, era a que ela menos desprezava.
Após selarem um novo acordo, todos deixaram a biblioteca e, como se tudo não estivesse ruim o bastante, Karen precisou manter-se com a aparência feliz pelo resto do baile, até que os demais convidados fossem embora. Aqueles se tornaram, sem dúvidas, alguns dos sorrisos mais difíceis que ela já fora obrigada a sustentar na vida.
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