Cap-4
Eu acho que eu nunca conheci
Alguém como você —Run Cried The Crawling , Agnes Obel
Jonah:
— Eu...eu — ela gaguejou, nervosa.
— Você?
Ela clareou a garganta e apertou os lábios como se estivesse lutando contra as palavras.
Ela finalmente disse— Estava com sede.
Levantei as sobrancelhas — Vai se acostumando.
Ela me fitou, com os olhos cautelosos.
— Você recebe comida aqui? Quer dizer, ele te dá comida não é? — ela disse "ele" com dificuldade.
Dei de ombros.
—As vezes.
— As vezes.— ela repetiu, desapontada.
Não iria dizer a ela que provavelmente ele traria mais comida agora que ela estava aqui e ele queria seguir com o plano dele, por quê nem eu mesmo sabia qual era.
— Agora que eu acordei... bem, deve existir algo que você tenha tentado fazer para... — a voz dela sumiu no ar e ela me olhava enrugando a testa.
— Para fugir?
Ela acenou, sombria.
— Sim, eu já tentei várias coisas. O filho da puta garantiu que eu não consiga.
— Não há ninguém que procure por você? Que vá sentir sua falta?
Ela arregalou os olhos, e fechou a boca com espanto. Ela devia pensar que havia me ofendido. De onde veio aquele recém temor?
— Não— respondi, e era parte verdade.
Fora a minha mãe, não havia ninguém que eu tivesse contato. Tinha o Jack, mas ele já estava na faculdade e nunca fomos realmente próximos. Sem amigos, nunca vi necessidade deles. E se eu matasse algum quando eles me irritassem? Não era uma boa ideia.
— E você? — rebati, dando uma olhada nela novamente. Ela parecia uma garota que teria todos nas suas mãos. Um pouco estranha, mas isso não devia ser um fator tão determinante na personalidade dela. Ela podia se encaixar.
Ela balançou a cabeça— Meus pais morreram. Eu não tenho ninguém.
Interessante.
— Sorte a sua. — brinquei, amargo.
Mas não falei totalmente sério. Eu não desejava a morte da minha mãe, apenas a do meu pai.
Ela não parecia compartilhar da minha opinião— Então é isso. Ficar preso aqui para sempre. Sem te matar, sem nos matar — ela corrigiu— nos dando comida "as vezes"...tem que haver algo mais.
Era exatamente isso que eu estava pensando.
O fato dela que ela percebeu isso tão racionalmente fez com que eu a visse com um pouco mais de...afinidade.
Quem era aquela garota? Por que ela estava aqui falando calmamente sobre ser sequestrada,e não perdendo a cabeça?
Que outras coisas mais que eu falasse, ela poderia reagir assim?
— Me fale sobre você.
Ela fez uma pequena careta.
— Sobre mim?
Acenei— Você é a única coisa que não faz sentido. Eu, ele tem um "motivo" tecnicamente falando. Ele me odeia, mas e você? Por que, dentre tantas pessoas no mundo, ele escolheria voce?
— Eu não faço ideia, juro. — ela disse, parecendo sincera.
Tinha que haver algum motivo.
— O que você fez ontem, no dia que ele te trouxe para cá?
Ela desviou o olhar por poucos segundos.
— Eu estava fugindo.
Novamente, não era o que eu esperava.
— Fugindo, do que?
Do que uma garota como ela fugiria? Problemas em casa? Namorado ciumento?
Um marido?
Não, não podia ser isso. Ela não tinha idade para morar com um cara. Mas desde quando a idade impedia alguém? Ela podia ser casada, podia ter uma família própria.
Algo dentro de mim não gostava dessa ideia.
Por quê? Qual o problema se ela fosse casada? Me recriminei.
Não me importava em nada, conclui. Eu apenas queria saber mais sobre ela para entender o porquê ela estava aqui e assim poderia escapar.
Mas ela não estava abrindo a boca. Ela ficou em silêncio, com uma cara suspeita para caralho.
— É melhor você começar a falar. — não era uma ameaça, era só um aviso. De uma pessoa para outra.
Ela suspirou, derrotada— Da minha casa. Da minha vida.
Uma resposta vaga. Justo naquela hora, ela iria ser vaga.
As pessoas não adoravam falar de seus problemas, apenas esperando uma oportunidade para dizer todo o mal que fizeram a elas?
— Você não disse que seus pais morrerem? — Empurrei mais.
Ela desviou o olhar. De novo. Ela podia ser diferente que a maioria das pessoas, mas era muito fácil de ler.
— Eu morava com meu tio, ele ficou com a minha guarda após a morte dos meus pais.
— Pode ser que ele vá te procurar então.
Seu titio pode estar te procurando por toda a cidade agora mesmo.
— Eu duvido bastante disso... — ela respondeu ainda olhando em direção aos seus sapatos.
Certo. Eu podia trabalhar com aquilo por enquanto.
— Vamos recapitular. Você é uma órfã que mora com o tio tão malvado que fez você fugir de casa, mas no caminho você se deu de cara com o meu pai?
— Sim — ela concordou.
Que má sorte, garota.
—Interessante.
Finalmente uma pista. Não poderia ser apenas uma coincidência.
— Porque isso seria interessante? — ela perguntou, com o fio de voz.
A minha boca girou em um meio sorriso.
— Por que a minha mãe também era uma órfã.
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— Sua mãe? — ela repetiu, metade surpresa e metade sem entender porquê isso era relevante.
Comecei a andar sobre o pequeno espaço, batendo os dedos nos lábios enquanto pensava.
Primeiro ele me prendeu aqui, depois jogou duas garotas nesse buraco. Mas elas não eram do jeito que ele pensava. Eram como qualquer outras jovens seriam, eram assustadas, eram mimadas, eram amadas.
Até que ele conheceu aquela garota... aquela...
— Qual seu nome ?— Perguntei apressadamente.
— Daisy.
Aquela Daisy.
Testei o nome em minha mente. Ela parecia com uma Daisy. Um nome pequeno, igual ela.
Daisy, eu, presos em um sótão.
Ele achava que era tão esperto. Isso era completamente patético.
De onde ele tirou esse plano, de algum filme de romance tosco?
Eu havia te superestimado pai. Todo esse tempo eu achando que ele tinha um grande objetivo mas não era nada além disso.
Ele queria que eu me apaixonasse pela garota, uma garota órfã como minha mãe e o que? Magicamente ficaria curado?
Magicamente deixasse de matar pessoas?
Pela primeira vez na vida, eu estava rindo.
Mais que isso, eu estava gargalhando.
Meus ombros chocalhavam e minha barriga doía tamanha a intensidade da risada, e eu não conseguia parar.
Todo esse tempo, ele era o louco.
Ele era completamente e definitivamente louco.
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Daisy
Merda, merda, merda.
Me afastei alguns passos para trás, surpreendida e assustada com o ataque de risos.
Eu reconhecia esse sentimento. Quando todo seu mundo virava de cabeça para baixo, e tudo que restava era rir da situação, de si mesmo, e quando isso acontecia normalmente não era um bom sinal.
Isso aconteceu comigo uma vez após a morte dos meus pais.Quando eu descobri que o nome do meu tio estava em um testamento dos meus para caso algo acontecesse com eles, meu tio teria minha guarda e cuidaria de mim.
Meus pais confiavam nele a esse ponto, e eles não poderiam estar mais enganados.
Se eles soubessem...
Me preocupei com o que ele poderia estar pensando. E se ele pirasse de verdade dessa vez?
Faça ele gostar de você...
--Ei, você está bem? --sussurei. Droga, eu não fazia a mínima ideia de como me aproximar dele, ou de qualquer pessoa.
Ele continuava a rir sem descanso, o som rouco e desajeitado como se ele não estivesse acostumado a fazer aquilo.
Não sei o que fazer. Meu pulso acelerou com uma mistura de ansiedade e medo e eu mordi o interior da boca, me sentindo perdida.
Como sempre fazia para me tirar de situações em que eu não queria estar, trouxe de volta a memória mais feliz que eu tinha. Eu não estava mais aqui, nesse lugar horrível e com um estranho.
Eu estava com minha mãe de novo, e segura.
Era de manhã e fazia sol.
Minha mãe estava passando protetor em meus braços e nariz, e ela usava um chapéu de palha grande e óculos de sol preto que a deixava parecendo uma mulher de revista chique.
Haviamos ido só ela e eu, já que o papai estava trabalhando aquela hora.
A praia estava linda e com poucas pessoas.
Eu podia ver quase claramente, de tão fresca que era a imagem na minha mente.
Eu não tinha esquecido nada daquele dia
E o repetia milhares de vezes em minha cabeça.
O Sol, a maresia, as frutinhas que mamãe havia levado na bolsa.
Morangos e kiwi.
Isso me deu fome e me trouxe a realidade de que eu estava sem comida a quase um dia inteiro.
E com essa percepção a praia se apagou um pouco, dando lugar a paredes escuras e um ambiente fechado e sem luz.
Não, não.
Eu precisava voltar.
As risadas ainda estavam presentes, mas menores. Eu não sabia se era por que ele estava rindo menos ou por que o som do mar estava abafando elas.
Eu estou na praia, não aqui. Eu quero voltar, por favor.
Repeti as palavras para me concentrar, uma e outra vez mas eu não estava ansiosa o bastante para conseguir atraí-las. Havia um motivo de como eu conseguia fazer isso, eu percebi a muito tempo atras.
Era só quando meus sentidos estavam desesperados. Era como um botão vermelho de socorro que eu apertava quando estava sem controle. Quando eu me acalmava novamente, as memórias iam embora, como poeira sobre o vento.
Minha visão voltou para a realidade, e eu respirei decepcionada.
Fui recepcionada por dois olhos sérios e sem sorriso,daquela vez.
-- O quê você estava falando? — ele perguntou, curioso.
--O quê? -- respondi estupidamente.
-- Ainda agora. Você falou a mesma coisa. Sobre estar em uma praia.
Oh, que embaraçoso. Mas não era a primeira vez que alguém me perguntava isso. Algumas vezes eu falava em vez de pensar, tanto em sala de aula quando eu ainda era uma estudante ou quando estava em casa. Meu tio tentou alegar que eu era maluca graças a isso e quase me tirou da escola,para meu terror, já que eu ir a escola era o unico motivo dele não... pois eu havia jurado sobre a vida dos meus pais que eu contaria aos professores, contaria ao motorista do onibus, contaria a qualquer pessoa a caminho do colegio mesmo que não acreditassem em mim, como sempre... e isso me manteve a salvo, ao menos naquele sentido.
Mas eu ainda recebia outras formas de punição como dentadas e chutes, privação de comida e liberdade. Depois de um tempo, ele não se importava mais de eu "ir para a praia" na minha cabeça. Acho que ele preferia, até.
-- É só algo que eu faço. Eu sinto muito.
As sobrancelhas deles se juntaram-- Eu não entendi.
Fiquei em silêncio, desconfortável. Não era um assunto que eu estava afim de entrar, e eu queria que ele deixasse isso pra lá.
-- Se vamos ficar aqui, a gente deveria saber um pouco um sobre o outro.
Bufei, sem poder me conter.
-- O quê?
Ele levantou a sobrancelha, sem parecer bravo com minha atitude.
Bem, se era assim que ele queria jogar...
-- Eu não sei nada sobre você. Eu não sei nem seu nome. — pontuei, com um sorriso desdenhoso.
Ele estreitou os olhos.
-- Meu nome é Jonah.
Fez- se silêncio por alguns segundos, enquanto eu tentava digerir essa informação.
Primeiro, por quão facilmente ele concordou com o que eu disse, e segundo porquê eu não fazia ideia se ele estava falando a verdade ou não.
-- Sério? — perguntei, desconfiada.
Ele apenas me olhou e com o cinismo evidente estampado em meu rosto, ele cruzou os braços,
sua mandíbula apertada.
-- Você não parece um Jonah, só isso — me expliquei, na defensiva.
Sua mandíbula afrouxou e ele inclinou a cabeça, com os olhos brincalhões-- Esperava um nome mais assustador?
-- Acho que sim. Desculpe— admiti, com um meio sorriso.
-- Tanto faz. Agora você sabe meu nome, vai dizer o que era aquela porcaria sobre praia?
Esfreguei a nuca, me sentindo desconfortável.
-- Qual é,Daisy. Temos um trato ou não?
Se teríamos um trato? Eu não sabia.
Não queria revelar nada sobre mim, toda minha vida era vergonhosa demais para isso
mas a possibilidade de saber mais sobre ele e como ele estava naquela situação... poderia valer a pena arriscar. Afinal, o que mais me resta para fazer?
-- Cinco perguntas -- eu declarei, tentando parecer convincente.
-- An? — ele murmurou.
-- Você vai ficar me devendo cinco perguntas se eu te contar.
Era arriscado. Mas novamente, eu não tinha muito o que perder.
Ele não pareceu estar de acordo com a ideia
-- Não vale,você pode dizer qualquer merda e eu vou ter te dado cinco perguntas por nada.
-- E você só me disse seu nome!Isso não vale muito, eu te disse meu nome ainda pouco.
Também cruzei os braços, imitando ele.
Não sabia por quê eu estava fazendo isso.
Não éramos amigos, nem mesmo colegas, mas... eu estava me divertindo. Sim, eu estava me divertindo um pouquinho.
Se ele pensava que eu iria fazer tudo que ele pedia, ia ver que estava enganado.
Afinal de contas; já estávamos presos aqui mesmo.
Ele não respondeu por um tempo e eu até pensei que ele iria discordar e a minha recém diversão iria acabar, mas permaneci firme e com a expressão determinada.
-- Cinco perguntas cada. Eu também te perguntarei cinco coisas.
Uh.
-- Ok.
Quão ruim poderia ser? Eu não estava pensando demais, já que eu tinha a promessa da possibilidade de cinco perguntas feitas a ele, na minha frente.
-- Cinco perguntas e é bom você não mentir.- ele enrugou o nariz querendo parecer sério, mas eu podia notar uma centelha de divertimento em seus olhos. Ele era humano como qualquer pessoa,afinal.
-- O quê, você tem um detector de mentiras aqui por acaso?
-- Não, e essa foi sua primeira pergunta, agora te sobram quatro.
Minha boca se abriu e eu arregalei os olhos-- Isso não é justo!
Um canto da boca dele se elevou-- Foi você que perguntou, não eu. Agora, minha primeira pergunta -- ele se abaixou até o chão e se sentou, encostado na parede de gesso-- por quê você fala que está numa praia quando está nervosa?
Olhei para os lados discretamente pensando se eu deveria sentar também, mas se eu fizesse isso não haveria onde me escorar e não seria confortavel. O único lugar era ao lado dele ou dar vários passos para trás e ir até a outra parede traseira.
As duas opções pareciam exageradas, então decidi permanecer de pé.
-- Quem disse que eu estava nervosa?-- arregalei os olhos —não,não, retiro o que eu disse.Foi uma pergunta aleatoria, não para você responder!
Ele levantou as palmas das mãos, em rendição. --Eu não disse nada.
Estreitei os olhos e desviei o olhar com vergonha da minha explosão-- Otimo. Respondendo sua pergunta...
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Jonah
— O motivo de eu falar isso é... que me acalma.
Esperei pacientemente.
— Você estava certo quando eu hmm — ela clareou a garganta — estou nervosa, eu lembro de quando eu fui na praia nesse dia específico, e assim eu fico melhor.
— Você fica melhor, como?
Ela levantou as sobrancelhas— isso conta como outra pergunta?
— Não. É apenas uma continuação da pergunta principal. Eu ainda não entendi completamente o que você me contou, então eu posso perguntar mais até que esse assunto esteja esclarecido.
Ela ficou boquiaberta— Uau.
— O quê?
— Você falou bastante agora. Aposto que é o máximo que você já falou de uma vez desde que chegou aqui.
Correta.
— Tá tentando me distrair? — observei, e o rosto dela ficou vermelho.
— Ok, desculpe. Onde eu estava? Ficar melhor.
Hmmm, não sei, eu apenas me sinto melhor.
Se eu estava me sentindo mal, você sabe, pensando que ia perder a cabeça, eu penso nessa memória e... tudo vai embora. É como se eu voltasse a ser eu. E aí eu me controlo.
Eu estava sem palavras para responder.
Essa garota era... fascinante.
Meus braços formigavam, e eu não havia percebido que estava apertando os braços cruzados forte demais sobre o meu peito enquanto ouvia, mas continuei imóvel.
Que...porra.
Ela descreveu, de uma maneira mais simples e menos sádica é lógico, como eu me sentia quando estava prestes a perder o controle e matar alguém.
Como se estivesse perdendo a cabeça e depois sobre voltar a ser si mesma.
O que mais existia nessa garota que eu precisava saber?
Ela ajustou o peso do corpo sobre um pé e outro, e me olhou inquieta.
Eu devia estar encarando ela de uma maneira que a deixou desconfortável com a sua resposta sincera.
Eu ainda tinha que guardar e processar essas informações, antes de formular uma frase coerente.
— Sua vez, então.— murmurei, agitando a cabeça de leve. Soltei o aperto mortal que estava fazendo em minhas próprias entranhas, mas de uma maneira em que ela não notasse essa ação.
Uma linha apareceu entre as sobrancelhas dela, enquanto ela pensava no que perguntar.
Comecei a perceber o que eu tinha feito.
Eu havia concordado em não apenas perguntar cinco coisas mas também responder.
Procurei dentro de mim por alguma inquietação ou ao menos um sinal de auto preservação que eu poderia sentir mas... não encontrei.
O que ela iria fazer? Contar a alguém?
Eu não havia por que me esconder. Eu não estava me mantendo abaixo do radar para me safar dele. Ele havia trazido essa garota até aqui, ele havia sequestrado ela.
Talvez ele não ficasse contente se eu contasse a ela a verdade...
No passado, isso poderia me impedir de agir.
Eu não falaria nada, por causa dele.
Auto preservação.
Mas agora eu não era mais o garoto que queria agradar ele em tudo não é? Tudo havia ido para a merda e eu não estava mais procurando pela aprovação dele.
Lembrando do meu novo sentido de vida que era fazer ele se sentir o mais miserável possível, percebi que mal podia esperar por qualquer pergunta que ela fizesse.
Esse canarinho estava afim de cantar o dia inteiro.
— Me pergunte o que for, Daisy. Eu irei responder tudo que você quiser saber.
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