X.1. Preparativos de viagem
Entrada no meu diário, data: desconhecida, estou noutra dimensão
Nas oficinas da Capsule Corporation o zumbido das máquinas, dos robots e dos computadores permanentemente ligados enjoava-me. Impedia-me também de me concentrar no que Bulma estava a explicar de uma maneira tão animada, o funcionamento daquela máquina esquisita, preta, amarela e azul, de linhas aerodinâmicas. Entre os dois motores tinha uma cabina entalada com uma cadeira revestida de couro vermelho, um painel de comandos muito simples e fácil de controlar, dizia-me ela. Apesar de me esforçar, não queria realmente escutar as explicações de Bulma sobre o funcionamento da máquina das dimensões que me iria transportar de volta à Dimensão Real.
Iria regressar a casa e sentia-me a morrer.
- Com este botão grande amarelo ligas o painel e depois o computador de bordo faz tudo. Calcula as coordenadas, analisa os níveis de combustível e regula a potência dos motores. Não tens de te preocupar com nada. Como a máquina só possibilita uma única viagem, julguei que não seria necessário o piloto tomar a decisão que um simples computador, devidamente programado, poderia tomar mais eficientemente. Assim, evitamos as surpresas a meio do trajeto... O que acabaria por ser complicado, dada a irreversibilidade da viagem.
Bulma carregou em alguns botões rapidamente e um pequeno monitor verde acendeu-se onde correram algarismos aleatórios até se fixarem num número que eu não decifrei.
- Aqui está o temporizador da máquina – apresentou ela. – Marca o tempo, até aos minutos. Não o consegui fazer mais preciso. Vais necessitar dele para entrares na tua dimensão no tempo certo.
Tentei parecer interessada, afinal a ideia de ter vindo conhecer o funcionamento da máquina tinha sido minha.
Despertara naquela manhã com um sorriso, sentindo-me fresca, saudável, relaxada, completa. Tinha dormido durante três dias seguidos para recuperar do carrossel de emoções chamado Templo da Lua e descobrira admirada que salvar o mundo podia ser bastante cansativo. Estava feliz, até me lembrar da segunda parte do meu destino.
- Como o temporizador já estava construído e a funcionar na Dimensão Real, gravou a coordenada temporal exata do dia em que saímos dessa dimensão – continuou Bulma. - O que significa que não tens de te preocupar com todos os dias que passaste aqui na Dimensão Z, que significaram meses na Dimensão Real. Vais regressar no mesmo dia da nossa partida, que te arrastou connosco, com a diferença de alguns segundos, para diante ou para trás. Será como se nunca tivesses saído da tua dimensão. Esta máquina é também, e um pouco à sua maneira, uma máquina do tempo.
Tomara a decisão de partir ainda de cabeça no travesseiro e convencera-me que fazia o mais acertado. Seria o melhor para mim, para todos. Tentara convencer Trunks, mas ele não mordera o engodo. Quando lhe contara que iria pedir a Bulma que preparasse a máquina das dimensões para o dia seguinte, voltara-me as costas e deixara-me abandonada no corredor da Capsule Corporation sem uma palavra. Teria preferido um escândalo, um gesto desesperado, mesmo uma bofetada. A indiferença dele acabou por ser aviltante e ajudara a reforçar a minha decisão, envolvendo-a em duro cimento inquebrável.
Se tivesse havido uma réstia de dúvida, Trunks tinha acabado com ela.
- As coordenadas temporais são fixas, as espaciais também – acrescentou Bulma. – Como te disse, o computador de bordo irá tratar de tudo. Sentas-te aqui e carregas neste botão do painel de comandos, mais nada. Quando chegares à tua dimensão, não sei o que poderá acontecer com a máquina, pelo que o melhor será abandoná-la rapidamente.
- Poderá desintegrar-se?
- Não sei. Não posso fazer nenhum teste, pelo que desconheço como será o seu comportamento ao regressar ao mundo físico da Dimensão Real. Mas se já fez uma viagem interdimensional sem problemas, acredito que a segunda viagem também ocorrerá sem problemas.
- Mas da primeira vez não tinha ninguém lá dentro.
- O computador de bordo está preparado para inserir a variável do passageiro na equação e os cálculos não irão falhar. Além disso, conto monitorizar a viagem desde a partida até à chegada.
- Se alguma coisa correr mal, poderás intervir?
- Se com isso queres dizer abortar a viagem, a resposta é negativa. A viagem não poderá ser interrompida. Mas posso corrigir algum cálculo que me pareça menos correto e que ponha em perigo o sucesso da experiência.
- Uma experiência...
- Sei que não é agradável de ouvir, mas não tenho outra forma de colocar a questão. Como te disse, não fiz qualquer teste e a primeira viagem do protótipo será também a última, pelo que o projeto fica encerrado – concluiu num tom analítico que, curiosamente, me persuadiu.
As explicações terminaram.
- Wakarimasu, Bulma-san.
Ela observou-me.
- Não precisas ir embora já amanhã. Toynara disse que podias ficar connosco durante um ano.
Mordi o lábio inferior, escapando ao contacto visual dela.
- Se ficar mais tempo... poderá tornar-se mais doloroso ir embora.
- Amanhã temos a festa na Capsule Corporation, para comemorar o fim do feiticeiro e o regresso da paz. Poderias esperar para depois da festa, digo eu... Virão todos os nossos amigos, será Chaozu quem irá preparar o banquete. Há muito tempo que não dava uma festa desta magnitude na minha casa. Vai ser animado.
- E eu vou estragar a animação.
- Não é isso, querida. - Alcançou o maço de tabaco e retirou um cigarro que prendeu entre os dedos da mão direita. – Seria diferente se tu também participasses na celebração. Afinal, Zephir foi destruído por ti e tu acabaste por ter um papel ativo nesta história toda.
- Vai ser uma despedida em grande – disse eu forçando um sorriso. - Terei todos os amigos reunidos para me dizerem adeus.
Bulma acendeu o cigarro, soprou o fumo para o lado.
- Estás decidida... Não vou conseguir fazer-te mudar de ideias, pois não?
Neguei com a cabeça. Não percebia se queria que eu ficasse por causa da festa, se por causa do filho, mas Trunks não devia ter-lhe pedido nada e o cimento endureceu um pouco mais.
Observou-me novamente e depois anuiu com um ligeiro encolher de ombros.
- Está bem. Vou encher a máquina de combustível e prepará-la para a viagem. Fica combinado para amanhã, de manhã. É do teu agrado?
- Hai.
Agradeci a disponibilidade e a atenção dela e saí da oficina. O zumbido persistente desapareceu e senti um ligeiro alívio.
A seguir, fui passear, outra decisão repentina e um pouco ilógica, admitia-o, mas apetecera-me subitamente conhecer West City. A metrópole era gigantesca e não me afastei demasiado dos arredores da Capsule Corporation. Vagueei deslumbrada pelas ruas arrumadas, pelos bairros ordeiros, encontrei um bairro comercial muito colorido, passei pela entrada de um parque de diversões e entrei num jardim imenso com aspeto de bosque citadino. Como as pernas já me doíam sentei-me na relva, debaixo de um conjunto de árvores frondosas que espalhavam uma sombra acolhedora.
Fechei os olhos, respirei fundo, enterrando os dedos na terra. Cheirava a primavera, a desabrochar de coisas novas, a inícios depois de penosos finais. Abri os olhos, o último pensamento a ecoar, um novo início algures, um final ainda por penar, e descobri a cúpula amarela da imponente Capsule Corporation ao fundo, sobressaindo no mar de edifícios alvos e azuis. Como se me chamasse. Seria ali que eu haveria de cumprir a totalidade do meu destino.
- Yo, Ana-san!
A silhueta inconfundível dele recortava-se na contraluz e alegrei-me por tê-lo ali, a quebrar a minha autoimposta solidão.
- Goku. O que fazes por aqui?
- Estou de passagem. Estive a treinar com Vegeta na Câmara de Gravidade e ia agora para casa.
Desviou-se ligeiramente, a claridade do dia iluminou-o e pude comprovar que a alegria despreocupada das suas palavras combinava com um sorriso que lhe enfeitava o rosto.
- E tu, o que é que fazes aqui tão longe de casa?
- Vim dar um passeio.
- Queres que te leve de volta?
- Não é preciso, arigato. Acho que consigo dar com o caminho. Afinal, a Capsule Corporation vê-se bem ao longe. – Dei duas palmadinhas na relva a convidar: – Senta-te comigo, vamos conversar um bocadinho.
Sentou-se. Já não vestia o dogi alaranjado, mas umas calças cinzentas e uma túnica comprida azulão que atava na cintura com um cinto escuro, ligeiramente aberta no peito. Uma indumentária simples. Se tinha estado a treinar, não devia ter deitado uma gota de suor, pois mostrava-se fresco e bem-disposto, com um odor muito próprio e tentador. Corei e, para disfarçar o deslize, disse num fôlego:
- Amanhã temos uma festa.
- Hai. Também virei com a minha família.
- Eh... Mas eu não vou estar... Amanhã regresso à Dimensão Real.
- Honto? Porquê?
Não sabia muito bem como responder a essa dúvida. Era uma decisão cimentada e pronto. Porque era o mais acertado, porque era um novo início depois de um penoso final, porque Toynara tinha dito que era o meu destino. Qualquer coisa serviria, mas ouvi-me dizer:
- É um dia como outro qualquer. Algum dia teria de regressar.
- Então, quer dizer que não vais à festa?
A pergunta genuinamente inocente fez-me sorrir. Ele olhava-me descontraído, com o braço esquerdo assente no joelho fletido.
- Pois... Não, não irei à festa - respondi.
- Oh!... Vai ser uma pena. Vai haver comida muito boa, preparada pelo Chaozu. Haverias de experimentar os cozinhados dele, são uma delícia. A Chi-Chi cozinha melhor que ele, claro... Tenho de dizer isto, senão ela zanga-se comigo, mas também não deixa de ser a verdade e não me importo de o dizer.
- Tu gostas mesmo de comer...
- Hai! – Soltou uma gargalhada, mas ficou sério logo a seguir. – Tu sabes tudo sobre mim, não é?
- Hum-hum...
Olhou para o céu, confessando num murmúrio:
- Isso é tão estranho.
- Também para mim é estranho estar aqui contigo, Goku, quando, na minha dimensão, saíste da mente de um criador que te imaginou, deu vida, uma personalidade, que te apresentou ao mundo como... um desenho.
- Isso só acontece comigo?
- Bem... Não.
- Também te sentes estranha quando estás com Trunks?
Senti a cara avermelhar como um semáforo.
- Quando estou com ele... como?
- Quando estás sentada com ele, assim como estou eu agora contigo.
A inocência dele era deveras desconcertante. A minha boca estava seca, tentei engolir mas não tinha saliva suficiente para o fazer. Respondi a gaguejar:
- No princípio, sim... Era estranho. Mas o toque, esse... sempre foi igual. Habituei-me depois, mas às vezes... ainda me sinto um pouco confusa... Ele tem essa aparência, igual à tua, de desenho... Mas sei que é ele, quando estou a tocá-lo e fecho os olhos. Reconheço-o ao recordar-me como é que era tocar nele na minha dimensão.
Depois achei que estava a responder a algo que não tivera cabimento na pergunta dele. Perguntou-me a seguir:
- Conheces o meu criador?
- Não conheço pessoalmente. Conheço-o por ser alguém famoso. Sou capaz de o apontar numa reportagem de uma revista, por exemplo.
- É famoso por causa de mim?
- Hai. Por causa da... Dimensão Z.
- Achas que ele gostaria de me conhecer?
- Claro! – E sorri a imaginar a possibilidade, a cena. – Eu também gostaria de conhecer o meu criador.
- E tu tens um?
- Se calhar... Quem sabe? Fomos todos criados por alguém, algures, noutra dimensão diferente da nossa. Não foi isso que o Medalhão de Mu nos ensinou, que existem muitas dimensões que podem ser unidas por um deus? Acredito que eu também seja a criação de alguém e que isto de estar aqui não é mais do que um cross-over esquisito, imaginado por outro criador sem pedir licença aos criadores originais.
- Cross-over?
- Quando se misturam heróis de duas histórias diferentes.
- Ah... Tu falas de coisas que não consigo compreender muito bem, Ana-san.
- Beija-me.
Piscou os olhos confuso.
- Ahn?
Sustive a respiração, queria também suster o coração. Mas o que raios tinha eu acabado de lhe pedir?
- Queres um beijo?
Não podia recuar agora, era pior se o fizesse, depois não conseguiria explicar a razão objetiva e lúcida do pedido, pois até nem havia uma razão objetiva e lúcida, era somente um mero capricho, um devaneio embriagado. Tive de lhe responder afirmativamente, mas sem pinga de convicção.
- Hai.
Inclinou-se para mim. Admirei-me.
- Espera aí! Vais beijar-me?
- Hai. Não me pediste para te bei...?
- Baka! – Exclamei zangada e ele recuou. – Mas tu não me podes beijar!
- Ah, não? E porquê?
- Porque... Ora, porque... Acho que tu deves saber, melhor que eu...
- Bem... Tu pediste-me e eu nunca digo que não a...
- Tu fazes tudo o que te pedem?
- Se não me custar muito.
- Nani?!...
- Pediste-me um beijo. Que mal faz um beijo? Normalmente pedem-me para lutar, lutar é bem pior. Se o combate for renhido, posso ficar ferido ou ferir o outro.
Os seus argumentos eram tão simples que me despojaram de qualquer arma que pudesse arremessar para me proteger da minha própria loucura.
- Queres o beijo, ou não?
Agora era ele que insistia em dar-me aquilo que quisera cobrar-lhe. Continuava a não puder recuar, desta vez respondi-lhe mais convicta:
- Hai.
Goku aproximou-se e beijou-me ao de leve na face. Repliquei agastada:
- Não era um beijo desses, Goku!
- Nani? Que beijo é que querias?
Sem recuar, portanto, o que significava que iria seguir-se o ataque impiedoso para evitar a desonra. Humedeci os lábios. Era a maior loucura da minha vida, mas seria memorável. Guardaria aquele momento por toda a eternidade.
Debrucei-me sobre ele. Assustou-se com a excessiva proximidade e tentou afastar-se, mas tinha um tronco de árvore nas costas e acabou encurralado. Colei a minha boca à dele. Descobri que era macia e deliciosa. Goku esbugalhou os olhos, admirado com o meu descaramento.
Separei-me dele. Não quis que o beijo durasse mais que um segundo, não era conveniente. Estava louca, mas continuava sensata.
Encarei-o e não lhe reconheci o olhar intenso, incendiado. Agarrou-me os braços, puxou-me. E fiquei perplexa ao sentir a língua dele penetrar na minha boca à procura da minha língua, para envolvê-la com a doçura da sua saliva. Foi a minha vez de esbugalhar os olhos. Beijava-me lentamente, sensualmente. Derreti-me com a provocação, perdendo-me na sensação daquele beijo tão caloroso. Baixei devagar as pálpebras, acendendo luzes por todo o corpo.
De repente, terminou.
- Era este o beijo que querias?
Perguntava-me com a cabeça ligeiramente inclinada para a esquerda, analisando a minha reação. Mas não havia malícia na voz dele, apenas curiosidade. Sentia os braços dormentes onde ele tinha agarrado, tinha a boca dormente, tudo estupidamente dormente.
Murmurei:
- Hai...
Sem me aperceber do gesto, voltei-lhe as costas. Depois daquilo, era insuportável olhá-lo de frente. Ele encostou-se a mim e as luzes tornaram a acender-se.
- Estás zangada comigo?
Surpreendeu-me com a dúvida. Resolvi ser sincera.
- Não. Estou... envergonhada. Não te devia ter pedido o que pedi.
- Porquê?
- Porque não devia... Não achas?
- Não sei.
Não percebera o vestígio de maldade no que tinha acabado de acontecer. Estava a desarmar-me e a enervar-me. Encostado a mim, devia sentir o meu coração a bater e a perceber o que eu estava a experimentar, mas não alcançava o significado global daquilo. Mesmo depois de sentir a raiva dos super saiya-jin no sangue, continuava a ser o mesmo menino puro que um dia viajara na nuvem kinton...
E, nesse instante, eu sabia que o amava.
- Está a fazer-se tarde, tenho de me ir embora – disse ele, mas não se desencostou.
- Eu também me vou embora...
Daquela dimensão, não do jardim. Não entendeu.
- Chi-Chi está à minha espera para o jantar.
- Jantam cedo...
- Hai. Agora, estou em casa. Por uns tempos. Ubo também está connosco. Estamos como que a fazer as pazes, depois do que aconteceu. Preciso de reconquistar a confiança dele. Disse-me que me tinha perdoado, mas quero ter a certeza que tudo vai voltar a ser como era antes.
- Claro que vai. Afinal, tu devolveste a paz à Terra.
- Com a tua ajuda, Ana-san.
- A paz também vai regressar à tua casa.
- Hai.
Continuava encostado.
Nunca mais teria Son Goku tão perto de mim como naquela ocasião, mesmo que estivéssemos de costas voltadas. Estava quieta a absorver os detalhes inverosímeis, adorando aquele calor, retendo a lembrança daquele calor, de como tinha sido bom sabê-lo real e já pensava como se fosse tudo passado, porque, de facto, sê-lo-ia em breve.
Confessei emocionada:
- Vou ter saudades tuas.
Levantou-se, espreguiçou-se. Desencostava-se, por fim. Espreitei-o, ele espreitou-me. Ofereceu-me um sorriso cristalino, travesso, a troçar daquele momento que tínhamos partilhado antes e depois do beijo. Quando lhe respondi também com um sorriso, as lágrimas que guardava desesperadamente atrás da minha falsa coragem rolaram-me das pestanas, cara abaixo.
- Oh... Não chores. Haveremos de nos voltar a encontrar.
Continuava a sorrir-me, a troçar daquilo tudo. Mesmo a chorar, dei uma risada. O coração doeu-me. Acenou-me uma despedida com dois dedos.
- Djá ná, Ana-san.
Vi-o levantar voo, perder-se entre as nuvens. Limpei a cara.
- Hai, Son Goku. Haveremos de nos voltar a encontrar.
***
Cheguei à Capsule Corporation no final da tarde. Deixara-me ficar no jardim a olhar para o horizonte, a tentar organizar as ideias, a aproveitar o que restava daquele mundo, dedos enfiados na terra, a cheirar a primavera e o tempo passara num instante.
Os corredores da Capsule Corporation estavam desertos. Eu caminhava devagar, tinha a impressão que o relógio corria mais depressa se andasse e haveria de abrandar se a minha velocidade fosse mínima. Se ficasse quieta, sem me mexer, talvez o tempo acabasse mesmo por parar.
Passei por uma porta aberta de onde saía um cone de luz amarela que contrastava com as sombras do corredor e, sem parar, espreitei para dentro daquela sala. Vi Vegeta e Vegeta viu-me. Vestia apenas uns calções pretos. Acabava de sair do duche e limpava o corpo e os cabelos molhados com uma toalha.
- Vem cá! - Chamou.
Parei, hesitei. Não devia, mas entrei na sala. Ao fundo, reconheci a entrada para a Câmara de Gravidade. Vegeta atirava a toalha para cima de um banco.
- Bulma disse-me que vais embora amanhã.
Acenei que sim com a cabeça.
Vegeta aproximou-se repentinamente, obrigou-me a andar alguns passos para trás e encostou-me à parede. Apoiou um braço nesta, mesmo ao pé da minha cara.
- Porquê? - Perguntou-me.
Não gostei daquela atitude.
- Porquê o quê?
- Porque é que queres ir embora amanhã?
- Tenho de regressar à Dimensão Real. Escolhi amanhã, é um dia como outro qualquer.
Dissera algo parecido a Goku e começava a soar-me como a desculpa esfarrapada perfeita.
- Hum...
- Posso sair?
- Pensas que eu não gosto de ti... Ana?
Era a primeira vez que me tratava pelo nome. Estremeci ao ouvi-lo pronunciá-lo. O turbilhão de sentimentos dúbios e loucos que sentira por Goku vieram novamente ao de cima ao estar ali tão perto de Vegeta.
- Gosto de ti. És alguém interessante. Parece que tens medo de tudo, mas não é verdade. Nem tu própria sabes a coragem que tens!...
- Isso é um elogio?
- Se tu não fosses de Trunks...
- E Bulma? - Perguntei escandalizada.
- E se eu não fosse de Bulma...
A conversa estava a ir para caminhos perigosos e eu não sabia o que dizer a seguir para desfazer qualquer possível equívoco. Mas também não queria dizer nada, porque desejava, secretamente, que tudo se embrulhasse e que a cena debaixo da árvore daquela tarde, de algum modo, se repetisse, mas com outro saiya-jin. Estava a ficar zonza e a perder a força nas pernas, pois Vegeta estava tão perto que a ponta do nariz dele roçava na minha.
- Estás a tremer.
- Não estou, não...
Subitamente, rasgou um meio sorriso.
- Queres que eu te beije.
A frase foi como uma chicotada. Sentia um calor muito grande no estômago e era como se ele olhasse para a minha alma, toda nua, e o corpo também, já agora, e corei com a vergonha de me saber assim, tão vulnerável ante ele. Gaguejei:
- Nani?
Farejou-me levemente, mantendo o meio sorriso.
- Queres, sim... Tens aquele cheiro. Já percebo porque é que o Kakaroto ficou tão perturbado.
- Ahn?...
Como sabia ele o que...?
O hálito dele confundia-me de uma maneira mais intensa do que Goku. Ou mesmo, arrisquei pensar por um segundo, do que Trunks. Havia algo de animalesco naquele hálito, o perigo em forma de perfume. Pelo canto do olho via os contornos firmes do músculo do braço dele. Se eu não estivesse tão cozida no fogo lento que nascia do meu estômago, teria levantado os meus braços e segurado na cara dele e arriscado a ousadia de tomar a iniciativa de juntar os nossos hálitos.
De repente, afastou-se, retirando a mão da parede e endireitando as costas.
- Mas não o vou fazer, só porque tu o queres.
- Na... na-nani? – Gaguejei novamente. Soprei: – Eu não quero nada...
- Não costumo andar por aí aos beijos. Prefiro um bom combate.
Afastou-se, encaminhou-se para a Câmara de Gravidade. Olhou-me de lado, a sorrir perverso:
- Agora vai-te!
Ainda sentia o hálito dele naquela ordem fria que não penetrara no calor do meu corpo em rebuliço. Enxotava-me sem cerimónias. Pestanejei para despertar, estava mole como um trapo.
Vegeta completou no mesmo tom de despeito:
- Trunks deve estar à tua espera para se despedir de ti. Na cama. Terás dele todos os beijos que precisas para acalmar esse cheiro. E até poderás fechar os olhos e imaginar que sou eu que te estou a beijar.
Aquela conclusão deixou-me estarrecida. Mais desagradável que aquilo não podia ser. Que imbecil! Mas por Vegeta sentia uma admiração muito especial. Ele era o saiya-jin que todos gostavam de odiar. Eu também...
- Odeio-te, Vegeta! Com todas as minhas forças!
- Ah... Ainda bem. Pensava que havia aqui algum mal-entendido.
- E também te adoro.
Vegeta parou. Tinha uma perna dentro da Câmara de Gravidade, com a mão segurava a pesada porta blindada que fechava aquele compartimento onde se treinava todos os dias. Parou, mas não se voltou para mim.
- Hai. É verdade... Não me importa o que possas pensar de mim, já que eu e o teu filho... Bem, sentiste um cheiro qualquer, não foi? Sei lá, pode até ser verdade! Vocês, saiya-jin, também devem ter um qualquer cheiro especial que me deixa completamente fora de mim. Não me importa dizer-te isto. Amanhã vou-me embora e nunca mais voltarei. Posso dizer-te tudo, tudo... Mesmo que me mates depois de ouvires, não me importo. Morrer será melhor do que ir-me embora!
Solucei, a voz quebrou-se-me. Baixei a cabeça, duas lágrimas pingaram no chão.
- Sempre... que aparecias, arrebatavas as cenas. O grande príncipe dos saiya-jin que nunca se vergou... Que nunca perdeu aquele seu carácter tão único. O teu orgulho, tão excessivo e tão monstruoso, era palpável, mesmo que fosses apenas um desenho animado para todos nós, do outro lado de um ecrã. Sentíamos o teu coração duro, a tua intransigência, a tua maldade e arrepiávamo-nos por gostarmos de tudo isso. Admiro-te, Vegeta. Amanhã deixo a Dimensão Z e quero... Quero que saibas que, sem ti, a Dimensão Z perdia metade da piada. Chorei de todas as vezes que morreste. Rezei pelo teu regresso. Tu e Son Goku são os pilares deste mundo... Kuso! Eu adoro-te, Vegeta!
Sei que se voltou para mim, mas saí esbaforida pela porta fora. Corri pelo corredor a chorar, punhos apertados, olhos fechados. Os meus pés tropeçaram num dos robots que monitorizavam o corredor, mas não parei. Corri como uma doida.
Chorava de culpa. Não compreendia as minhas atitudes das últimas horas. Não me reconhecia. Portava-me como um condenado à morte a quem todos os devaneios são possíveis. Tinha tomado a decisão e agora, em face das consequências, vacilava indecentemente, agarrava-me a qualquer escolho para escapar do naufrágio, quando tinha resolvido não me salvar.
Entrei no meu quarto. Estranhei porque pensei que Trunks estivesse ali, à minha espera, tal como Vegeta me havia feito crer. Sentei-me na cama, limpei as lágrimas.
Inexplicavelmente, procurei pelo fantasma de Toynara.
Apesar de querer muito, ele nunca mais voltaria. Depois do fim de Zephir, fizera a boa viagem que eu lhe desejara e descansava no Outro Mundo, liberto das aflições terrenas que me minavam a alma.
E eu também haveria de fazer a minha viagem, com a mesma certeza e com a mesma resolução.
Porque afinal, era o meu destino.
Hai, Toynara. Não irei desapontar-te.
Fim de entrada.
X.2. Cumplicidade
Porque eram as melhores amigas do mundo e de todo o Universo, por acrescento, Pan tinha chegado à Capsule Corporation, na véspera da grande festa que a mãe tinha estado a preparar para comemorar o fim do feiticeiro malvado. Naquela noite dormiam as duas no mesmo quarto, depois de um dia de brincadeira. Bra apagou a luz do candeeiro, a pensar que nunca se sentira tão feliz.
- Bra-chan?
- Hai.
Partilhavam a mesma cama, que era larga e onde cabiam as duas sem se incomodarem demasiado uma à outra durante as horas de sono, até porque até nisso se completavam – enquanto Pan era irrequieta, Bra conseguia adormecer e acordar na mesma posição.
- Agora que Zephir já foi eliminado e que estamos novamente em paz, vamos voltar a treinar juntas.
Os olhos azuis de Bra brilharam.
- Para chegarmos a super saiya-jin – completou Pan.
- Super saiya-jin? Achas... que podemos chegar a super saiya-jin?
- E porque não? Temos o mesmo sangue nas veias que Trunks ou Goten e eles foram super saiya-jin mais ou menos com a nossa idade.
Bra encolheu-se, puxando o lençol até ao queixo.
- Mas se estamos em paz...
- Eu quero ser mais forte. Vou ser mais forte – completou cerrando os dentes. – Quando me enfrentei àquele demónio, fui derrotada como se fosse uma principiante.
- Mas o demónio era muito forte, Pan-chan.
- Nada pode assustar um saiya-jin – admoestou a filha de Gohan agastada. – Se Vegeta-san te ouvisse a dizer isso!
- Zangava-se muito comigo.
- E com toda a razão! Ouve, quero pedir-te uma coisa. Da próxima vez que fores treinar com o teu pai...
- Mas eu nunca mais me treinei com o meu pai, Pan-chan...
- Ele esteve ocupado nestes últimos meses. Acredito que, a partir de amanhã, vai outra vez dizer-te para ires treinar com ele na Câmara de Gravidade. Quando ele te disser isso, pede-lhe para eu ir com vocês.
- Queres treinar comigo e com o 'tousan na Câmara de Gravidade?
- Hai!
Bra observou curiosa a amiga. Estava determinada e quando era assim conseguia tudo o que se propunha fazer. Confiava em Pan e acreditou que também ela acabaria por chegar a ser em breve uma super saiya-jin como o pai e o irmão e o pai haveria de ficar tão contente com ela, apesar de saber que nunca o iria demonstrar. Sorriu e disse com o mesmo entusiasmo que percebia em Pan:
- Claro. Vamos treinar na Câmara de Gravidade e vamos ser duas meninas super saiya-jin!
- Bulma-san é que não vai gostar nada disso.
Riram-se uma para a outra.
- E Videl-san?
- A minha mãe? – Pan encolheu os ombros num gesto rebelde. – Ela já sabe que eu gosto mais de combater do que brincar às casinhas, vestir vestidinhos bonitos e perseguir namoradinhos.
Bra fez beicinho, ofendida.
- O que queres dizer com isso? Que eu sou uma menina mimada?
Pan deu-lhe um toque amigável no queixo com o punho fechado.
- Ah, nós bem sabemos que tu és a flor cá de casa. Mas vamos fazer de ti uma super saiya-jin à mesma. O teu pai e eu garantimos que isso vai acontecer.
- Está bem. – Bra soltou um suspiro. – Mas eu também gosto de brincar às casinhas e de vestir vestidinhos bonitos. – Não acrescentou perseguir namoradinhos, pois não achava os rapazes da sua escola nada dignos de perseguição. Eram tão bebés!
- Por isso, vai ser ainda mais divertido! Uma super saiya-jin que é também uma princesa. Vais surpreender todos os nossos inimigos.
- Mas eu sou mesmo uma princesa, Pan-chan.
- Eu sei, eu sei.
Calaram-se. Pan olhava para o teto, braços por cima do cobertor. Bra, deitada de lado, colocou as mãos unidas entre o travesseiro e a cabeça. Bocejou, ensonada. Estava mesmo quase a adormecer, quando escutou Pan perguntar baixinho:
- O que é que vai acontecer com a Ana-san?
- Ouvi dizer que ela vai embora para a Dimensão Real amanhã de manhã.
A amiga fez uma ligeira pausa, remexeu-se debaixo do cobertor.
- Antes da festa?
- Hai. O que quer dizer que os doces que ela ia comer poderão ser divididos por nós as duas, Pan-chan!
- Pois é...
As duas meninas tornaram a rir-se.
- Porque é que queres saber o que é que vai acontecer com a Ana-san?
Viu Pan fazer uma careta.
- Eu estava naquela sala quando o sacerdote do templo que era nosso amigo disse que ela só podia ficar um ano na nossa dimensão. Queria saber se ela ia mesmo ficar um ano aqui...
Estava a esconder-lhe alguma coisa e Bra franziu o sobrolho. Bocejou outra vez e murmurou:
- O nii-chan está muito triste porque ela se vai embora...
- Pois... sim. Deve estar...
Pan voltou a cara. Escondia-lhe alguma coisa. Mas Bra estava com tanto sono que não se incomodou em esclarecer a questão. Soou-lhe a coisa semelhante a perseguir namoradinhos e achou estranha a preocupação da amiga, quando Pan detestava ainda mais do que ela os rapazes da sua idade. Mas como não queria verdadeiramente saber daquilo, adormeceu.
***
A festa do dia seguinte iria ser muito triste para Trunks, pensou Pan a olhar para a parede, a fugir do contacto visual com a Bra. O seu estratagema acabou por resultar, pois a amiga ficou a dormir passado algum tempo.
Alguém teria de ir alegrar Trunks naquela festa. Resolveu que seria ela. Iria oferecer-lhe um bolo especial e dar-lhe-ia um beijo na cara para que ele não se sentisse tão triste. Corou a visualizar a cena, mordendo a língua por estar a agir assim, de uma forma tão descabida quando pensava no irmão da melhor amiga, que era um rapaz muito mais velho que ela e que nem sequer sabia que ela existia. Mas Trunks era muito bonito, sabia lutar e era deveras interessante... O rapaz mais interessante que ela conhecia...
... E, a partir do dia seguinte, sozinho.
X.3. Despedida
Entrada no meu diário, data: desconhecida, estou noutra dimensão
Encostada ao parapeito, contemplava a noite de um mundo que iria abandonar em breve através da janela fechada do quarto e mergulhava num mar de silêncio que me isolava do exterior.
Tinha tomado um duche e trocado de roupa, porque me parecia que o cheiro dos dois saiya-jin tinha ficado entranhado no tecido e que qualquer nariz com um olfato mais apurado o haveria de sentir e saber o que andara eu a fazer naquela tarde, apesar de não ter acontecido nada de concreto, apenas um beijo meio inocente e um assédio meio consumado.
A porta do quarto abriu-se. Não me voltei. Sabia que era ele. Não o via desde a manhã e ali chegava o nariz com um olfato mais apurado. Ainda bem que tinha tomado aquele duche e vestido outra roupa, pensei.
A voz dele vibrou atrás de mim, perigosa como um veneno doce:
- Não foste jantar.
Chegava a altura de abandonar o silêncio. Respirei fundo e respondi, ainda voltada para a janela:
- Não estava com fome.
- Trouxe-te alguma coisa para comeres.
Olhei-o por cima do ombro. Carregava sobre a mão um tabuleiro com algumas caixas com comida, um pacote de sumo e uma garrafa de água, numa posição profissional de empregado de mesa. O quarto estava quase às escuras, alumiado apenas por um pequeno candeeiro de uma mesa de apoio que se encostava à parede e foi aí que ele deixou o tabuleiro.
- Devias mesmo comer qualquer coisa, sabes?
Não acendeu outra luz, éramos duas sombras que se interpelavam uma à outra, e agradeci-lhe por isso. Não me apetecia escapar da escuridão, mesmo com o fim do silêncio.
- Continuo sem fome - respondi.
Ele cruzou os braços, eu regressei à contemplação do mundo através da janela.
Eu disse:
- Estás aborrecido comigo.
- Tenho razão para estar. Não achas que devíamos ter tomado essa decisão juntos?
Concordei, meneando a cabeça devagar:
- Talvez... Mas talvez não quisesse que interferisses, pois iria hesitar e depois...
- E depois? Ainda falta tanto tempo para se fechar um ano completo.
- Acho que seria mais...
- Doloroso? Não estás sozinha nisto, Ana.
- Nem me deixes explicar as minhas razões.
- Não as compreendo.
- Não as queres compreender.
- Ah, para... Não quero discutir contigo esta noite.
Uma ordem irrefutável, a autoridade do pai e a veemência da mãe. Calei-me. Realmente, eu também não queria discutir com ele.
Escutei-lhe os passos sobre o soalho. As minhas unhas cravaram-se no parapeito, enquanto a minha respiração se alterava e a minha pele começava a reagir centímetro a centímetro, antecipando o que se preparava.
- Quero que tu comas alguma coisa, Ana... A sério. Não te quero com fome, não precisas massacrar o teu corpo, quando também massacras o teu espírito.
Crispei ligeiramente a testa, estranhando aquela afirmação. Mas acontecia ser verdade que eu não tinha fome, tinha outras apoquentações que me roubaram o apetite. Não era uma questão de massacre intencional.
Abraçou-me por trás, passando os braços pela minha cintura, apertando-me contra ele. Encaixou o corpo dele no meu e começou a beijar-me o pescoço e a nuca. Perguntou-me num murmúrio ofegante:
- O que é que estás a fazer aí?
Respondi, sentindo-me encher com aquele desejo louco que sentia por ele:
- Estou a ver as estrelas.
- Daqui? A cidade tem demasiada luz, não se consegue ver as estrelas...
- Mas eu sei... que estão lá... todas – expliquei com a voz entrecortada.
- O que é que estás a dizer a essas estrelas invisíveis?
- Adeus.
Agarrou-me no cabelo, puxou-o, obrigando-me a dobrar o pescoço, olhar para cima e para ele. Mordeu-me a orelha.
- Esquece as estrelas.
Virou-me com brusquidão, rodopiei como um pião sobre a ponta dos pés. Aprisionou-me contra o parapeito, entre os braços que apoiou na janela. Vi-me sentada, encostada ao vidro, com ele no meio das minhas pernas. Continuou a beijar-me o pescoço. Enterrei as minhas mãos na cabeleira dele, repuxando-lhe as madeixas lilases, ofegando com ele.
- Ah... Tu consegues tudo o que queres... – disse eu oferecendo-lhe o pescoço para que ele o trincasse, como se me estivesse a oferecer a um sacrifício ritual. – Já me tinha esquecido...
- Sempre, Ana. Sempre!
Arrancou-me da janela, depositou-me em cima da cómoda próxima derrubando os frascos e os adereços que estavam no tampo, enchendo o soalho de cacos e de vidro. O ruído da catástrofe excitou-me. Gemi, enrolando as pernas na cintura dele, puxando-o mais para mim.
Devia ser o tal cheiro. Enlouquecia-o, enlouquecia-me a mim também.
Despiu-me a blusa, beijando-me cada vez mais aflito, afirmando que me desejava perdidamente.
- Trunks... Oh, não pares. Dá-me as estrelas, Trunks. Dá-me as estrelas do teu mundo.
- Dou-te tudo o que tenho, tudo o que sou...
- Não pares!
Amou-me primeiro na cómoda. Depois, no chão e, por fim, na cama. Imparável e esfomeado, desesperado, mas também triste, tentando reter o momento, entesourá-lo e cristalizá-lo, com a mesma angústia que eu sentia, que o segurava com medo que ele se desfizesse em moléculas de ar, ele apertando-me com receio que eu me esfumasse em nada.
Éramos dois seres de mundos distantes que se tinham entregado a uma paixão proibida que ameaçara o Universo com o caos e a ulterior destruição. Dois seres que procuravam ansiosamente completar-se, porque se sabiam dissonantes, fabricados por criadores diferentes, que não se deviam nunca ter tocado. Um sonho louco, afinal o meu sonho louco.
Mas, tal como qualquer sonho, não passávamos de uma doce ilusão, uma deliciosa fantasia intangível.
Suávamos os dois, cansados, repletos, após termos atingido o clímax e termo-nos derretido um para o outro. Trunks olhou para mim.
Aquele olhar azul durou uma eternidade.
E, depois, obrigou-me a comer porque queria continuar.
Fim de entrada.
X.4. Entrega
Bateram do lado de fora do vidro da janela e ele, com os braços postos debaixo da cabeça, estirado sobre a cama, estranhou.
Ainda não tinha adormecido, porque não parava de pensar nela. Repisava os momentos em que ela estivera nos braços dele no Templo da Lua, quando ela tinha acordado na Capsule Corporation e se tinha ido embora com número 17 sem sequer se terem despedido, no dia seguinte em que a iria encontrar na festa que Bulma-san preparava para comemorar o regresso da paz.
Saltou da cama, intrigado com a razão que teria levado Trunks até ali. Abriu a janela e a silhueta do exterior moveu-se de modo a se aproximar da claridade ténue do quarto, que se iluminava com um candeeiro aceso numa secretária pejada de livros. Ao reconhecê-la, engasgou-se.
- Ma-Maron?
O seu pensamento materializado e ele piscou os olhos várias vezes para se certificar que não estava a sonhar. Ela enfiava as mãos nos bolsos de um blusão preto e escondia o queixo na gola levantada, como se estivesse com frio. Ficou a pairar do lado de fora.
- Komba-wa, Goten... Hum... Quero falar contigo. Pode ser?
- Claro, entra...
- Não quero que os teus pais saibam que estou aqui. Podemos falar... cá fora?
- Eh... Hai.
- Mas primeiro, veste lá qualquer coisa.
Viu-a voltar a cara ruborizada e a esconder um sorriso. Ele olhou para baixo e descobriu que estava vestido apenas com umas cuecas e ficou mais corado que ela.
- Shimata!...
E não se conseguia mexer com a vergonha.
- Estou à espera, Goten.
A voz dela, que era divertida, fê-lo reagir. Enfiou a t-shirt e os calções que tinha vestido naquela tarde e que se espalhavam no chão do quarto. Calçou umas sapatilhas e saiu pela janela, sem apertar os atacadores brancos que ficaram pendurados de forma desleixada. Ela reparou nesse detalhe e arqueou um sobrolho.
- Não quero conversar ao pé da tua casa – disse a afastar-se da janela voando. – Conheces algum sítio para onde podemos ir sem sermos incomodados?
- Segue-me.
Alcançaram uma cascata ruidosa onde ele costumava nadar, pescar e onde fazia piqueniques com a família. Sentaram-se num recesso relvado, a salvo dos salpicos, mas suficientemente perto do rio para sentirem a humidade e a frescura da água abundante. Ele viu-a estremecer e quis apertá-la nos braços. Parecia que continuava com frio.
Estava bela, banhada pela luz das estrelas e foi a vez de ele estremecer. Encostava os joelhos ao peito que abraçava, o queixo quase pousado sobre as rótulas estreitas, as pernas dela eram tão bonitas. Corou outra vez. O cabelo loiro brilhava e os olhos fitavam-no meigos, mas expectantes, tinha a boca pintada de um rosa muito ténue que lhe acentuava a curva perfeita dos lábios pequenos. Ele não soube o que lhe dizer, mas ela esperava que ele começasse a conversa. Ficou confuso, porque ela é que lhe tinha dito que queria falar com ele, mas não se decidia a revelar porque é que o tinha vindo procurar.
Estava encurralado numa situação delicada, pior que enfrentar sozinho o saiya-jin de Zephir. Começou a arrancar pedaços de relva com a ponta das sapatilhas que continuavam com os atacadores pendurados. Pensou em atá-los, mas deteve-se, pois pensou que ela haveria de julgar que o fazia porque ela lhe censurara o desleixo.
Escutava-se a cascata na noite silenciosa.
- Vais estar amanhã na festa de Bulma-san, não vais?
Ela tinha-se decidido e fizera a primeira pergunta. Ele respondeu-lhe:
- Hai, com toda a minha família.
- O meu pai disse que o teu pai voltou para casa e que vivem agora juntos, com Ubo-kun.
- Hai. Deverá ficar por alguns meses. A minha mãe está feliz.
- E tu também.
- Claro... São como... Umas férias. Depois, regresso à universidade e o meu pai há de regressar à ilha com Ubo para continuarem com os treinos.
Ela respirou fundo e foi perfeitamente audível. Ele percebeu que ela estava nervosa e ele também ficou nervoso. Continuou a arrancar tufos de erva. Os atacadores brancos começavam a ficar sujos.
- Goten, vim aqui esta noite porque...
Finalmente, ela iria revelar o mistério. Ele sentiu os músculos arrepanharem-se todos, um por um, o esforço a refletir-se gradualmente. A situação era ainda delicada e ele estava ainda encurralado. Ela completou de chofre, como se lhe custasse dizer aquilo:
- Queria agradecer-te por teres cuidado de mim no Templo da Lua.
Ele não olhou para ela.
- Ah... Maron, eu iria sempre proteger-te contra qualquer perigo. És... minha amiga.
- Hai.
Ela vacilou, mas acrescentou num murmúrio, mais para os joelhos do que para ele:
- Tu também és meu amigo.
Goten encheu-se de coragem e espreitou-a. Os olhares deles cruzaram-se e coraram em simultâneo. Ela queria dizer-lhe mais qualquer coisa, o agradecimento tinha sido apenas uma introdução. Ele já sabia o que era e estava a ficar ansioso, cada vez mais encurralado. Apetecia-lhe dar um berro e transformar-se em super saiya-jin e arrasar com metade das montanhas Paozu.
- Acho que... que gosto de ti, Son Goten.
- Nani?!
Mesmo antecipando a declaração, foi como um murro no estômago e Goten arquejou.
A cascata tornou-se ensurdecedora. O cérebro dele zunia com as palavras dela, repetindo-as como num eco.
Se Trunks estivesse ali já lhe tinha dado uma cotovelada nas costelas e já lhe tinha dito que ele era um idiota e que devia dizer-lhe, imediatamente e sem hesitações, que também gostava dela e que queria ficar com ela para sempre. Ele abriu a boca, tentou falar, mas não lhe saiu som algum e ficou simplesmente de boca aberta, como um peixe fora de água.
Ela baixou os joelhos. Aproximou-se dele, sentou-se sobre os calcanhares.
- Eu... Gostava de poder dizer-te que queria combater contigo – começou ela. – Sei que para ti seria mais fácil, ficavas mais à vontade. Mas o que me apetece agora, Son Goten... é um beijo.
Ele lançou-se para trás, apoiou o corpo nos braços para não acabar estendido na relva. Ela repetiu o pedido, entreabrindo os lábios cor-de-rosa:
- Beija-me, Goten.
E lá vinha a segunda cotovelada e o berro indignado de Trunks.
Beija-a, baka! Ela está a pedir-te e tu não te mexes?!
Para calar o amigo, fê-lo. Num gesto rápido e totalmente desprovido de romantismo, pespegou-lhe um beijo nos lábios cor-de-rosa. Nem apreciou convenientemente a sensação de ter colado a boca dele à dela, porque não chegara a senti-lo. Maron olhou-o espantada e desiludida.
Uma terceira cotovelada do amigo, já tinha as costelas magoadas e ele despertou. Fechou os olhos e esqueceu-se de toda a timidez. Puxou a rapariga e beijou-a mais devagar, saboreando por fim os lábios cor-de-rosa e ligeiramente molhados. Quando sentiu as mãos dela no pescoço, teve o impulso de recuar, ficou petrificado, mas lutou contra a vontade de se escapulir daquela prisão que o escaldava, porque também era agradável. E então ela beijou-o ainda mais devagar. Ele retribuiu, tentando imprimir naquele toque todo o carinho que sentia por ela e a sensação de prazer aumentou. Desejava-a e ela também o desejava. Assustou-se. Ele confessou, trémulo:
- Eu não sei o que fazer, Maron.
- Nem eu... Mas quero aprender contigo.
Goten envolveu Maron num abraço apertado e deixou-se guiar pelo seu instinto, estendendo-a na relva, à beira da cascata ruidosa.
X.5. Sob as estrelas
Entrada no meu diário, data: desconhecida, estou noutra dimensão
Estava de olhos fechados, a respirar devagar o perfume que exalava da pele que eu acariciava. Descansava momentaneamente sobre o corpo dele, macio, forte, quente, real. Mexeu um pouco as pernas e eu oscilei como se estivesse a descansar num colchão sobre as ondas do mar. Sorri, adorando cada pormenor daquela intimidade. Nunca tinha feito amor daquela maneira com ele, em que se tinham ultrapassado todos os limites e em que o tinha deixado fazer tudo o que lhe apetecia fazer, entregando-me sem regras.
- Ana, estás acordada?
- Hum?... Estou.
- Ainda bem. Não quero que adormeças.
- Sim, meu senhor.
Assentei o queixo sobre o peito dele. Beijou-me.
- Não podemos adormecer – reforçou. – Ou perdemos o tempo que ainda nos resta juntos.
- Tens mesmo de me lembrar disso?
A noite corria mágica e desenfreada. Apetecia-me amá-lo mais uma vez, mas ele levantou-se da cama com um salto. Ordenou-me que me vestisse enquanto ia recolhendo as suas roupas que se espalhavam pelo quarto.
Senti falta do calor, do perfume dele. Queria era tê-lo comigo, dentro de mim, ao meu lado, debaixo de mim, sobre mim, dormindo ou acordado, queria era simplesmente tê-lo. Mas também saí daquela cama alvoroçada, manchada e amarrotada, que tinha o odor peculiar de sexo consumado várias vezes.
- Vamos passear.
- Passear? – Admirei-me.
- Hai. Não querias que eu te desse as estrelas? Pois vou dar-tas.
Fui até ao roupeiro e vesti um vestido, cobri-me com um casaco porque era de madrugada e tinha arrefecido, calcei uns sapatos com um laço, tão embonecados que sorri para os meus pés. Apanhei a mão que ele me estendia, fomos até à janela, abriu-a. Agarrei-me a ele, segurou-me pela cintura e saltámos para o vazio. Não consegui evitar um grito ao sentir a ausência da gravidade, mesmo que a queda fosse controlada. Escutei a gargalhada que soltou e aninhei-me na curva do ombro dele, respirando novamente o perfume adorável, aconchegando-me no calor tentador.
A brisa noturna carregou-nos pelos céus. Sobrevoámos West City, vi o jardim onde tinha estado com Son Goku naquela tarde, entrevi a cúpula da Capsule Corporation, apreciei deliciada o meu último voo. Pois com quem iria eu voar na Dimensão Real, por cima das cidades e dos montes?
Trunks aterrou numa pequena colina de um bosque das cercanias. No horizonte escuro tremeluzia um mar de luzes que pertencia à grande metrópole ocidental que nunca adormecia verdadeiramente. Por cima de nós tínhamos o esplendor da abóbada celeste e ele abriu os braços, exibindo todas as estrelas que me conseguia ofertar naquele instante.
- Oh, Trunks! Tão... bonito!
Ficámos a contemplar aquele espetáculo, estendidos no chão, num silêncio reverencial. As estrelas moviam-se devagar no céu violeta e acho que adormeci embalada nesse movimento lânguido. Sei disso porque despertei estremunhada com um beijo que me inundou a boca de calor.
- Eu disse-te que não podias adormecer.
- Gomen nasai... - balbuciei.
Sorria-me, debruçado sobre mim. Pensei que iria arrancar-me o vestido e que iríamos fazer amor mais uma vez, mas observou-me simplesmente. Depois disse melancólico, como se fosse um pensamento que se lhe tivesse escapado:
- Amanhã regressas à tua dimensão e eu nunca mais te vou ver.
Sentei-me.
- Trunks... Não quero falar disso agora. É a nossa... última noite.
- Mas temos de falar, precisamente porque é a nossa última noite. Ou então vão ficar coisas por dizer.
- Vão sempre ficar coisas por dizer. É impossível falarmos tudo o que temos para dizer um ao outro.
- Acho que não.
- Tu és tão...
Olhou-me com um meio sorriso.
- Convencido! – Acrescentei irritada.
- Tu adoras-me assim.
- Isso chega a ser insuportável, Trunks Brief.
Estávamos os dois sentados, ele tinha os braços sobre os joelhos fletidos. Baixou a cabeça entre as pernas, pareceu-me definhar de tristeza. Disse-me:
- Julgas que não aceito a tua decisão, mas aceito-a. Não concordo é que o faças já amanhã, podias esperar mais uns tempos e só depois ires embora... Depois de saber o que te vai acontecer, prefiro que partas, mesmo que isso me desgrace o coração. Prefiro saber-te viva, mas longe de mim, a saber-te morta por teres ficado comigo.
As lágrimas apareceram, tão inesperadas e inoportunas. Limpei a cara num gesto seco, aborrecida por ter sucumbido à emoção daquela confissão.
- Vou sentir tanto a tua falta... Trunks.
- Eu também vou sentir a tua falta. Sabes que te amo, Ana.
Era a primeira vez que dizia que me amava. Endireitei as costas, sentia-me tensa. Ia responder-lhe, mas ele interrompeu-me acrescentando:
- Quero que te lembres de mim.
- Todos os dias. Todos...
- Vou dar-te uma coisa que quero que uses, na tua dimensão. Vai ajudar-te a que nunca te esqueças de mim, de todos os momentos que passámos juntos.
- Mas eu não me vou esquecer de ti.
- Oh, quem sabe?... Haveremos os dois de reconstruir as nossas vidas... Mais tarde, quando a dor acabar. E depois a memória vai ser tão distante, que até nem vai parecer memória, mas um sonho louco de uma tarde de outono.
- Não! – Gritei horrorizada.
Sorriu-me. Levou a mão ao interior da blusa que vestia. Mostrou-mo e arrepiei-me quando o vi brilhar sobre a palma das mãos dele.
- O Medalhão de Mu! - Exclamei.
Os dois triângulos estavam separados, as correntes douradas balançavam levemente e o sol desenhado no centro estava apagado. Após a surpresa inicial, recordei que aquele era um objeto perigoso para ele. Assustei-me e roubei-lhe o medalhão.
- Tu não podes tocar nisto!
- Só se estiver unido.
- Como é que o encontraste, Trunks? Pensei que depois do fim de Zephir isto se tivesse desintegrado. Havia tanta luz...
- Encontrei-o nos escombros do pátio onde foi utilizado no altar mágico. Foi mesmo antes de virmos embora, vi qualquer coisa a brilhar e descobri admirado que era o medalhão. Como estava separado, apanhei-o. Escondi-o, não contei nada a ninguém. Acho que por as duas metades estarem na Terra, nesta dimensão, irão continuar por aqui.
Apertei os triângulos como me habituara a fazer, reconheci o toque e estremeci de satisfação. Era delicioso, fazia-me regressar ao passado, transportava lembranças de quando fizera o mesmo. As memórias que era suposto emular. A mão de Trunks agarrou a minha, a que segurava a segunda metade do amuleto.
- O Medalhão de Mu tem duas metades. Eu ficou com uma, tu ficas com a outra. Essa é a tua metade.
- Hai - concordei.
Com dedos trémulos enfiei a corrente dourada da segunda metade do Medalhão de Mu pela cabeça. Era a metade mais especial, pelo menos para mim. Tinha sido uma dádiva de Shenron e das magníficas bolas de dragão. Ele colocou ao pescoço a primeira metade do Medalhão de Mu e anunciou:
- Quando o Medalhão de Mu se voltar a unir, nós voltaremos a ver-nos.
Abracei-o num impulso, enchendo-me de perfume e de calor. Queria-o para sempre naquele abraço. Os dois triângulos tocaram-se, retinindo ao de leve. Senti o metal palpitar, reagindo à proximidade da outra metade. Apesar de nos unir, também nos separava e empurrei Trunks assustada com uma possível reação do medalhão que acabasse por prejudicá-lo. Ele riu-se.
- Não sabia que o medalhão fazia isto.
- Às vezes, parece que está vivo – confessei.
- Interessante. Vou aprender a conviver com esta coisa.
- Vais usá-lo sempre?
- Tu também o vais fazer.
- Oh... Claro que sim.
Voltei a cabeça para oriente e descobri uma faixa azul clara que indicava que o dia ia nascer. Empalideci. O tempo tinha passado inexorável e tinha-se esgotado. E eu tinha estado distraída, ocupada, docemente alheada. Talvez tivesse sido melhor assim, não sentira a picada dos segundos a passar, a areia a escoar-se para a metade inferior da ampulheta. Trunks estava levantado.
- Temos de regressar.
- Para onde? – Perguntei.
Levantei-me com a ajuda da mão que ele me estendia. Olhou-me com uma expressão vazia.
- Tens de ir dormir alguma coisa, Ana. Não vais fazer a maior viagem da tua vida num estado lastimoso. Quero-te bonita, porque vais enfrentar uma audiência respeitável. Todos os amigos da minha mãe vão lá estar e eles querem ver a heroína que nos salvou de Zephir. Não podes aparecer como uma condenada à morte a subir o cadafalso.
Estranhei:
- Que conversa é essa?
- Vamos. Mais uns minutos e estamos em casa.
- Trunks...
- O dia que escolheste para a viagem é perfeito. Vais tê-los a todos para te dizerem adeus.
- Explica-te, não te estou a perceber.
- Os heróis de "Dragon Ball"... nena.
Falou-me em castelhano, com o timbre da voz que tinha quando eu o conhecera, porque não sabia ainda falar português. Pensava que ali, na dimensão onde pertencia, ele só soubesse falar com o timbre da voz japonesa.
- Como é que fizeste isso?
Não me esclareceu. Agarrou em mim e dirigimo-nos para West City, voando calados e sem qualquer resquício do romantismo inocente do primeiro voo. E foi em silêncio que percorremos os corredores da Capsule Corporation, de mão dada. Com passos resolutos encaminhava-me para o meu quarto. Depois de me ter obrigado a comer, haveria de me obrigar a dormir e comandava-me como se eu precisasse de um guia para me orientar as atitudes.
A aurora clareava tudo, afastando a noite mais inesquecível da minha vida. E talvez o dia acabasse por quebrar o encantamento da noite e mudasse o Trunks que eu conhecia para aquele rapaz distante, calculista e frio como um pedaço de gelo. Ou estava disposto a transformar-se nesse rapaz, para suportar a minha ausência.
Inesperadamente, puxou por mim. Parámos.
Perguntou-me:
- Quem é o teu personagem favorito de "Dragon Ball"?
Dei uma risada.
- Ora... És tu!
Repetiu a pergunta:
- Quem é o teu personagem favorito de "Dragon Ball"?
- És tu.
- Quem é o teu personagem favorito?
Fazia-me a pergunta sério, quase rude. Acabei com o sorriso, mas insisti na resposta:
- És tu, Trunks.
Ele respirou fundo, contrariado.
- Quem é o teu personagem favorito de "Dragon Ball"?
Engoli em seco.
- Porque é que me estás a perguntar isso?
Pressionou-me os dedos da mão. Estava a irritá-lo e as sombras do corredor tornavam-no assustador.
- Responde ao que te perguntei.
Baixei os olhos.
- Mirai Trunks.
Tornou a pressionar-me os dedos da mão.
- Porquê? E quero que olhes para mim quando me responderes.
Fiz o que ele me ordenava.
- Porque... precisava ser amado. Tinha perdido quase tudo o que lhe era querido, era demasiado solitário... Introspetivo. Mas continuava a sentir esperança. Tinha o orgulho do pai, a força da mãe, a sabedoria do mestre, havia gentileza nos seus gestos. Tinha uma tenacidade sem igual. Era bonito... na sua solidão. Lutou e cresceu sozinho, suportou todas as tristezas que era possível suportar, mas acabou por vencer. Acredito que deve ser feliz, agora. Quero que seja feliz, pois ele merece sê-lo.
Houve silêncio, que foi físico e esquisito. Movi a mão para me libertar de Trunks. Por um momento, não quis que ele me tocasse.
Sorriu-me, os olhos azuis dele estavam brilhantes.
- Mas esse Trunks... não sou eu, Ana.
Admirei-me. Continuava sem perceber o que queria ele provar com aquela conversa.
- Eu sei que não és tu.
- Mas cheguei a ser, não foi? Quando me conheceste na Dimensão Real e quando me chamava Tiago.
- Não te estou a perceber...
- Através de mim... conseguiste amar o teu querido mirai Trunks. Que precisava ser amado.
Foi ele que acabou por me soltar a mão. Acariciou-me a face com dois dedos, numa carícia ligeira, como se tivesse medo de me partir em mil pedaços.
- Não digas isso – pedi-lhe.
- É ele que tu amas, não sou eu. Este Trunks convencido, presunçoso e que consegue sempre, sempre... tudo o que quer.
Não fui capaz de rebater o que me dizia. Não me indignei, protestei, nem sequer neguei o que me afirmava tão convicto.
- Minha doce Ana. Jamais te esquecerei.
Fiquei muda, a tentar encontrar um argumento que conseguisse provar, sem qualquer margem de dúvida, que ele estava errado, quando ao mesmo tempo confirmava dentro de mim, no meu interior calado e resignado, que aquela era a verdade, sim, que eu gostava era de mirai Trunks.
E a nossa despedida foi aquela.
- Perdoa-me se te dececionei.
- Tu não...
Calou-me com um beijo.
As nossas bocas ficaram unidas numa humidade doce, que nunca mais se iria repetir. Sentia-lhe a mágoa nos lábios, quase como se a saliva fosse parte das lágrimas que não queria chorar ao pé de mim, por causa de mim.
Segurava-me na cara com ambas as mãos, olhou-me. Acho que me sorriu ao de leve, mas também podia ter sido apenas confusão das sombras do corredor.
Afastou-se, às arrecuas, a aumentar o plano sobre a minha pessoa, um grande realizador de cinema a amar a sua atriz favorita com a câmara, captando-a no silêncio de um palco nu, a reter o meu rosto, o meu busto, o meu corpo inteiro e perpétuo no filme da sua mente. Aquele preciso instante, a Ana da Dimensão Real, de pé, no corredor da Capsule Corporation.
Continuava a parecer-me que me sorria ao de leve, a mágoa vestindo-o de cima a baixo.
Foi-se embora.
Deixou-me sozinha e foi o princípio do meu mundo sem ele.
Fim de entrada.
X.6. Compromisso eterno
Ouvia-se o barulho da cascata.
Goten não conseguia parar de sorrir. Nunca se tinha sentido tão feliz na vida. Tinha-a ali, junto ao peito, enroscada nos seus braços como um pequeno gato, confiando na proteção dele, aceitando a companhia dele e, sobretudo, o amor dele. Conseguira conquistá-la e ainda não tinha percebido bem como fora que tudo acontecera. Ou talvez nunca percebesse. Maron despertou. Deslizou para se libertar e ele deixou-a ir, contrariado. Pôs-se de pé a ajeitar o blusão, a sacudir a erva das calças. Ele calçou as sapatilhas, manteve os atacadores desapertados.
Ela disse a observar o horizonte.
- Tenho de voltar a casa. De preferência antes de o sol nascer. Se o meu pai sabe que passei a noite contigo...
- Eu falo com ele.
Ela levantou uma mão.
- Vamos com calma. Nós não temos ainda uma relação oficial e eu só tenho dezasseis anos.
- Podemos tornar isto oficial, na festa de hoje.
Maron sorriu-lhe. Goten corou.
- Há... algum problema?
- Não sei. Poderá parecer repentino. Não achas?
Ele coçou a cabeça, revirando os olhos. Murmurou:
- Bem, depois daquilo que fizemos esta noite... Acho que temos mesmo de tornar isto oficial.
Ela ficou zangada, espetou-lhe um dedo no peito.
- Ah, mas sem qualquer dúvida, Son Goten.
- Nani?
- Tu vais ser o meu namorado e sem protestar!
Ele retraiu-se:
- Mas eu quero casar contigo, Maron...
Ela retirou o dedo como se o tivesse queimado. Foi a vez de ela admirar-se.
- Na-nani?!
- Eu quero casar contigo – repetiu ele no mesmo tom acanhado. – Sei que só tens dezasseis anos, mas eu não me importo de esperar. O tempo que tu quiseres... O teu pai dá-me uma sova se eu não me comprometer contigo, depois do que andámos a fazer.
Maron desatou a rir, para aligeirar a tensão criada.
- O meu pai, a dar uma sova num super saiya-jin?
- A tua mãe, então...
O riso dela era divinal. Sorriu, totalmente enamorado daquela menina que se tornava numa mulher ao lado dele, com quem haveria de partilhar uma vida inteira. Não se queria separar dela, o coração apertava-se-lhe só de pensar que teria de a deixar ir para casa e que só a veria dali a algumas horas, na festa de Bulma-san e que haveria de passar dias inteiros sem a ver.
Entreolharam-se. Ela estava com os braços colados ao corpo, mãos refugiadas nos bolsos do blusão, encolhida como no início, como se estivesse com frio. Ele quis abraçá-la, mas ela já se estava a despedir e afastara-se um pouco.
- Bem... Vemo-nos na festa, Goten.
- Hai. Posso... falar contigo, na festa?
- Claro.
- Eu queria muito que... me aceitasses como teu namorado... na festa.
- Se o quiseres...
- Eh... Quero, claro que quero.
- Então, está bem.
- Mas assim, os teus pais...
- Ficam logo a saber. – E ela encolheu os ombros.
- Ficam logo a saber, o quê? – Perguntou ele em pânico.
- Que tu e eu namoramos.
- Ah... Pois. Isso.
- Pensavas o quê, Goten?
- Nada...
- Esta noite vai ser um segredo nosso.
- Hai.
- Mas não me importo de me convidares para outra noite igual.
Ela piscou-lhe o olho e ele corou.
- Mas desta vez, vais tu bater na janela do meu quarto. Combinado?
- Combinado, Maron.
A separação estava a ser difícil. Mas teria, inevitavelmente, de acontecer.
Goten tinha um ar desamparado. Ela deu-lhe um beijo de raspão na face, levantou voo e foi-se embora. Teve de ser assim, de repente, senão nunca mais se iria embora. Ele aceitou a partida dela, estava triste por sabê-la longe, mas também se sentia repleto, satisfeito, feliz, imbecilmente feliz. Também levantou voo e dirigiu-se para casa.
Se antes não conseguia dormir, agora ser-lhe-ia impossível.
O barulho da cascata ficou para trás, desvaneceu-se na madrugada.
Mas o que tinha acontecido naquela noite seria eterno.
X.7. O último dia
Entrada no meu diário, data: desconhecida, estou noutra dimensão; e também setembro 1996
Não dormi mais que duas horas. Nem senti falta de dormir durante mais tempo. Levantei-me, tomei um duche demorado, de água a ferver, e vesti o mesmo vestido que tinha usado para ir ver a magia das estrelas. Calcei também os mesmos sapatos embonecados, levantei a ponta dos pés para admirar os lacinhos, mas, desta vez, já não sorri. Escondi o Medalhão de Mu debaixo do decote e olhei uma última vez para o quarto desarrumado. Os cheiros já se tinham desvanecido todos e as lembranças pareciam querer refugiar-se num lugar onde não as podia convocar.
Chegava o dia de todos os adeus e eu não me sentia preparada. Tinha sido mais fácil destruir Zephir.
Um pequeno monitor azul piscou junto à porta, acendendo-se com um apito breve. Transmitia uma mensagem de Bulma que indicava que a viagem na máquina das dimensões estava agendada para as onze horas da manhã e que a partida ocorreria no relvado das traseiras. Era uma espécie de convocatória e de lembrete, como se eu me pudesse eventualmente esquecer. Ou provavelmente pretendia que eu o fizesse, que acabasse por repensar a minha decisão depois da noite passada com o filho e que, em vez de ir embora, iria divertir-me na festa e que logo agendaria outra data no calendário para experimentar a sua máquina.
Mas eu não iria desistir, especialmente depois da noite passada com Trunks.
Conferi a hora no mesmo monitor, um pequeno retângulo branco onde estava um relógio digital, com algarismos também brancos. Passavam sete minutos das dez horas da manhã. Tinha mais ou menos uma hora até à minha viagem, mas não sabia muito bem o que fazer com esses longos sessenta minutos, uns agonizantes três mil e seiscentos segundos. Fiquei a marcar o tempo contado pelo relógio, hipnotizada pelo piscar dos dois pontos entre o número das horas e o número dos minutos. Não me mexi, paralisada na mesma posição estupidificante, vendo o tempo passar no seu ritmo normal.
Dez horas e dezanove minutos.
Pestanejei. Levei uma mão ao cabelo. Estava rebelde, tinha-o secado ao ar depois do duche com a água a ferver. Cheirava a alfazema e lembrei-me da cor do cabelo de Trunks.
Agarrei numa fita larga de cor preta e apertei o cabelo, afastando-o da cara. Olhei-me ao espelho grande pendurado por cima da cómoda. Pisquei o olho, ensaiei um sorriso de boneca que combinava na perfeição com os sapatos. Dei um estalido com a língua e disse para o meu reflexo de desenho animado:
- Vou ter saudades tuas, linda!
Saí do quarto. O relógio marcava dez horas e vinte e dois minutos.
Ao contrário do final do dia anterior, os corredores da Capsule Corporation apresentavam-se luminosos e animados. Dirigi-me para as traseiras, tentando acertar à primeira com o caminho, pois aquela casa era grande como um palácio. Mas, desta vez, não havia como me enganar, bastava seguir a música e a atividade que se concentrava toda no relvado das traseiras.
Antes de descer um lanço de escadas espreitei pela janela panorâmica e retangular que tinha à minha direita. Dali conseguia-se ver o local da festa. A primeira coisa que fixei foi a máquina das dimensões. A fuselagem nova brilhava e tinha luzes vermelhas e azuis a piscar. Um grosso cabo negro ligava-a a uma espécie de bateria gigante. Ao lado havia ainda uma estrutura com vários monitores e uma enorme consola, pejada de botões e de interruptores. Vi as mesas compridas, cobertas com toalhas brancas, enfeitadas com flores, onde se exibiam as iguarias que iriam ser servidas no banquete. Vi os grupos de convidados, vestidos com os melhores fatos e os melhores vestidos, garridos como conjuntos de balões, de vários feitios e tamanhos.
Respirei fundo. Iria enfrentar a tal audiência respeitável. Sem medo, Ana. Afinal, tinha sido eu que destruíra o feiticeiro. A segunda metade do Medalhão de Mu tremeu e eu combati a tentação de vincar as suas arestas na palma da mão. Ajeitei o decote para esconder a corrente dourada. Aquele era um segredo meu e de Trunks. O último segredo...
Desci as escadas. Uma porta dupla escancarava-se para a rua e dava acesso ao relvado das traseiras. Vi o último relógio antes de sair. Dez horas e trinta e um minutos. Teria tempo para conversar com todos os convidados, ou adiantaria a primeira viagem da máquina das dimensões. Optei decididamente pela segunda hipótese.
Os sapatos embonecados pisaram a relva, afundaram-se no terreno mole e orvalhado, fazendo-me andar cada vez mais devagar e quase a arrastar-me entrei no palco. Vi as cabeças voltarem-se na minha direção, as vozes calarem-se, como ficaram todos a observar-me, entre a reverência, a admiração e a curiosidade. Parei. Tive a tentação de fazer uma vénia com um sorriso pintado no rosto pétreo e de acenar um adeus com uma pirueta, mas seria excessivo e despropositado. Procurei desesperada por uma cara conhecida, ou pelo menos mais familiar. Primeiro, não encontrei Trunks. Segundo, não consegui reconhecer ninguém. Era tudo um borrão colorido. Estava demasiado calor e eu comecei a sentir-me mal.
- Ana-san, bem-vinda querida. Estávamos à tua espera.
Bulma sorria-me. Perguntou, entrelaçando o braço no meu, puxando-me suavemente para o centro do relvado:
- Vamos cumprimentar os nossos amigos? Querem saudar a rapariga da Dimensão Real que nos salvou e têm estado à tua espera.
- Eu só me quero despedir.
Pareceu-me desiludida.
- Oh... Mas ainda faltam alguns minutos para as onze horas.
- Eu sei. Podemos ir fazendo os últimos preparativos, as últimas verificações.
Soltou-me o braço.
- A máquina está pronta – disse, indicando o local onde repousava o veículo que me levaria a atravessar as dimensões. Explicou-me apontando para o aparato que eu tinha espreitado desde a janela: – Estou a verificar os níveis de energia e o aplicativo que irá permitir a viagem. Como te prometi, irei monitorizar todo o trajeto a partir daquele computador que está ali. Tem um aspeto antiquado, mas é extremamente preciso e fiável. Vai correr tudo bem.
- Eu confio em ti, Bulma.
- Ainda bem, querida.
Passei rapidamente os olhos pelos convidados.
Fiquei impressionada. Estavam lá todos.
Vi Yajirobe e Karin. Chaozu e Ten Shin Han, acompanhavam uma Lanch morena e cândida. Yamucha tinha Puar em cima do ombro e juntava-se ao velho mestre de artes marciais, Mutenroshi, que tinha vindo com a inseparável tartaruga do mar e com Oolong, que enfiava as mãos nos bolsos das calças com um ar enfastiado.
O tamanho de Piccolo impunha-me respeito e fiquei tensa quando o descobri. Com ele estavam Dende e Mr. Popo que me sorria e a tranquilidade do seu sorriso acalmou-me.
Também lá estava número 17 com a irmã número 18, ao lado de Kuririn. Maron voltava-se ligeiramente para Son Goten e os dois olhavam-se embevecidos, ocultando sorrisos.
Chi-Chi fingia ignorar o deslumbramento do filho mais novo. Estava com o pai, o enorme e simpático Gyumao de barba grisalha, e com o marido, Son Goku, tão engraçado enfiado num fato claro, usando uma gravata verde garrida, calçando sapatos polidos, a suar desesperado dentro daquele uniforme. Ao lado deles, Videl e o pai, Mr. Satan. Conheci finalmente o grande campeão. Tinha um aspeto apagado e pareceu-me um homem velho e cansado. Mr. Bu acompanhava-o, o cão Beh preguiçava sonolento aos pés dele.
Com Videl estava Gohan. Pan e Bra davam as mãos e atrás delas postava-se Ubo, vestido também de fato e gravata, tão sério e solene que me impressionou. Aquele trio representava a próxima geração de guerreiros, o futuro da Terra.
Olhei para o lado esquerdo e descobri Vegeta. Piscou-me o olho discretamente, com uma carranca de meter medo. Entreabri os lábios admirada. O príncipe dos saiya-jin não piscava o olho a toda a gente.
Continuava sem encontrar Trunks.
Gohan aproximou-se de mim e de Bulma, arrastando o irmão Goten que despegou finalmente os olhos de Maron. Goku também veio, atrás dos filhos, aligeirando o nó da gravata que estava a estrangulá-lo.
- Ana-san, gostei muito de te conhecer – disse Gohan. – Quero agradecer-te por tudo o que fizeste por nós.
- Também gostei muito de te conhecer, senhor professor.
Gohan riu-se, empurrando os óculos com um dedo, num gesto que lhe dava um encanto especial.
- Vou tentar praticar o japonês que me ensinaste - acrescentei. – E nunca me esquecerei das nossas aulas proibidas, quando não era suposto eu encontrar-me com vocês. Foram noites tão... especiais.
Abraçou-me de repente. Murmurou-me comovido:
- Cuida de ti, Ana-san... onegai shimass.
- Hai...
Quando se afastou, tinha Goten inclinado sobre mim a bafejar-me a cara com um beijo rápido, mas nem por isso menos carinhoso. Gracejou:
- Trunks vai matar-me por eu te ter dado um beijo.
Ele estava diferente. Estreitei os olhos, analisando-o, alcançando a mudança subtil. Sorri-lhe, abracei-o. Senti-o a endurecer de vergonha entre os meus braços. Segredei-lhe ao ouvido:
- A Maron é uma rapariga cheia de sorte. Desejo sinceramente que sejam muito, muito felizes os dois. E lembra-te de mim, Son Goten, porque eu irei lembrar-me de ti. Adorei aqueles dias na cabana das montanhas.
Gohan arrastou Goten de volta, porque ele tinha ficado pregado ao chão e estava tão vermelho que parecia ter sido pescado de uma banheira de lava.
Fiquei com Bulma e com Son Goku.
Olhei para os dois. Tinha sido com eles que "Dragon Ball" começara e seriam eles os últimos a se despedirem de mim. A ironia era deliciosa e agonizante.
Os últimos, pois Trunks tinha resolvido não aparecer.
- Ana, desejo-te boa sorte. Nunca nos vamos esquecer de ti e de tudo o que fizeste por nós – disse-me Bulma, com um olhar azul aguado que me enterneceu.
- Vocês também fizeram tanto por mim. Deram-me... uma aventura inesquecível. Mas não podia esperar menos, já que têm tantas aventuras inesquecíveis para contar.
- Oh, mas preferia mais momentos de paz. Tanta aflição e tanta apoquentação faz-me velha antes do tempo. Dispensava essas rugas, querida.
Fez-me rir e foi tão bom rir-me com ela.
Voltei-me para Son Goku. A presença dele continuava a confundir-me. Aquele sorriso era uma delícia, um tesouro.
- Djá ná, Ana-san.
- Goku...
- Não te esqueças daquilo que eu te disse.
- Hai. Voltaremos a encontrar-nos.
- Não chores.
O sangue fugiu-me da ponta dos dedos que ficaram gelados, juntou-se todo no coração que desatou a bater descompassado e ensurdecedor. Acredito que se conseguia ouvir o meu coração naquele silêncio. Apertei os dentes, neguei com a cabeça. Retive as palavras. Se falasse acabava por não fazer o que me dissera, que acabaria mesmo por chorar.
Goku ficou sério. Observava-me intrigado, com os olhos muito abertos que piscava amiúde, mais vezes do que era habitual. Debruçou-se ligeiramente e sussurrou-me:
- Não te posso dar um beijo aqui, Ana-san.
Eu reagi atrapalhada, corando indecentemente:
- Oh... Mas eu não...
Vegeta escondia um sorriso enviesado.
Devia ser o tal cheiro que enviava mensagens esquisitas para o cérebro dos saiya-jin. Recuei um passo, embaraçada com o que eu pudesse estar a transmitir a Son Goku que estava tão próximo de mim, com o que pudesse estar a insinuar a Vegeta que estava um pouco mais afastado. Não desejava causar nenhum incidente naquela festa. Mas Goku sorriu-me para me descansar, não voltaria a acontecer mais nada entre nós, e eu sorri-lhe de volta, selando aquele adeus.
Voltei-me para Bulma. Respirei fundo e anunciei, num tom de voz alterado pois começava seriamente a ficar nervosa:
- Estou preparada.
Ela franziu o sobrolho. Sabia que faltava ainda uma despedida, devia estar como eu, intrigada por ele ainda não ter aparecido, mas eu já me tinha convencido que ele não iria mesmo aparecer. Não o censurava, não podia depois da noite anterior.
- Podes ficar mais alguns minutos.
Olhei para os monitores acoplados à enorme consola. Dez horas e quarenta e sete minutos.
- Se a máquina está pronta... Eu também estou, Bulma-san.
Ela olhou de relance para os convidados. Encaminhou-me suavemente para junto da máquina, pressionando uma mão entre as minhas omoplatas.
- A viagem será incómoda, mas não durará mais que um minuto, dois no máximo. Lembras-te de como se faz para ligar a máquina e iniciar a sequência que permitirá a viagem entre dimensões?
- Hai. Assim que a cabina ficar fechada e completamente isolada do mundo exterior, carrego no botão amarelo.
- Perfeito.
- Bulma...
- Sim, querida? – Perguntou ansiosa.
- Eu... Obrigada pela roupa. Acho que não vou conseguir devolvê-la.
Os ombros dela estremeceram. Esperava que fosse alguma mensagem para o filho. Devia estar a achar tão estranho eu não querer despedir-me de Trunks, nem sequer mencioná-lo.
- Estás preocupada... com isso? – Perguntou admirada.
- Pois... Um pouco – menti.
- Querida, considera essa roupa como um presente meu.
Dez horas e cinquenta minutos.
- Hai.
Ficámos a olhar uma para a outra. Apertei as mãos, estavam suadas. Estava cheia de medo daquela viagem que nunca tinha sido experimentada antes. Um dos vértices do triângulo dourado picou-me a pele e eu sustive a respiração.
Bulma disse:
- Muito bem. Vamos lá, então...
E quando se afastou de mim, quando se dirigiu para a consola, eu vi-o.
Trunks estava ali.
O meu coração explodiu.
As minhas pernas fraquejaram.
Ficámos só nós os dois e a máquina das dimensões.
O que podia eu dizer-lhe ou ele dizer-me a mim que já não tinha sido dito?
Apertou uma madeixa do meu cabelo entre os dedos. Estava triste, tal como mirai Trunks e eu sentia-me a desfalecer.
Fui eu que quebrei o silêncio:
- Disseste que irias ficar sempre comigo... Que não irias abrir mão de mim. Nunca...
- E tu também disseste que não irias a lado nenhum - rebateu.
O meu sorriso foi penoso.
- Mentimos os dois, não foi?
- Eu nunca te menti.
Continuava a atingir-me com a verdade, dura como aço. E eu a desfazer-me em células, a reconstruir-me desesperadamente colando tudo com fita-cola, os remendos visíveis, mascarando as feridas, inventando que era ele que se iludia, mas a culpa continuava a ser minha, só minha. A ilusão era também minha. O castigo por ter ousado entrar na fantasia.
Ah, mas trocaria eu aquela parcela de tempo ridícula, talvez menos de um segundo, em que fizera a escolha? Não, não... Renegaria a primeira imagem que vira dele, ocultado pela névoa da impossibilidade, quando me tinha salvado do assaltante na rua escura? Não! De costas para mim e eu vira a jaqueta azul, as calças escuras, as botas amarelas. Mirai Trunks na sua gloriosa presença e a mentira ria-se na minha cara ingénua, siderada, agoniada.
Roçou os lábios na minha testa. Murmurou:
- Sayonara... Ana-san.
- Trunks.
- Lembra-te de mim.
- Todos... - Arquejei, os olhos enchiam-se de água. – Todos os dias.
Mas prometera a Goku não chorar e haveria de não chorar.
Entrevi a corrente dourada do Medalhão de Mu, disfarçada sob a blusa que Trunks vestia naquele dia. Ele também viu a minha corrente dourada. Seria o nosso elo inquebrável, apesar de todas as distâncias e de todas as diferenças.
Afastei-me dele.
Acenei à audiência muda com uma mão, como se fosse indispensável fazê-lo. Voltei-me para a máquina das dimensões.
Bulma sentava-se diante dos monitores a operar a consola. Deu-me a indicação de que podia ocupar o meu lugar. Subi pelas escadas metálicas prateadas. Uma rajada de vento levantou-me a saia do vestido, revelando ao mundo as minhas cuecas brancas com florzinhas azuis.
Entrei na cabina, acomodei-me na cadeira vermelha. A cúpula baixava devagar. A máquina vibrava. Procurei por um cinto de segurança mas não o encontrei. Aconcheguei a saia do vestido, encaixei-me no assento vermelho. Na cúpula havia uma janela redonda de vidro verde por onde se podia ver o exterior, semelhante à escotilha de um navio.
Um estalido e estava fechada dentro da máquina das dimensões. No pequeno monitor onde corriam linhas de código piscava um relógio no canto superior esquerdo. Dez horas e cinquenta e quatro minutos. Seis minutos antes do horário. Era importante cumprirmos os horários, antecipá-los se possível, ganhar tempo.
Através da escotilha, vi Trunks e só o vi a ele.
Sem vacilar, agora. E sem lágrimas, Ana-san.
Carreguei no botão amarelo.
Os olhos azuis de Trunks foram a derradeira imagem que levei da Dimensão Z.
***
A viagem entre dimensões começou.
Agarrei-me à cadeira. As engrenagens tinham sido postas em movimento, o sistema arrancava. A cabina tremia terrivelmente e julguei que a máquina se ia desfazer. Fechei os olhos.
O ronco ensurdecedor dos motores encheu a cabina e eu já não sabia se devia utilizar as mãos para me segurar à cadeira, se para tapar os ouvidos.
Com um solavanco maior olhei para a escotilha verde. Já não havia nada, apenas uma mancha indefinida e cinzenta, como se estivesse a atravessar uma gigantesca pastilha elástica. Com um segundo solavanco, o corpo ficou colado à cadeira, todo esticado, a força da gravidade a multiplicar-se e o meu peso a aumentar até à raia do insuportável. Gritei sufocada.
A máquina chiou, imobilizando-se repentinamente.
Inspirei uma golfada de ar que me provocou uma tosse seca. Estava afogada, um peso medonho no peito, nos braços, nas pernas e no corpo todo. Mexi-me devagar, habituando-me à sensação de ter entrado noutra existência. Reparei nas mãos crispadas na cadeira vermelha. Eram as minhas mãos verdadeiras.
Levantei a cabeça.
A Dimensão Real.
O vidro da escotilha partiu-se. A cabina abriu-se com um rangido assustador e eu saltei da máquina, esquecendo-me que tinha uma escada metálica prateada para ajudar-me a sair do veículo. Aterrei de joelhos no relvado, gemendo com a dor. Olhei para trás. A fuselagem estava toda retorcida e, poucos segundos depois de a ter abandonado, a máquina desfez-se em sucata. Fugi dali, esfregando os joelhos magoados.
Estranhei o frio e abracei-me aos braços despidos. O vestido que tinha escolhido não era o mais indicado para um dia pardacento e húmido de outono e dei um estalido com a língua. Devia ter-me lembrado desse detalhe, que não estava programado no computador de Bulma.
A urbanização das Gambelas estava silenciosa.
Regressava aos poucos, respirando a medo aquele ar diferente, reocupando o meu lugar naquela existência, reconstruindo recordações, reorganizando a mente, preenchendo-a com as cenas a preto e branco do telescópio e colorindo-as no processo, apossando-me daquilo que eu já tinha tão resolutamente descartado. A máquina das dimensões estava agora irreconhecível, convertida numa amálgama enferrujada, uma relíquia arqueológica. Não passava de um pedaço de lixo a enfeitar o jardim de uma vivenda. Reconheci o lugar e senti o rosto arrepanhar-se. Era a vivenda de Trunks...
O meu carro estava no sítio onde eu o tinha estacionado, depois de ter vindo da praia. Entrei no carro para me proteger do frio. Tinha a mala no banco do pendura. Que inconsciência! E, ainda por cima, com o carro destrancado. Encontrei as chaves, liguei o motor, agarrei-me ao volante. Conferi a data e a hora. Os cálculos de Bulma estavam corretos, tinha acabado de fazer uma viagem no tempo.
Bem, estava na altura de voltar para casa.
Aumentei o volume do autorrádio.
Escutei uma canção dos Oasis, muito na moda por aqueles primeiros dias do outono de 1996, "Don't look back in anger". Pois, devia voltar para casa...
Olhei desesperada para as janelas do primeiro andar da vivenda.
Solucei, ainda mais desesperada.
Nós ainda estávamos ali. Eu... e Trunks. Nos braços um do outro, saboreando a primeira vez que nos tínhamos amado. Dormitando com a cabeça cheia de sonhos. Sem música, porque não tinha havido ninguém disponível para mudar o lado da cassete enfiada na aparelhagem.
E então lembrei-me, numa erupção de som e de luz, qual era a canção que acompanhou os nossos primeiros beijos, a nossa descoberta, as carícias dele nas minhas costas nuas, as minhas mãos pousadas no peito macio dele.
"Earth angel, earth angel,
Will you be mine,
My darling dear,
Love you all the time
I'm just a fool, a fool in love with you.
Earth angel, earth angel,
The one I adore
Love you forever, and ever more"
A música, que sempre nos acompanhara na minha dimensão, vinha para me assombrar, juntamente com o passado prenhe de memórias dispersas, colagens sem nexo num imenso álbum de fotografias.
Quebrei a promessa feita a Son Goku.
Apertei o volante até a pele das mãos estalar. Os soluços pareciam que me iam estilhaçar as costelas. O rio que despejava dos olhos ameaçava inundar-me o carro.
O meu anjo... O meu anjo perdido.
"Take that look from off your face..."
Dei um murro no autorrádio para calar o meloso Noel Gallagher, que foi acertar no botão da sintonização automática. Os números correram no mostrador e segundos depois pararam na estação mais próxima.
Ofeguei. Devia ter continuado com o meloso Noel Gallagher.
"When the night has come
And the land is dark
And the moon is the only light we see"
Olhei estarrecida para o autorrádio que transmitia "Stand by me" de Ben E. King. As ironias prosseguiam para me secar a alma. Soluçava, chorava. A última canção que ouvira antes de ter sido sugada para a Dimensão Z.
Olhei para a vivenda. Ainda estávamos ali, os dois, eu e Trunks. Eu escutava aquela canção enquanto me vestia. Ele tinha ido até à cozinha para preparar um lanche, pois eu gastara-lhe as energias e estava esfomeado.
A minha voz tremeu:
- "...No I won't be afraid... Just as long, as you stand... stand by me..."
Um clarão, um estalido.
A Porta dos Mundos abriu-se e fechou-se.
O silêncio foi ainda maior. Sólido, como uma nuvem de algodão sufocante. Escutei um trovão ao longe, o prenúncio de chuva.
Tinha de voltar para casa. Era tarde... Tarde demais.
Não me apetecia voltar, tinha medo de não me adaptar ao que era a minha vida. As minhas amigas, o trabalho, a vida enfadonha de solteira a morar na casa dos pais, ser a ex-namorada do André.
Sentada no carro, agarrada ao volante, a recordar, a tentar agarrar o momento que já tinha sido, a saber que a aventura tinha mesmo finalizado. Eu e Trunks. Eu e a Dimensão Z.
Apoiei a testa no volante. A corrente dourada mexeu-se e o triângulo dourado saltou para fora do decote. Já não palpitava, estava morto e frio como o meu coração.
A Dimensão Z sumira-se na espiral do Universo, misturara-se com as demais dimensões, transformara-se no lugar mais remoto do cosmos.
Num lampejo de loucura, implorei ao espírito despedaçado do feiticeiro:
- Zephir, faz-me regressar...
Só o vento me respondeu num uivo, gelando-me até aos ossos.
A dor rasgava-me em duas e compreendi que, apesar de ser o meu desejo mais fervoroso, não os veria nunca mais.
Nunca mais.
Continuava a chorar.
As minhas lágrimas, porém, eram partículas minúsculas naquele Universo que eu tinha ajudado a salvar.
Fim de entrada.
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