Capítulo III
III.1. A máquina das dimensões
A máquina das dimensões estava na Dimensão Z.
Bulma ficou boquiaberta ao entrar na oficina da Capsule Corporation onde trabalhava habitualmente. Porque teria vindo? Uma resposta provável seria que ficara, de alguma forma, ligada a esta.
Observou a estrutura incompleta, os fios pendurados, os interruptores desligados, as placas eletrónicas soltas. Era um testemunho incómodo de uma longa e dolorosa derrota de oito meses. Dera o melhor de si para pôr a máquina a funcionar, mas todos os seus esforços foram inglórios. Nada correra bem naquele projeto.
A máquina das dimensões... O mostrengo, corrigiu.
Afinal, nem tinham precisado da máquina, pensou, pois Trunks acabara por interagir e estavam de volta a casa. Talvez tivesse sido a solução mais fácil e também mais perigosa, mas fora certamente a única maneira de conseguir dormir descansada dali para a frente. Aquela máquina inacabada e o peso de ter de a acabar dentro de um prazo que ela sabia ser impossível de cumprir, estavam a dar-lhe cabo dos nervos.
- Foi melhor assim – murmurou convencida do que dizia.
O feiticeiro podia ser um deus, mas Goku e Vegeta e os outros guerreiros logo imaginariam uma qualquer ideia mirabolante para se desfazerem dele para sempre e a paz haveria de regressar. Goku sempre soubera o que fazer para salvar a Terra.
Cruzou os braços, a pensar que destino daria àquele esqueleto de chapa preta, amarela e azul. Iria desmanchá-la, decidiu. Não havia outra coisa que pudesse fazer. Sabia que a podia terminar com a tecnologia da Dimensão Z, mas não estava interessada naquele projeto, que haveria de lhe trazer más memórias e novamente noites mal dormidas.
Escutou um silvo nas costas, o ar moveu-se e voltou-se. Exclamou admirada:
- Vegeta!... Goku!...
- Yo, Bulma – cumprimentou Goku e, de seguida, foi direto ao assunto: – Precisamos do radar do dragão.
- Mais devagar...
Reparou nas roupas desfeitas dos dois guerreiros, no sangue seco. Franziu o sobrolho, corando irritada:
- E por onde andaram para se apresentarem nesse estado?
- Estivemos no Templo da Lua para salvar a rapariga da Dimensão Real e acabámos a lutar contra os guerreiros de Zephir. Escuta, agora não temos tempo para...
- Que rapariga?
- A namorada de Trunks.
- Ahn?
Olhou para Vegeta que tinha um ar enfastiado.
- Não temos mesmo tempo para grandes histórias, Bulma – disse o príncipe.
- Faz-me um resumo rápido.
- Mas, Bulma... – protestou Goku.
Ela espetou-lhe um dedo na cara, exigindo:
- Contem-me! É o preço do radar do dragão. Querem o radar, digam-me o que é que se está a passar!
Vegeta contou, com o mesmo ar enfastiado:
- Quando o teu filho interagiu com a intrometida da Dimensão Real, transportou-a para a Dimensão Z.
- A intrometida? A rapariga que se chama Ana, certo? Aquela que almoçou connosco, depois de ter desmaiado por saber quem nós éramos?
- Essa...
Goku perguntou rasgando um sorriso:
- Já ganhámos o radar do dragão?
Vegeta prosseguiu, sabendo que a curiosidade dela ainda não estava satisfeita:
- O feiticeiro precisa da intrometida para unir um medalhão que está dividido em duas partes para se tornar num deus. Fomos até ao Templo da Lua resgatá-la, tivemos de lutar, daí este estado. Ela está, neste momento, com o teu filho e com o filho de Kakaroto, escondida nas montanhas para não ser novamente apanhada pelo feiticeiro.
- Por que é que Son Gohan está com Trunks a proteger a rapariga?
- É Son Goten.
- Na-nani?! – Gritou Bulma.
- Não tinha morrido, apenas fora ferido com gravidade. Nestes nove dias em que estivemos na Dimensão Real, foi curado pelo feiticeiro.
- Não posso crer – balbuciou Bulma, a recordar todo a angústia, todo o receio, tudo o que se perdera por causa desse evento que, no final de contas, nunca tinha acontecido. Mas Trunks estava com Goten e haveria de fazer a sua própria cura. E aquilo que estava perdido teria de ser recuperado, o mal esquecido e enterrado, a memória purificada.
Vegeta concluiu:
- O feiticeiro, entretanto, já tem uma das metades do medalhão que necessita para se transformar num deus. Nós vamos procurar pelas bolas de dragão para pedir a Shenron a outra metade e ganharmos alguma vantagem e tempo sobre esse maldito feiticeiro que tem a lutar por ele dois demónios imortais e um super saiya-jin de nível três.
- E como é que sabem de tudo isso?
- O sacerdote do Templo da Lua que está com Dende sabia da existência da Dimensão Real e do medalhão.
- Aquele que Ten Shin Han salvou?
- Esse...
- Já ganhámos o radar do dragão? – Insistiu Goku.
Bulma abriu uma gaveta da bancada que forrava uma das paredes. Meteu a mão lá dentro e disse:
- Enquanto estava na Dimensão Real, desmanchei o radar do dragão para utilizar as peças na máquina das dimensões. Graças a estas, consegui progressos significativos. Fabriquei um temporizador e concluí o processador principal, que reconhecia as dimensões. O que quer dizer que, ao desmanchá-lo, acabei com o radar do dragão.
Goku alarmou-se:
- E não podes fabricar outro?
Bulma exibiu o radar. Era apenas uma caixa redonda, vazia e inútil, o mostrador verde apagado. Anunciou:
- Claro que posso!
- Tens de fabricar dois radares, Bulma – acrescentou Vegeta. – Eu também vou procurar pelas bolas de dragão. Iremos os dois, separados, para as encontrarmos mais depressa.
- Muito bem. Fabricarei dois radares, irei começar já. Leva-me metade de um dia para fazer um, pelo que só amanhã terei os dois aparelhos prontos. Fabricarei o primeiro para ti, Vegeta. O que quer dizer que, Son-kun, tens um dia inteiro por tua conta. Podes ir ter com Chi-Chi.
Goku indagou confuso:
- Para quê?
Ela explodiu:
- Baka!! Ela já sabe que Son Goten está vivo?
Ele explicou recuando um passo, com medo da fúria dela.
- Mas se eu acabei de o saber!...
- E do que é que estás à espera para ires encontrar-te com a tua mulher e contar-lhe essa magnífica novidade? Chi-Chi vai ficar radiante por saber que Son Goten está vivo, ela que sofreu tanto por pensar que o tinha perdido. Por que é que estás a perder tempo a olhar para mim com essa cara de idiota? Vá, despacha-te!! Utiliza essa tua Shunkan Idou e some-te daqui! Não te quero a espreitar por cima do meu ombro enquanto fabrico o radar do dragão.
- Está bem, eu vou...
- Vai já! É uma ordem, Son-kun!
Goku descaiu os ombros, rendido à fúria dela. Uniu os dois dedos na testa e disse:
- Djá ná... Amanhã, estarei de volta.
Sumiu-se com outro silvo.
- A maneira como vocês, saiya-jin, desprezam as mulheres...
- Nós não desprezamos as mulheres – defendeu-se Vegeta surpreendido.
Ela assentou as mãos na cintura.
- Honto?
Ele não a entendeu. Mudou o assunto, dizendo:
- Não queres começar a fabricar esse primeiro radar do dragão? Todos os minutos contam.
Ela mirou-o de cima a baixo, franzindo a cara. Acrescentou no mesmo tom presunçoso e ligeiramente irado que utilizara com Goku:
- E se não queria Son-kun a espreitar por cima do meu ombro, também não te quero a ti. Vai-te daqui. Consigo trabalhar melhor sozinha.
- Com muito gosto. Ver-te trabalhar, aborrece-me.
- Ainda bem. E vai trocar de roupa... Pareces... um mendigo.
As calças de ganga rasgadas nos joelhos e desfiada nos tornozelos, a camisa feita em farrapos davam, contudo, um aspeto sedutor ao príncipe dos saiya-jin, a exibição selvagem do seu espírito guerreiro. Bulma tentou não desmanchar a pose autoritária.
- Tu é que insististe naquele estúpido passeio e fizeste-me vestir isto – queixou-se ele irritado.
- Nunca pensei que um passeio de fim-de-semana na Dimensão Real acabasse assim.
Ele deu meia volta.
- Afinal... O que é interagir? – Quis saber ela.
Ele parou, enfiou as mãos nos bolsos das calças.
- Trunks foi para a cama com a intrometida.
Ela corou, apertou os lábios.
- Vegeta, não sejas grosseiro.
- Mas foi o que aconteceu.
- De certeza que Trunks também o fez com outras raparigas da Dimensão Real e nunca chegou a interagir com nenhuma. Será mais qualquer coisa...
- E o que interessa isso? Voltámos, certo?
- E o feiticeiro ainda não é um deus. Por aquilo que acabaste de me contar, o que Zephir pretendia ao enviar-nos para a Dimensão Real era alguém desse lugar para unir o medalhão que o irá transformar num deus. Fez-nos sofrer na Dimensão Real... Fez parte do castigo. Quis quebrar o nosso espírito.
Um curto silêncio. Mesmo de costas, Bulma sabia que ele sorria quando disse:
- Fez-nos mais fortes. Mais determinados.
- Iremos vencer... Acredito.
- Precisamos do radar do dragão, para começar.
- Claro.
Bulma puxou uma cadeira de rodízios, sentou-se. Empurrando com os pés aproximou-se da bancada. Abriu outra gaveta e retirou uma chave de fendas. Voltou a caixa redonda com o mostrador para baixo e começou a desaparafusar a parte de trás. Estranhou o silêncio, a ausência dos passos que o levariam para fora da oficina, mesmo que ele fosse sempre silencioso a caminhar. Fez a cadeira rodopiar. Descobriu-o, de braços cruzados, a observar com curiosidade a máquina das dimensões. Ela explicou:
- Sim, é a máquina das dimensões. Deve ter vindo agarrada a mim quando viajámos entre dimensões, por alguma razão que desconheço totalmente.
- O que é que vais fazer com a máquina?
- Vou desmantelá-la e aproveitar os seus componentes que são especiais, visto que vêm de outra dimensão. Já não precisamos da máquina para nada.
- Não...
Bulma apertou a chave de fendas.
- Não, o quê?
- Não a desmanteles. Deves terminá-la e o mais cedo possível.
- Nani? – Levantou-se e postou-se ao lado dele, olhando também para a máquina. – Para quê terminar a máquina das dimensões? Recordo-te que, da forma como está concebida, só permite fazer viagens unilaterais. Se estamos agora na Dimensão Z, irá possibilitar uma viagem de ida para a Dimensão Real. Sem retorno.
- Precisamente.
- E quem há de querer regressar, para sempre, à Dimensão Real?
- A intrometida.
- A rapariga? Porquê?
Vegeta encarou-a. O olhar era duro, negro.
- O feiticeiro precisa dela para ser um deus. Pode chegar o momento em que a situação esteja tão desesperada que não nos reste outra alternativa senão apenas sabotar os planos ambiciosos do feiticeiro. Como? Tirando-lhe a pessoa da Dimensão Real que pode utilizar o medalhão que o fará divino.
- Ele pode tornar a enviar alguém para a Dimensão Real com a ajuda do mesmo feitiço.
- Já não cairemos na mesma armadilha.
- E Trunks?
- O que é que tem Trunks?
Bulma gaguejou:
- Ele e a rapariga têm... uma relação. Os dois.
- A relação de Trunks com essa intrometida é o que menos interessa. Termina a máquina, Bulma. Acredito que o farás rapidamente, com a tecnologia da nossa dimensão. A máquina está quase terminada, não está?
Não estava a gostar do que ele lhe pedia, no que lhe dizia, apesar de compreender a lógica, a necessidade, a realidade indiscutível. Mas para além da razão, havia o coração. Sentimentos fortes embrulhando tudo, numa malha apertada mas frágil, o significado profundo de interagir, a felicidade do filho, o enlevo da rapariga, os dois cimentando um futuro construído sobre nuvens, sobre nada.
Ela insistiu, sabendo que estava derrotada, à partida:
- Devemos, primeiro, falar com Trunks... e com a Ana.
Mas o olhar de Vegeta permanecia duro, negro, e quando assim era ela sabia que ele nunca abdicaria da sua posição, a razão assistia-o, repisava o coração mesmo que, no fim, chorasse lágrimas de sangue.
- Escuta-me, Bulma. A intrometida não está aqui por causa de Trunks. Ela veio para a Dimensão Z por causa do feiticeiro. E deve regressar para o raio da sua dimensão por dois motivos. Primeiro: se nós tínhamos condições para estar na Dimensão Real, acredito que ela também as tenha para estar na Dimensão Z. Não poderá ficar aqui para sempre. Segundo: a presença dela coloca-nos a todos em perigo. O Universo inteiro!
O olhar dele, tão negro, tão duro, magoava-a. Baixou a cabeça.
- Escutaste-me?
- Demasiado bem, Vegeta.
- Então, termina a máquina das dimensões. Mas antes, termina o radar do dragão.
- Estás a ser cruel.
- Estou a ser realista! – Rematou e saiu finalmente da oficina.
O eco da voz dele ficou a vibrar-lhe no peito, sinistramente. Bulma sabia que Vegeta estava certo, mas havia algo de profundamente errado em tudo aquilo e não desejava que o filho tornasse ao martírio interior que experimentara na Dimensão Real.
Regressou à cadeira, entregou-se ao trabalho para esquecer o que acabara de ouvir. Se pensasse naquilo tudo entristecia, porque, interiormente, concordava com o que Vegeta dissera.
Retirou a tampa do radar do dragão, pousou-a com cuidado na bancada.
Teriam de combater Zephir com todas as armas.
III.2. Lar, doce lar
A janela da sua casa continuava igual, a mostrar o mesmo mundo. O que o aliviava, mas também o apoquentava. Por muitas aflições que pudesse experimentar, por muita dor que pudesse conhecer, o mundo haveria de continuar indiferente desde que girasse. Nove dias passados e tudo permanecia na mesma rotina, no mesmo ritmo. Aparentemente.
Gohan inclinou a cabeça, os olhos descaíram para o parapeito da janela. Não o via, nem as flores no jardim para além da vidraça, a rua sossegada beijada pelo sol brilhante. Concentrava-se num sítio longínquo, esforçava-se por perceber o que estava a acontecer, lendo os contornos e as mudanças das auras. No entanto, a energia libertada era a suficiente para ter uma certeza inabalável: nesse sítio longínquo combatia-se.
Fechou os olhos. A mente revolvia-se confusa com todas as sensações que vinham até si, como disparos luminosos, estampidos surdos, ar quente, falta de ar. Começou a filtrá-las devagar, descartando as menos indistintas e encontrou o ki do pai. O poder de Son Goku era inconfundível. Tinha-se transformado em super saiya-jin, nível três. Fizera-o pois o adversário – que deduziu ser Keilo – também tinha chegado ao mesmo nível de potência. O planeta tremia a espaços irregulares, tenuemente, persistentemente, rejeitando as forças imensas que se enfrentavam.
Alguém se roçou devagar nas suas pernas. Gohan olhou para baixo.
- Pan-chan?
A miúda cismava, como ele, com o que os vidros impecavelmente limpos da janela não deixavam ver.
- O ojiisan está a lutar... – murmurou ela.
- Hai.
- Tu também vais lutar, 'tousan?
Ele estremeceu.
- Por enquanto, estou apenas... a observar.
- Posso ajudar-te. Se fores, irei contigo.
Tornou a estremecer.
- Pan-chan, tu não vais lutar contra os guerreiros de Zephir. É demasiado perigoso!
- Sou uma saiya-jin – protestou ela.
- Só tens oito anos.
- Que idade tinhas quando derrotaste o Cell?
A impertinência dela escandalizou-o. Gohan corou, estremecendo outra vez. Muito antes de completar oito anos já combatia ao lado do pai e dos amigos do pai.
- As circunstâncias eram diferentes... E era mais velho do que tu.
Videl entrou na sala.
Abruptamente, como quem desliga um interruptor, os combates terminaram. Gohan susteve a respiração. Colou o nariz ao vidro, crispou o rosto, focou todos os sentidos no sítio longínquo.
- O que é que se passa? – Perguntou Videl parando atrás deles.
- Os combates, 'tousan – disse Pan admirada. – Acabaram! Já não sinto a energia dos combates.
- Combates?... Quem está a combater, Gohan?
Ele voltou-se para a mulher. Uma gota de suor escorreu-lhe da testa, alojando-se entre os óculos e a cana do nariz.
- O meu pai... Vegeta... Piccolo. No Templo da Lua.
- Nani? Mas se acabámos de regressar à Dimensão Z!
Pan puxou-lhe pelas calças.
- 'Tousan, por que é que os combates acabaram?
Videl olhava-o ansiosa e, de algum modo, triste, pois não havia luz nos seus olhos azuis habitualmente tão reluzentes. Ele limpou a testa com os dedos, sentiu a orla dos cabelos molhada.
- O que é que vais fazer, Gohan?
- Não... Não sei bem...
- Pan-chan. – Voltou-se para a filha. – Vai para o teu quarto. Preciso de conversar com o teu pai.
A miúda fez beicinho, cruzou os braços. Protestou:
- Se vão falar sobre os combates, eu sei o que é que se passa. Trata-se daquele feiticeiro mau chamado Zephir.
- Sem discutir... onegai shimass.
Pan ainda olhou para Gohan. Não conseguiu o apoio desejado e desistiu do braço-de-ferro. Descruzou os braços, esticou-os ao longo do corpo, punhos cerrados, rangeu os dentes e saiu da sala numa corrida contrariada.
Videl continuava ansiosa, mas a tristeza foi substituída por uma determinação feroz.
- Gohan-san, desta vez, não te vou deixar sair.
Ele refugiou-se na janela, perscrutando o horizonte, atrapalhado por não estar a conseguir alcançar os ki dos guerreiros do sítio longínquo. Os espíritos tinham diminuído a sua energia, o que lhe dificultava a tarefa, pois estava tão destreinado naquilo que aprendera quando era mais novo. Muito mais novo do que a filha, muitos anos antes de Cell.
Videl esperava uma réplica. Ele disse num tom neutro, numa tentativa de sossegá-la, de lhe arrancar a ansiedade, a determinação, a tristeza, o que quer que provocasse aqueles olhos gelados:
- Os combates acabaram, Videl... De repente, não sei explicar. Simplesmente, acabaram. O meu pai estava a combater, mas já não está. Não irei a lado nenhum.
- Ainda bem.
A pausa foi angustiante. Ele acrescentou, num murmúrio inseguro:
- Julgo que estão todos bem.
- Vejo que estás preocupado.
- O meu pai estava a combater... Claro que estou preocupado.
- Mas não aconteceu nada de grave.
- Estão todos bem – repetiu, apesar de os espíritos estarem tão ténues que já lhes tinha perdido o rasto. Desistiu do horizonte. Manteve-se à janela, a olhar para nenhures.
Sentiu a mão de Videl nas costas, a pressionar ao de leve.
- Se estão todos bem, não deves ficar preocupado. Em breve, terás notícias. Acredito.
- Não percebo por que é que foram combater... Zephir é agora um deus. O que foram fazer ao Templo da Lua?
- Em breve, saberemos – insistiu ela.
Conduziu-o até ao sofá, sentaram-se ao mesmo tempo. Ele pousou os braços nas pernas, entrelaçou os dedos, inclinou o pescoço. Ela mostrou-lhe um livro que apanhara na mesa de apoio.
- Lê um pouco, ajuda a passar o tempo.
Não lhe apetecia ler, muito menos um livro sobre teoremas matemáticos por resolver, mas não a queria contrariar e aceitou o livro. Deixou-o fechado entre as mãos, calcando a capa com a mão esquerda com receio de que esta se abrisse sozinha e o obrigasse a ler as fórmulas complexas das páginas.
- E para além de preocupado, vejo que estás com dúvidas.
Ele suspirou.
- Sou um saiya-jin... O meu dever é proteger a Terra. Não me podes impedir de lutar quando o planeta se encontra em perigo. Faz parte de mim.
Ela suspirou a seguir.
- Já tivemos esta conversa, Gohan-san.
Quando Videl era formal, significava que estava irritada.
- Pois já... É verdade.
- És teimoso. És um saiya-jin muito teimoso. Mas devo recordar-te, mais uma vez, da opção que tomaste há treze anos atrás?
- Não. A mesma opção que me levou a dar aulas na Dimensão Real.
- Precisamente.
- Mas há mais... Muito mais. O meu instinto também conta.
- Gohan-san!
Antes da explosão final, a campainha soou. Videl inflou as bochechas de ar, como se retivesse o próximo grito na boca fechada. Entreolharam-se confusos, não esperavam visitas. Ela soprou todo o ar que guardara, rasgou um sorriso, os olhos azuis encheram-se de luz e anunciou com alegria:
- As notícias chegaram!
Saltou do sofá, arrancou-lhe o livro das mãos, disse-lhe:
- Vamos, vai abrir a porta.
Ele foi. Encontrou Chi-Chi e Gyumao na entrada.
- Okaasan?... Ojiisan?
- Gohan-kun, regressámos à Dimensão Z!
Aquela frase espontânea da mãe deixou-o ainda mais desnorteado. E deixou-se ficar, a segurar a maçaneta da porta. Chi-Chi perguntou:
- Não nos vais convidar para entrar?
Afastou-se, balbuciando:
- Claro... Entrem... Entrem e fiquem à vontade.
Fechou a porta. Videl cumprimentou-os cordialmente, ofereceu-lhes uma taça de chá, mas Chi-Chi recusou energicamente. Estava excitada e foi direta ao assunto:
- Gohan-kun, sabes onde anda o teu pai?
Olhou para Videl, antes de responder.
- Acho que sei... Porquê, 'kaasan?
- Tens de encontrar o teu pai imediatamente. Ele deverá começar a procurar pelas bolas de dragão sem mais demoras. Já esperei tempo demais por este dia.
- Mas, 'kaasan... Acho que sei onde ele está, mas não vai ser fácil encontrá-lo – justificou-se, espreitando Videl que também não estava a perceber o que se estava a passar.
Mas Chi-Chi elucidou-os com um brilho pueril no olhar, as mãos crispadas junto ao peito:
- Chegou a altura de devolvermos a vida ao teu irmão Son Goten e não quero esperar nem mais um dia. O teu pai consegue encontrar as bolas de dragão num instante, com a ajuda do radar do dragão de Bulma. Preciso de Goku. – E berrou: – Já!
Gyumao limpou com o dedo indicador o ouvido esquerdo que se entupira com aquele berro. Gohan encolhera-se. Videl tentou acalmar a situação.
- Chi-Chi-san, percebo a tua urgência... Mas Gohan perderá muito tempo se for à procura de Goku-san, sem saber muito bem onde é que ele está.
- Ele deve estar na ilha, com Ubo.
- Talvez. – Videl olhou de relance para Gohan que corara ligeiramente.
- Ele consegue sentir o ki do pai...
- Quando está a combater, 'kaasan – explicou Gohan escondendo as mãos nos bolsos das calças, a olhar por cima dos óculos.
- E mesmo quando não está.
- Se estiver suficientemente perto.
- E mesmo quando está longe. Os teus treinos, que eu sempre detestei, serviram para alguma coisa. Para situações como esta, digo eu.
Chi-Chi empurrou Gohan na direção da porta da rua, acrescentando numa voz cada vez mais esganiçada:
- Vamos, Gohan-kun. Mexe-te. Estás a perder tempo.
- 'Kaasan!
- Já te disse. Preciso de Goku. – E terminou com um segundo berro: – Já!!
Naquele instante, Goku materializou-se no centro da sala.
Assustou-os a todos. Videl gritou. Gyumao deu um salto para trás, tropeçou no sofá e acabou sentado. Chi-Chi estacou, imobilizando-se no mesmo segundo. Gohan escancarou a boca.
- Goku! – Exclamou Chi-Chi.
- Otousan! – Exclamou Gohan, por sua vez.
Goku olhou em volta para reconhecer o sítio.
- Ah... Chi-Chi. Estás na casa de Gohan?
- Goku-sa, como é que sabias que estava à tua procura?
- Estavas à minha procura? Que coincidência! Eu também vim à tua procura... Mas encontro-te facilmente por causa da Shunkan Idou.
E começou a rir.
Gohan observou-o minuciosamente. Aparentemente, não tinha nenhum ferimento e exibia a boa disposição que o caracterizava. Nem parecia que tinha estado a combater até alguns minutos atrás, a não ser pela roupa ligeiramente amassada.
Chi-Chi postou-se diante de Goku, assentou os punhos na cintura e ordenou:
- Goku-sa, vais começar imediatamente a procurar pelas bolas de dragão.
Os sobrolhos dele desenharam dois enormes arcos, fez uma expressão de genuíno espanto, gaguejou:
- Pois vou... Mas só depois de Bulma construir o radar do dragão.
- Ah, que maravilha! – Exultou Chi-Chi. – Então, tiveste a mesma ideia que eu. Vamos ressuscitar Son Goten imediatamente. Esse feiticeiro que se transformou num deus pode esperar. Primeiro, o nosso filho!
- Mas as bolas de dragão não vão ser utilizadas para ressuscitar Son Goten.
A máscara de alegria de Chi-Chi estilhaçou-se. Berrou a plenos pulmões, vermelha como a lava de um vulcão em erupção:
- Nani?!!
Gyumao tapou ambas as orelhas com as mãos, suspirando. Há muito que havia desistido de tentar conter os ímpetos histéricos da filha.
- Goku-sa, perdeste o juízo?
Goku agitou as mãos para se proteger da ira da mulher.
- Calma, Chi-Chi...
- Não me peças para ter calma! Não queres ressuscitar o teu filho?!
- Não é isso. Não precisamos... Son Goten está vivo.
Novo estilhaçamento, desta feita da capa fervente de fúria. Chi-Chi arquejou, sem fôlego, empalideceu, colocou uma mão no peito como que a querer suster o coração que batia desvairado naquela viagem alucinante.
- Nani?!!
- Son Goten... está vivo. Foi para isso que vim ter contigo, para te contar isso.
Gohan perguntou:
- 'Tousan, o que foi que aconteceu? Como sabes que Son Goten está vivo?
- Estive com ele, no Templo da Lua. Ao que parece, nunca chegou a morrer. Ficou ferido gravemente e esteve a ser curado pelo feiticeiro nestes dias em que estivemos na outra dimensão.
- A ser curado para quê?
Goku encolheu os ombros. Enfiou os polegares no cinto branco, respondeu:
- Não sei... Talvez para ser enfeitiçado e para que combatesse ao lado do feiticeiro.
- E o que foste fazer ao Templo da Lua?
- Não fui sozinho. Vegeta, Piccolo e Trunks também foram comigo. Fomos buscar a rapariga da Dimensão Real. Aquela que era tua aluna...
O baque de ouvir aquilo sufocou-o. Gohan gaguejou:
- A... A Ana?
- Hai, essa mesmo. – Goku explicou sério: – Ao interagir com Trunks veio para a Dimensão Z e acabou prisioneira de Zephir. O feiticeiro precisa dela para se transformar num deus. Só o vai conseguir depois de unir um medalhão mágico e só quem o pode unir é alguém da Dimensão Real. A tua aluna!
- Eh... E o que é interagir?
Goku olhou para Videl, depois para Chi-Chi. Acercou-se de Gohan, tapou a boca com as costas da mão e segredou-lhe ao ouvido. As faces de Gohan ruborizaram.
- Honto? Só isso?
Goku encolheu outra vez os ombros.
- Pelos vistos...
- Então, o feiticeiro ainda não é um deus. E o que pensam fazer agora, em relação a Zephir?
- Que se dane esse maldito Zephir!
O berro de Chi-Chi sobressaltou-os. Ela exigiu transtornada, à beira das lágrimas:
- Se Son Goten está vivo, onde é que ele está? Quero vê-lo!
Goku explicou:
- Ele ficou com Trunks. Estão os dois a proteger a rapariga, para que não volte a cair nas mãos do feiticeiro. Foram para as montanhas, para a cab...
- Por que é que ele não veio contigo, para ver-me? Não sente falta da mãe?
- Mas para Goten apenas se passaram algumas horas, não tem necessidade de ver ninguém.
- Não lhe disseste que se passou uma imensidão de dias, que o julgávamos morto, que eu chorei tanto por ele? Não lhe disseste como sofri durante essa imensidão de dias?
- Não tive tempo para lhe falar assim tanto. Ele teve de partir com Trunks e eu fui com Vegeta até à Capsule Corporation, para ir buscar o radar para começar a procurar pelas bolas de dragão. Todos os minutos são preciosos, agora que podemos ganhar alguma vantagem sobre Zephir.
- E não pensaste que eu o queria ver, baka?!
Chi-Chi começou a soluçar. Condoído por ver o estado lastimoso da mãe, Gohan pousou as mãos nos ombros dela, uns ombros pequeninos que tremiam, agitados pelas emoções que se sucediam em golfadas, em extremos.
- 'Kaasan, tem calma. Son Goten irá voltar para casa.
- Quando?
- Depois de termos acabado com Zephir – respondeu Goku.
Chi-Chi gritou com as lágrimas a escorrerem pelas faces:
- Estou farta desse Zephir!
Goku entristeceu e murmurou-lhe com sinceridade:
- Estamos todos, Chi-Chi.
A meiguice dos olhos dele tranquilizou-a. Fungou, limpou as lágrimas da cara com a manga. Videl aproximou-se.
- Aceitas agora uma taça de chá, Chi-Chi-san?
Fez que sim com a cabeça. Fungou mais uma vez.
- Hai. Arigato.
Videl levou-a consigo para a cozinha, a murmurar-lhe palavras simpáticas e confortantes.
Gohan descobriu Pan a espreitar a sala no cimo das escadas. Não a chamou e a miúda, vendo-se descoberta, não procurou esconder-se. Deixou-se ficar e ele também deixou-a ficar, fingindo que não a tinha visto.
- E agora, 'tousan?
Goku esfregou a barriga e confessou:
- Agora, tenho fome e gostaria de comer.
- Ah... Claro.
- Onde está Pan-chan?
A miúda revelou-se com aquela deixa. Desceu as escadas numa correria a chamar por ele. Abraçou-se ao pescoço de Goku e os dois riram-se com uma felicidade que, apesar de destoar daqueles momentos angustiantes, mercê de um feiticeiro que não lhes dava tréguas, foi acolhida com alívio, um intervalo merecido nas atribulações.
Ficaram todos a jantar na sua casa e Gohan aproveitou para perguntar sobre os combates, daquele dia, no Templo da Lua. Goku contou-lhe sobre as façanhas de Keilo, com uma admiração que espantou Videl, pois dir-se-ia que falava de um companheiro, não de um inimigo que não lhe perdoaria qualquer falta e que lhe tiraria a vida na primeira oportunidade.
Tal como Videl havia dito, as notícias sempre tinham vindo. Assim, Gohan ficou a saber o que se iria fazer a seguir. Goku e Vegeta iriam procurar pelas bolas de dragão para pedir a Shenron a segunda metade do Medalhão de Mu.
III.3. A ira do feiticeiro
Nos aposentos do Sumo-sacerdote, a atmosfera estava pesada.
- Devia dar-vos um castigo exemplar para que aprendam a não ignorarem as minhas ordens, bando de incompetentes!
Como sempre a voz era monótona, sem pingo de entoação, mas os olhos raiados de Zephir cuspiam o mais elementar dos ódios. O colar dourado que usava refulgia com a luz das velas que ardiam nos castiçais de prata. A túnica vermelha caía-lhe desajeitadamente sobre o corpo magro, o que não impedia a nobreza orgulhosa e sombria do porte.
Kumis respeitava o mestre. Julep também o respeitava, mas não chegava aos exageros do irmão gémeo, que parecia mais temê-lo que respeitá-lo. Mas Keilo, o saiya-jin, vindo de um mundo aparte, desprezava-o e nem procurava escondê-lo.
- Julguei que tivesse sido claro. Nada de combates dentro do templo. E o que foi que sucedeu hoje? Combateram dentro do templo! Destruíram o centro do Universo, a glória da minha primeira conquista. Irritaram-me!... E vocês não queiram ver-me irritado.
- É impossível para um guerreiro controlar-se quando luta num potencial tão elevado. Existem... danos colaterais.
Zephir voltou-se para Keilo que falara. Encostava-se à parede, braços cruzados, um joelho fletido, queixo sobre o peito, olhos fechados.
- A destruição do Salão da Luz é mais que um dano colateral... – E cuspiu a palavra: – Saiya-jin!
Voltou-se depois para os demónios, apontou-os com um dedo esquelético.
- Vocês são os meus guerreiros. Servem-me, incondicionalmente. São utilizados por mim, criei-vos. Devem-me obediência, submissão. Devem-me a própria vida! Se não me servem, acabo com vocês... Mesmo sendo imortais, conheço o vosso ponto fraco, Julep e Kumis. E tu, saiya-jin, não passas de um reles feitiço, mesmo com todo esse poder que gostas de exibir. Não passas... de uma miserável lenda, poeira dos tempos, lembrança de uma raça extinta. Vives porque eu quero. E se eu quiser, acabo contigo.
Keilo encarou-o. Ameaçou com um sorriso torto, exibindo os dentes.
- Sim, fá-lo, feiticeiro. Acaba comigo... Depois serás tu a enfrentar sozinho Kakaroto... Será digno de se contemplar. Apenas com uma mão, ele vai conseguir partir esse teu pescoço raquítico. E o ambicioso feiticeiro que se serve de um livro mágico de um espírito do Outro Mundo e da sabedoria de um templo vazio para conquistar o Universo... deixa de existir.
A ameaça foi intolerável, apesar de Zephir ter apreciado a ousadia. Utilizar um saiya-jin era perigoso, mas compensador, em determinados momentos. Haveria de ser o seu garante da vitória total. Era-lhe demasiado precioso, apesar de o odiar. Mas também o dominava e isso era o que lhe dava mais prazer, domar o indomável, anular o rebelde.
Elevou um braço, encurvou os dedos da mão, como uma garra. Keilo ajoelhou-se com um grito, agarrou-se à cabeça. Tremia em convulsões dolorosas, berrando. Os dois demónios não se mexiam.
- Volto a afirmar, saiya-jin. Vives porque eu quero. Se eu desejar, voltas à poeira dos tempos, à lembrança... E, pelo que tenho visto, talvez deixes de ser uma lenda. Procurarei outra... Existem milhentas pelo Universo fora. Basta um feitiço e terei comigo outro guerreiro poderoso... Submisso. Um guerreiro que lute por mim...
Keilo urrava, babando-se, tentando escapar-se da garra que o manietava.
- E sabes, saiya-jin? Irei ser o Senhor do Universo... Um deus. Muito em breve. E não faltarão guerreiros que lutem por mim, os melhores, os invencíveis. As lendas!... Nessa altura, não precisarei de os inventar com os meus feitiços, eles virão. Tão reais quanto eu.
Baixou o braço. Keilo calou-se com um ronco. Quedou-se ajoelhado, a arfar.
- Tem cuidado. Repito: não queiram ver-me irritado.
Com um estalar de dedos, fez a pedra de cristal voar de um nicho e aterrar numa mesa de mármore branco, finamente esculpida, situada no centro dos aposentos. Assentou as mãos no tampo, a pedra de cristal luziu, iluminando-lhe a cara sinistra.
- Aquilo que fizeram ao Templo da Lua foi abominável. Devia castigar-vos, mas só iria perder tempo e despender esforços desnecessários. O que está feito, feito está. Não se pode voltar ao passado e remediar erros para consertar o presente.
Engoliu devagar.
- Estou desagradado com o correr dos acontecimentos. Son Goku e os seus companheiros adiantam-se. Graças à vossa incompetência, levaram a rapariga da Dimensão Real e levaram também o jovem saiya-jin que estava a curar para lutar ao vosso lado. Enfim, contratempos que estou disposto a relevar, pois sei que o pêndulo da vitória ainda dança do meu lado. Chamei-vos, não apenas para vos avisar que não tolerarei mais desobediências, mas também para incumbir-vos de uma nova tarefa. Que confio que será cumprida com acerto.
Os dois demónios nem pestanejaram quando Zephir depositou neles um olhar frio e incisivo. Anunciou:
- Quero que vocês procurem pelas bolas de dragão.
- Bolas de dragão? – Indagou Julep.
O cofre prateado que estava em cima da mesa abriu-se e uma pequena esfera cor-de-laranja transparente, com uma estrela vermelha no interior, flutuou no ar.
- Isto é uma bola de dragão – explicou Zephir a controlar a bola com o seu poder mental. – Existem sete no total. Quero que procurem pelas seis bolas de dragão que faltam e que mas tragam.
- E onde estão as outras seis bolas de dragão, sensei? – Perguntou Kumis.
- Estão espalhadas pelo planeta.
A bola de dragão regressou ao cofre prateado. Continuou:
- A pedra de cristal irá dar a sua localização. A seguir, irei imprimir no vosso cérebro essa informação através da magia. Julep, tu irás procurar três bolas de dragão e Kumis, tu irás procurar as restantes três. Aproximem-se!
Os demónios obedeceram.
A luz da pedra de cristal aumentou e começou a cintilar. Zephir roçou as mãos pela sua superfície áspera, como que a absorver o brilho. Os lábios começaram a mover-se, a murmurar o conjuro necessário. A pedra encheu-se de imagens intermitentes, a tremer debaixo das suas mãos. Cintilou um pouco mais e, a seguir a um clarão mais intenso, apagou-se. Zephir alçou os braços e depositou as mãos na testa dos demónios, sobre o "M" negro. Deu-lhes o conhecimento que eles precisavam e adiantou:
- Assim que encontrarem uma bola de dragão, quero que a tragam imediatamente para o Templo da Lua. A seguir, saem para procurar as restantes.
Julep e Kumis inclinaram-se numa vénia e responderam:
- Hai, sensei.
- Já conhecem a localização das seis bolas de dragão. Agora, partam!
- Hai.
- E não me dececionem.
Os demónios saíram dos aposentos.
Zephir afagou a pedra de cristal que voltava a luzir timidamente e olhou para Keilo que se levantava, roncando ao de leve. Havia um odor incómodo a pele queimada. A boca arrepanhou-se-lhe numa espécie de sorriso. Dera-lhe uma excelente lição, que haveria de durar até à próxima tentativa de rebelião. Que iria ocorrer, ele não tinha dúvidas. Keilo era um desafio constante à sua autoridade. Um teste ao grande Senhor do Universo.
- Saiya-jin, tu ficas para proteger o Templo da Lua, caso Son Goku regresse para me tentar destruir.
Keilo endireitou-se, tremendo, os músculos tensos.
- Ouviste a minha ordem?
- Hai... sensei – respondeu a custo, a voz rouca.
E também saiu dos aposentos.
Quando se achou sozinho, Zephir atirou-se para um banco, fatigado, sem energias. Pensou no Salão da Luz, transformado num monte informe de escombros. A boca amargou-lhe, o coração ficou ainda mais seco.
Sabia que iria ter um caminho espinhoso até à glória, tinha-o lido nos livros da Sala Sagrada.
"A Terra está protegida... por poderosos guerreiros das estrelas".
Mas nunca julgara que fosse assim tão espinhoso. Aquele maldito Son Goku estava a ser um adversário formidável, pior do que antecipara.
Concentrou-se noutro pensamento... Algo importante, fundamental, que não se podia dar ao luxo de ignorar. Cravou os olhos vermelhos na pedra de cristal. E lembrou o que não devia nunca esquecer: Toynara estava vivo!
III.4. O refúgio nas montanhas
Entrada no meu diário, data: desconhecida, estou noutra dimensão
O sol baixava no horizonte, atrás das montanhas que de verde tinham passado a negro, e no céu espalhava-se um mar cor de fogo. Com o fim do dia vinha um vento frio que me deixava ainda mais enjoada e desconfortável.
Viajava pelos céus com Trunks, ao nosso lado Son Goten.
No início, tinha sido divertido. Deixara o Palácio Celestial a voar e nunca tinha voado na vida. Bem, não considerava aquela vez com o demónio, porque aquilo fora mais uma queda do que um voo, tinha desmaiado no início e não vira nada.
A primeira sensação fora aflitiva, mas também de deslumbramento. A suprema liberdade. O rosto, batido pelo vento agreste das alturas, enchendo-se de luz. O corpo em arrepios incontrolados. A segunda sensação fora de um medo atroz. Estava em segurança, todavia, tinha o braço de Trunks na minha cintura, cingindo-me contra si. Mas para me sentir ainda mais segura, agarrei-me a ele com toda a força. Depois de ter visto o interior do céu, escondi a cara na curva do ombro dele e fechei os olhos.
A velocidade com que voávamos calava qualquer tentativa de conversa e, por isso, não se falou nada. Depois de alguns minutos em que parecíamos balas a trespassar o ar, abrandámos e o voo tornou-se lento, quase como se estivéssemos a ser transportados pela brisa. Deduzi, porque não cheguei a perguntar, que Trunks e Goten utilizavam pouca energia para não sermos detetados. Afinal, iríamos para um local secreto.
Assim, o que começara como uma viagem excitante de montanha russa, acabara por ser um acontecimento tão monótono como uma travessia do deserto através de uma estrada esburacada, a bordo de um autocarro apinhado de gente e sem ar condicionado.
O dia acabava e eu estava moída, os braços e as pernas dormentes por estarem há horas na mesma posição. Tinha a impressão que já devíamos ter chegado, mas que andávamos às voltas para despistar qualquer tentativa de seguir o nosso rasto. Sobrevoávamos uma floresta densa que cobria umas montanhas que pareciam infindáveis. Ou seriam as mesmas montanhas de há três horas atrás. Ou seria eu que já não aguentava mais estar ali pendurada em Trunks.
Quando o sol desapareceu e o céu se tornou violeta, baixámos até à floresta. Goten aterrou suavemente e Trunks aterrou logo atrás. Afrouxou o abraço e pousei aliviada os pés em chão sólido.
Diante de nós estava uma cabana pequena, encostada a duas árvores de troncos grossos. Na fachada tosca recortava-se uma porta e uma janela. O telhado, pontiagudo, era feito de ramos entrelaçados, coberto de folhagem.
- Chegámos – anunciou Goten.
- É isto? – Perguntou Trunks.
- Hum-hum... Sei que tem um aspeto horrível, mas é só uma moradia temporária.
Trunks abriu um rasgado sorriso.
- É perfeita!
Avançou, Goten seguiu-o. Olhei em redor, apertei os braços. Fazia frio nas montanhas. Estava uma escuridão medonha e os animais noturnos começavam a movimentar-se, escutava-se um restolhar distante, pios e guinchos. Fui atrás dos dois rapazes, entrei na cabana.
Tinha apenas um compartimento, decorado com um baú poeirento, um par de prateleiras por cima deste e um colchão, fino e largo, tapado com diversos cobertores. Havia ainda uma bacia junto ao colchão.
- Bem, espero que seja do vosso agrado, caros hóspedes – começou Trunks zombeteiro, sorrindo.
- Devia ser eu a dizer isso, não? Afinal, a casa é do meu pai.
- Concordo. Então, meu caro anfitrião – prosseguiu no mesmo tom, a voz cómica, voltando-se para Goten –, o que tens para nos oferecer?
- Eh... Dormida?
Goten apontou para o colchão. Acrescentou, o dedo apontando para o baú:
- Ali estão roupas que pudemos usar Eu irei precisar, de certeza. Tenho o dogi todo rasgado.
- E comida?
- Teremos de nos alimentar com o que existe na montanha. Frutos silvestres... Sei que há macieiras selvagens.
- Ótimo! Estou cheio de fome. Não tens fome?
Os olhos de Goten brilharam na penumbra.
- Hai, Trunks-kun! Também precisava comer qualquer coisa.
- Também tens fome, Ana?
Era a primeira vez que Trunks falava comigo. Foi estranho, diferente, quase trivial. A película daquela dimensão que nos transformava em animações insufladas de vida filtrava os acontecimentos, como se fosse tudo novo, como se o que já tivesse acontecido não importasse. Senti a distância entre mim e Trunks como algo sólido. Respondi:
- Hai, também tenho fome...
- Goten, vamos buscar qualquer coisa para comer.
- E a Ana?
- Ela fica aqui.
- Não a devíamos deixar sozinha, Trunks-kun.
- Apenas alguns minutos... Seremos mais rápidos se formos só os dois. – Olhou para mim. – Não te importas, pois não? De ficar aqui alguns minutos?
Abanei a cabeça.
- Não.
Teria a viagem entre as dimensões apagado a memória? Ou os sentimentos e as promessas? A dúvida incomodou-me, como uma picada de um bicho.
- Vamos, Goten. Quanto mais depressa formos, mais depressa regressamos.
- Hai.
Encostaram a porta depois de saírem. Escureceu dentro da cabana.
- Estou a ouvir o teu estômago a roncar.
- É que estou mesmo com fome, Trunks-kun!
- Mas não estiveste a curar-te, estes dias todos?
- Estive.
- Então, não devias ter fome. As tuas energias foram repostas na totalidade.
- Talvez tivesse sido da viagem.
- O que é que sugeres, anfitrião? Que iguarias nos reservas para o banquete desta noite?
- Não brinques, Trunks-kun. Não conheço assim tão bem este sítio... Só estive cá uma vez! Vamos ver o que é que conseguimos encontrar.
- E sem tropeçar em nenhum animal...
- Com a fome que tenho, até me apetecia tropeçar num animal. Um javali ou coisa do género.
- Terias de o comer cru. Não podemos atear fogo, ou seremos descobertos.
- Cru?! Nem penses!
Gargalhadas. As vozes deles perderam-se ao longe, levadas por uma rajada de vento.
Sentei-me no colchão. Atirei-me para trás, braços estirados ao longo da cabeça. Estava escuro e havia silêncio. Perfeito. Fechei os olhos. Cansada, adormeci pouco depois.
Fim de entrada.
III.5. A bola de dragão de três estrelas
Kumis fechou os olhos para rever mentalmente a localização da bola de dragão. Guiara-se até àquele local pelo instinto que a magia de Zephir lhe conferira, as visões que lhe tinham sido impressas a fogo na mente. Não conseguia pensar em mais nada até que completasse a sua missão, começava a ficar irritado com aquele zunido persistente e um demónio irritado era muito perigoso.
O rio gorgolejava entre pedras e plantas, abrindo caminho através da floresta escura, perdendo-se numa curva, precipitando-se numa cascata ruidosa ao fundo. As sombras aquietavam-se, sustendo qualquer marulhar que denunciasse o que eram ou o que escondiam e apenas se escutava o curso de água, que não podia deter o seu caminho sedento até ao mar longínquo. Porque as sombras se tinham apercebido da chegada dele.
A bola de dragão estava no rio.
Mergulhou, sem se deixar afetar pela água gélida. Nadou lentamente, parou ao alcançar um tufo de algas fluviais. Afastou-as e descobriu a silhueta redonda da bola de dragão. Passaria despercebida se não soubesse exatamente onde procurar, pois ao longe não era mais que uma pedra com um formato invulgar. Agarrou na bola de dragão e regressou à superfície.
O demónio elevou-se no ar, encharcado. Observou a bola que acabava de recuperar para o mestre. Era igual àquela que Zephir lhe tinha mostrado, com a única diferença de esta ter mais estrelas. Três, contou-as.
Sorriu.
Rodeava-o um silêncio sepulcral. A sua presença incomodava as criaturas vivas da floresta, percebia-lhes o medo. Vibrou com essa sensação, soltou uma gargalhada. O zunido do seu cérebro calou-se e ele sentiu-se mais distendido, solto, aliviado, liberto de um peso que lhe esgravatara a alma com a voracidade de umas mandíbulas monstruosas.
Segundo as ordens deveria regressar ao Templo da Lua logo que conseguisse uma bola de dragão. Kumis aumentou a energia e desapareceu na noite.
III.6. Amigos para sempre
Os frutos daquela macieira selvagem desapareciam num ápice, sugadas por mãos ávidas. Por detrás da folhagem que se agitava, escutava-se o mastigar aflito de dois rapazes famintos, numa competição para determinar quem conseguia devorar a maior quantidade de maçãs no menor espaço de tempo, antes do protesto seguinte dos estômagos exigentes.
- Deixa ver se percebi.
Um ramo rangeu e Goten surgiu de cabeça para baixo, enrolando as pernas neste, segurando-se pela dobra dos joelhos.
- Todos os que estavam ligados ao meu pai foram enviados para a Dimensão Real quando Zephir enfeitiçou o meu sangue e só podiam regressar se algum de nós interagisse com alguém dessa dimensão. Só que não se podia interagir, pois o feiticeiro avisou-nos que, se o fizéssemos, ele seria transformado num deus. Então, viveram dias de pesadelo com medo de interagir e com medo de que passasse o prazo dos doze meses, doze dias na nossa dimensão, e que nunca mais pudessem regressar.
- Hum-hum. É isso mesmo.
Trunks contara, finalmente a história muito comprida, que acabou por não ser tão comprida assim, pois optara por resumi-la e apresentar um relato que faria o efeito desejado: acalmar a curiosidade do amigo. Encostava-se ao tronco da macieira selvagem, sentado num ramo abaixo daquele onde Goten balançava.
- Mas tu acabaste por interagir com aquela rapariga.
- Hai... A Ana.
Goten deu uma dentada na maçã que tinha na mão.
- Não tiveste medo, Trunks-kun?
- Do quê?
- De transformares Zephir num deus... De criares um inimigo que o meu pai, nem o teu, conseguiriam derrotar?
Trunks encolheu os ombros, mastigando a sua maçã.
- Não me importava com nada disso... Estava magoado com o que tinha acontecido. Pensava que estavas morto.
- Mas não estava.
- Não sabia disso. Ninguém sabia...
- Foi uma jogada arriscada.
Acabaram com as respetivas maçãs ao mesmo tempo, atiraram os caroços para longe. Trunks confessou, quase envergonhado:
- Tentei várias vezes interagir, nunca aconteceu. Mas acabou por acontecer quando não estava à espera.
Goten deslizou do ramo, pendurou-se por um braço. Reparou no trio de maçãs que Trunks guardava no colo. Escolhera as que pareciam mais sumarentas, recolhera-as para ela, pensava nela, mesmo quando falara da Dimensão Real, quando comera, quando se rira, ali, sentado naquele ramo.
- Gostas dela.
- Nani?
- Gostas da Ana... E gostas a sério.
A escuridão da noite escondeu o rubor que incendiou o rosto de Trunks. Confessou com a voz a tremer:
- Interagi com ela. Gosto dela, sim...
- E o que é isso? Interagir?
- Fiz amor com ela.
Foi a vez de Goten corar. Trunks conseguiu perceber que o envergonhara, aproveitou a descoberta para voltar a controlar a situação.
- É muito especial fazer amor com uma rapariga quando gostas mesmo dela. Vais ver como vai ser diferente quando acontecer com a Maron.
A cara de Goten coloriu-se de vermelho vivo, como uma das maçãs que tinham acabado de comer. Trunks riu-se.
- O que foi? Não me digas que...
Goten saltou para o chão, anunciando com uma voz esganiçada que deveriam regressar à cabana, a rapariga estava lá sozinha, devia ter fome e ele não tinha apanhado aquelas três maçãs para ela?, pois então, deveria levar-lhas.
Trunks saltou também. Perguntou:
- Nunca o fizeste, pois não?
- Temos de conversar sobre isso agora?
- Não há qualquer problema...
- Não quero conversar sobre isso agora.
- Vai ser ainda mais especial. Tu e a Maron.
- Ela só tem dezasseis anos.
- E depois? A tua mãe não casou com o teu pai com dezoito?
- Isso já foi há tanto tempo... Eh! E como é que sabes essas coisas?
- A minha mãe, às vezes, fala de coisas passadas, apesar de o meu pai detestar esse tipo de lamechices, como lhe chama. Recordar o passado! – E imitou a voz de Vegeta.
Goten deu um pontapé numa pedra e começou a descer a colina onde existiam as macieiras selvagens. Um dos sítios onde podiam ir buscar alimento. Havia também amoreiras e diversos arbustos com bagas comestíveis, explicara. Quando Trunks lhe dissera que achava estranho Goku alimentar-se apenas de fruta durante os treinos que deveriam ser exigentes, acrescentara que havia muito peixe no rio, javalis e veados que poderiam caçar e sempre enchiam mais a barriga. E teriam de arriscar e acender uma fogueira, pois ele não iria comer carne de veado crua.
Foram em silêncio e chegaram à cabana num instante.
- Ei, Goten.
- Hum?
- Amigos?
- Nani?... – Goten piscou os olhos, desnorteado. – Mas sempre fomos amigos. Irmãos. Companheiros de combate.
Trunks apartou o olhar.
- Fiz-te muito mal – confessou.
- Ora... É passado. Lamechices! – E foi a vez de Goten imitar a voz de Vegeta. Assentou uma mão no ombro de Trunks. – Ainda não me contaste tudo sobre essa Dimensão Real. De certeza que fizeste amigos lá... Conheceste raparigas... Antes da Ana, claro.
Trunks sorriu.
- Conto-te tudo. Teremos bastante tempo para isso, durante estas férias na montanha.
- Hai.
Dentro da cabana havia silêncio e escuridão. Trunks chamou pela Ana, mas não obteve qualquer resposta. Deixou as três maçãs em cima da prateleira por cima do baú, Goten apontou para o colchão.
- Ela está a dormir. Olha!
- Eh... Nem sequer comeu. Mas vamos deixá-la dormir. Afinal, fez uma viagem entre dimensões, esteve no Templo da Lua e andou a voar. Deve ter ficado cansada.
- Viajar entre dimensões cansa?
- Os nossos corpos na Dimensão Real eram mais pesados. Ainda me levou algum tempo a habituar-me ao peso, à falta de ar. – Deu uma cotovelada em Goten. – Olha, vamos deitar-nos também. Não devemos fazer barulho a conversar, senão estragamos-lhe o descanso.
Trunks espreguiçou-se e saiu-lhe um bocejo. Despiu a t-shirt e os calções, atirou tudo para cima do baú. Descalçou as sapatilhas, as meias, enfiou-as dentro das sapatilhas e estendeu-se no colchão. Percebeu que Goten ficara de pé, sem mover um músculo.
- O que é que se passa?
- E onde é que eu vou dormir?
- Aqui. – Puxou a Ana para si, para arranjar espaço. – Nesse canto. Acho que te vai chegar.
- Dormir com ela?
- E comigo! – Indignou-se Trunks. – Nem te atrevas a tocar nela.
- Não! Claro que não. Mas... E ela não se vai importar?
- Não se vai importar de nada, desde que esteja comigo. Vá, deita-te de uma vez!
Goten não se despiu. Deitou-se envergando o dogi esburacado. Pousou a cabeça nos braços, fixou o teto. Na penumbra, Trunks sorriu com o acanhamento do amigo.
Depois, concentrou-se na Ana, aconchegando-a no seu abraço, enlevando-se no calor que ela emanava. Cheirou-lhe os cabelos, relembrando os últimos momentos que tinham passado juntos na Dimensão Real. Apercebeu-se que mal tinham conversado na Dimensão Z, a vertigem dos acontecimentos seguintes ao regresso tinha-os impedido de estarem juntos. Também nunca julgara que tinha interagido com ela e nunca sonhara que seria possível transportá-la com ele durante o processo. Aqueles dias nas montanhas haveriam de servir também para se aproximarem mais e para encetarem novas descobertas. E divertiu-se a antecipar as complicações pelas quais ela haveria de passar enquanto se adaptava àquela nova aparência.
Goten disse em surdina, para não perturbar o sono da rapariga:
- Há uma coisa que não percebo...
- O quê?
- Quando me encontrei com ela no Templo da Lua, reconheceu-me. Chamou-me pelo nome.
- Nós também existimos na Dimensão Real, sob uma forma que nunca podíamos conhecer ou morríamos. Ela conhece-nos daí. A nossa dimensão, para a Ana, chama-se "Dragon Ball".
- Honto? E o que é isso, "Dragon Ball"?
- Somos nós, as nossas vidas. Acho que ela conhece tudo sobre o teu pai, sobre o meu. Sobre ti.
- Ah... Que estranho...
No silêncio, escutou-se o marulhar das árvores.
- Sabes uma coisa, Trunks-kun? Acho que foi a Ana que me salvou.
Uma curta pausa.
- Porque é que dizes isso, Goten-kun?
- Foi ela que desligou a caixa onde eu estava a ser curado pelo feiticeiro. Se não fosse ela, não estaria agora aqui, contigo, e não saberias que eu estava vivo. Provavelmente, neste momento, seria um prisioneiro de Zephir, pronto para ser enfeitiçado e depois seria eu que lutaria contra ti até à morte.
- A Ana é muito especial.
Mas avisou, de seguida:
- Mas é minha!
- Eh, Trunks-kun. Continuo a gostar da Maron. – Perguntou com ternura: – E a Maron? Viste-a na Dimensão Real?
Recordou uma conversa franca, recordou uma discoteca. Recordou uma noite no hospital. Trunks sentiu-se tonto, não queria recordar. Lamechices, Vegeta tinha razão.
- Vi... Algumas vezes – respondeu. – Sobreviveu à Dimensão Real.
Haveriam de ser sempre amigos, ele e Goten, tinha pensado na altura da conversa franca. Acrescentou convicto:
- A Maron é uma rapariga cheia de sorte por ter-te a ti a gostar dela. Ela irá perceber isso, um dia.
Calaram-se.
Em breve, todos dormiam na cabana das montanhas.
III.7. O radar do dragão
Bulma carregou no botão várias vezes, fazendo soar o bipe-bipe habitual. No pequeno mostrador redondo e verde apareceram alguns pontos com números que iam diminuindo de tamanho, a acompanhar os quadrados do mostrador que também minguavam, até formarem um esquema num mapa.
- O radar do dragão está a funcionar?
Vegeta entrava na oficina. Vestia roupa mais confortável, umas calças largas, uma t-shirt branca debaixo de um casaco de fato-de-treino, calçava as botas flexíveis do uniforme de combate. Tinha ido dormir e tomara banho. Até se perfumara, o que era estranho para aquilo que iria fazer a seguir. Ela espreitou o relógio. Era de madrugada, quase cinco da manhã. Respondeu:
- Hai, está a funcionar.
- Ótimo!
Depositou-lhe o radar na palma da mão.
Goku apareceu.
- Son-kun.
Ele respondeu-lhe com um sorriso fresco. Também tinha descansado e trocado de roupa. Usava o dogi alaranjado, uma faixa larga azul-escuro a cingir a túnica, as botas pretas, a indumentária que lhe era habitual, tudo impecavelmente lavado. Mesmo que não estivessem juntos, por causa dos treinos de Ubo, Chi-Chi continuava a cuidar das coisas de Goku de uma forma exemplar e, a seu modo, comovente. Bulma sorriu-lhe de volta.
- A conversa com Chi-Chi foi longa.
- Hai. Estivemos a jantar em casa de Gohan e depois fomos para a nossa casa. Aproveitei para dormir depois de ter comido até rebentar. Há algum tempo que não dormia na nossa casa... – Coçou a cabeça, pensativo. – Sem contar com aquela vez, na Dimensão Real.
- Aproveitaste para pôr toda a conversa em dia? – Perguntou com malícia, piscando o olho.
- Eh... Hai. Chi-Chi não reagiu muito bem quando lhe disse que Goten estava vivo, porque queria vê-lo e ele não estava comigo, mas ter ficado com Gohan e com Pan e com Videl acabou por ajudar a esquecer a falta do filho mais novo.
Ele não tinha percebido a indireta e ela desistiu.
Goku perguntou, ao ver o que Vegeta tinha na mão:
- O primeiro radar está construído?
- Tal como tinha prometido – disse Bulma. – Vou já começar a construir o segundo. No final da tarde, de acordo com os meus cálculos, estará pronto.
Na bancada aglomeravam-se peças minúsculas e uma caixa redonda branca vazia, onde se iriam inserir todas aquelas peças e convertê-la num sofisticado mecanismo.
- Por isso, se quiseres, podes voltar para casa, Son-kun.
- Não, vou ficar.
Vegeta encaminhou-se para a porta. Goku chamou-o.
- Espera! Temos de combinar que bolas de dragão é que cada um vai procurar para não andarmos atrás da mesma.
- Fácil. Vou procurar as bolas de dragão que estão a leste e tu vais procurar as que estão para oeste. Estamos combinados?
- Hai. É uma boa ideia. E... Posso pedir-te uma coisa?
- O quê, Kakaroto?
- Como o radar só vai estar pronto no final do dia e como vou ficar por aqui, estava a pensar em distrair-me na câmara de gravidade. Posso utilizá-la, Vegeta?
- Podes.
A alegria encheu o rosto de Goku.
- Arigato, Vegeta!
O príncipe sorriu e saiu da oficina. Bulma puxou a cadeira para a bancada e debruçou-se sobre as minúsculas peças, consciente que todos os minutos eram preciosos. Goku despediu-se com entusiasmo:
- Bulma, não quero atrapalhar o teu trabalho. Vou treinar-me.
- Djá ná, Son-kun.
- Djá ná.
Ficou sozinha na oficina a pensar naqueles saiya-jin que não tinham emenda. Viviam para treinar, lutar, comer. À sua maneira, estimavam muito as suas mulheres, Vegeta tinha-lho confirmado, mas trocavam-nas, sem hesitar, por uns segundos de excitação de um combate impossível.
Começou a construir o segundo radar do dragão a pensar como a sua vida teria sido aborrecida se, naquele dia de um passado remoto, não tivesse partido para as montanhas em busca de uma lenda e onde acabou por encontrar um estranho miúdo com rabo de macaco que nunca tinha visto uma rapariga.
III.8. O primeiro dia
Entrada no meu diário, data: desconhecida, estou noutra dimensão
O canto dos pássaros anunciava a chegada da manhã.
Despertei, esgueirando-me do sono como se fosse plasticina mole a escorregar através de um funil. Não abri os olhos, deixei-me ficar naquele pequeno prazer, preguiçando, gozando mais alguns instantes deitada, até me escoar por completo pelo funil.
Tateei o colchão, encontrei-o. Ouvia o leve ressonar dele, dormindo ao meu lado. Sorri, ainda de olhos fechados. O meu coração começou a bater. Aproximei-me. Percebi que estava deitado sobre o lado direito. Abracei-o, enterrei o nariz na nuca dele, cheirei-lhe o suor, estremeci com aquele perfume masculino que penetrava no meu cérebro e acendia o desejo, apesar de me confundir por me parecer diferente, pois já tinha passado com ele uma noite inteira dentro de um carro e ele não cheirava assim no início do dia, ou talvez fosse porque estávamos noutra dimensão e aquele aspeto que para mim era de desenho animado teria aquele cheiro.
Ele mexeu-se, deixou de ressonar.
Estreitei o abraço. A minha mão pousava no peito maravilhosamente desenhado, forte, onde eu sentia o seu coração bater, arrepiando-me toda. Queria que estivesse a sonhar comigo.
Ele acordou. Senti-o estremecer, primeiro, enrijecer, depois. Surpreendera-se com a minha proximidade.
Animei-me. Iria ser ousada. Mordi o lábio inferior, tentando controlar a respiração. Eu estava ainda de olhos fechados.
Os meus dedos passaram pelo esterno, desceram até ao início do estômago. Continuava rijo, como se me abraçasse a uma estátua de pedra. Senti todas as curvas dos músculos abdominais, desenhei-os um por um. Ele começou a arfar, ao perceber que a minha mão, dotada de um atrevimento que até a mim me envergonhava, descia cada vez mais. Encalhei no umbigo, explorei-o languidamente. A seguir, senti o cós das calças, os dedos forçaram o tecido.
A mão dele apanhou a minha, travou-me o intento.
- Ana-san... Sou Son Goten.
Esbugalhei os olhos. A primeira coisa que vi foi a cabeleira negra desgrenhada.
- Podias... soltar-me? – Pediu-me.
Mas ele também me estava a prender, segurando na minha mão com medo talvez que tivesse vida própria e que fosse até ao fim da exploração.
- Tu dormiste comigo? – Soprei.
- Trunks também dormiu aqui... Só há um colchão.
- Mas ele não está.
- Já se deve ter levantado. Podias soltar-me... Onegai shimass?
O cheiro dele tentava-me, fazia-me tremer. Procurei engolir a saliva que tinha dentro da boca. A garganta doeu-me. Dei um ligeiro puxão ao braço. Ele percebeu e libertou-me a mão. Deitei-me de costas, ele saltou do colchão, tão rápido como uma lebre assustada. Despiu a túnica rasgada, retirou qualquer coisa do baú, abriu a porta da cabana e saiu para o exterior.
Com um rangido, a porta balançou e ficou encostada. A luz do sol e o cheiro delicioso de uma primavera a desabrochar ficaram a pairar na faixa de claridade que a porta deixava passar.
Abri os braços e as pernas, estendendo-os no colchão.
Que situação embaraçosa! Abraçara-me a Goten, acariciara-lhe o torso, quase que ia demasiado longe, mas o que era mais censurável era que tinha gostado. Sorri. Havia qualquer coisa naquele rapaz profundamente tentador. Talvez fosse o sangue saiya-jin, talvez fosse o seu acanhamento.
Levantei-me, bocejando. A minha barriga encolheu-se de fome. Descobri três maçãs na prateleira situada por cima do baú. Agarrei numa e dei-lhe quatro dentadas, engasguei-me ao engolir depressa, estava faminta. Inspecionei, a seguir, o interior do baú que continha peças de roupa atiradas lá para dentro sem qualquer cuidado, tudo embrulhado e amarrotado, parecendo trapos.
Olhei para mim. Ainda vestia a sweat azul por cima da camisa sem botões, umas calças de ganga e calçava meias com os sapatos oferecidos por Mr. Popo. Resolvi trocar de indumentária, para ficar mais apresentável. Vesti a t-shirt que Trunks usara no dia anterior, eu continuava sem soutien. Escolhi as calças mais pequenas que encontrei no baú, atei-as com um cinto branco de pano. Utilizei outro cinto da mesma cor para prender os cabelos, enrolando-o em redor da cabeça como se fosse um lenço. Procurei por todos os cantos, mas não encontrei nada com que me pudesse lavar. A bacia junto do colchão tinha o fundo forrado de pó. Talvez existisse um riacho perto ou coisa do género. Enquanto me arranjava, comi as três maçãs.
Saí da cabana.
A paisagem das montanhas em plena luz do dia era deslumbrante. Um verde viçoso decorava a terra, as árvores espalhavam sombras deliciosas, o vento cantava nas ramagens em coro com os pássaros.
Procurei pelo riacho. Acabei por encontrar Trunks e Goten.
Os dois conversavam e não deram pela minha aproximação. Escondi-me atrás de um arbusto, fiquei a admirá-los, uma cena tirada de "Dragon Ball", exclusiva e só minha, um tesouro ciosamente a reter.
Trunks sentava-se em cima de um tronco caído onde, no extremo mais afastado, brincavam esquilos. Vestia o dogi de Son Goku, uma túnica verde apertada com um cinto branco e umas calças azuladas. Goten sentava-se no chão, de frente para o tronco, apoiando-se nos braços, pernas ligeiramente abertas. Vestia uma túnica igual à de Trunks, as escolhas do baú eram limitadas, mas as calças eram as que usava no dia anterior.
Trunks falava e ele escutava.
- O verão é uma loucura, foi a melhor época que passei lá. Existem praias fantásticas, noites inesquecíveis. Festas, música e bebida a rodos. Raparigas de todo o lado... Dispostas a festejar contigo o verão. E depois, tinha os meus amigos. O mais tresloucado chamava-se João. Havia também o Pedro que rivalizava comigo em termos de conquistas femininas. Acho que conseguiu sair com tantas raparigas como eu. Tinha jeito para elas... Sabia dizer as coisas certas e elas consideravam-no bonito. Não era tão bonito quanto eu, claro.
- E o que é que fazias para te divertires?
- Oh!... Bebia até cair. Nunca bebi tanto na minha vida.
- Mas... E assim divertias-te?
- Estava destroçado porque pensava que te tinha matado. As recordações poderiam ser melhores se não existisse essa mancha. Mas em retrospetiva e sabendo que não aconteceu como pensava, vejo que até foram dias memoráveis. De excesso. Nunca mais irei voltar a fazer o que fiz, pelo que posso dizer que experimentei o lado selvagem da vida. O meu pai detestava as minhas atitudes, perseguia-me.
- Vegeta-san?
- Hai! É divertido pensar nisso agora. Apareceu algumas vezes nas minhas festas e eu tentava expô-lo... Houve uma ocasião em que o apresentei à rapariga que estava comigo como um príncipe. Sabes o que foi que ele me fez?... Deu-me um soco nos queixos!
Goten soltou uma gargalhada, Trunks também se riu.
Respirei fundo, escondendo-me mais no arbusto. Senti-me uma intrusa. Eu era uma dessas raparigas do verão de loucura. Que direito tinha eu em estar ali, penetrar no sonho, existir num mundo que não era o meu? Trunks era feliz sem mim.
Afastei-me, às arrecuas. Não queria que me vissem. Comovida, limpei uma lágrima das pestanas. Voltei para a cabana e deixei-os com as suas conversas, os dois amigos inseparáveis, a cena exclusiva. Um tesouro irrepetível.
Uma cena à qual eu não pertencia.
Fim de entrada.
III.9. Encontro com o passado
A sua primeira bola de dragão.
Goku guardou o radar na túnica do dogi. Bulma conseguira terminá-lo antes do prazo fixado. Tinha uma cara horrivelmente cansada quando o entregara, resmungando qualquer coisa sobre tê-lo acabado antes do tempo e expulsara-o da Capsule Corporation alegando que precisava dormir. Ele acedera por dois motivos: primeiro, nunca provocaria uma Bulma exausta, era mais irascível que qualquer saiya-jin e mais perigosa que qualquer demónio. Segundo, porque também estava ansioso para começar a procurar pelas bolas de dragão. Recordara o que tinha combinado com Vegeta e rumara para oeste.
A tarde estava quase no fim quando aterrou junto à casa, situada entre os abetos que guarneciam aquela terra montanhosa. A bola de dragão estava dentro da casa e, por ironia do destino, era a bola de dragão de quatro estrelas. A sua bola de dragão. Respirou o ar campestre para refrescar os pulmões, a sorrir e a lembrar os tempos em que guardava a bola de dragão de quatro estrelas como recordação querida do seu avô, Son Gohan. Depois conheceu Bulma e...
E a sua vida começou. Percorreu um longo caminho e agora estava ali, diante daquela casa, a completar uma espécie de ciclo ou coisa parecida. Não se demorou nesse pensamento confuso e sacudiu os ombros, esboçando um sorriso.
Preparou-se para bater à porta e pedir a bola de dragão a quem quer que morasse ali. Mas antes de conseguir fazer o que preparava, a porta abriu-se.
Alguém saía com uma espingarda caçadeira na mão. O dono da casa e da bola de dragão. Fechou a porta, voltou-se.
Goku foi varado pelo espanto. Imobilizou-se, sem saber como reagir.
O homem que saía da casa... Conhecia-o. Nunca se tinham encontrado, mas ele fizera parte do seu passado.
O outro parou também ao descobri-lo. Os rasgados olhos azuis fixaram-no incisivamente, analiticamente. Frios como o ar da montanha.
Entreolharam-se por alguns segundos que valeram por horas.
- Son Goku...
E número 17 sorriu.
Bạn đang đọc truyện trên: Truyen247.Pro