Capítulo VII
VII.1. Esclarecendo algumas dúvidas
Camuflado pela escuridão da noite, um vulto agitava-se em movimentos estudados e repetidamente treinados até à exaustão. Suspenso no vazio, a desafiar a lei da gravidade, multiplicava-se em golpes que despejava com os braços e com as pernas. Parou de repente, desligando-se como uma máquina à qual se carregou no botão vermelho. Permaneceu no ar, a respirar ofegante.
Sentiu uma presença. Alguém chegava àquele lugar inacessível, onde não queria ser incomodado. Iria recebê-lo à sua maneira. Gritou e disparou um raio vermelho-vivo.
Com pouco esforço, Goku desfez o raio na palma da mão. Enquanto baixava o braço, perguntou:
- Estamos em guerra, Vegeta?
Vegeta via-o pelo canto do olho. Respondeu:
- Estamos.
- Desde quando?
- Estamos em guerra com Zephir!
Goku sorriu.
- Ah, bom!... Assim está bem. Quando perguntei se estávamos em guerra, quis dizer um com o outro...
- O que é que queres, Kakaroto?
Habituado ao temperamento irascível do príncipe dos saiya-jin, Goku não se incomodou muito.
- Vim treinar contigo.
Vegeta encarou-o, cruzando os braços. Entreabriu um sorriso.
- Queres treinar comigo? Ótimo! Já estava a ficar aborrecido de destruir apenas árvores. Já me apetecia destruir algo... feito de carne e osso.
- Eu também estava a aborrecer-me. Treinar com Ubo não é a mesma coisa que treinar-me com um verdadeiro saiya-jin...
- Elogios, Kakaroto?
- ...quando temos de enfrentar um saiya-jin tão ou mais poderoso do que nós.
Vegeta perdeu o sorriso, o rosto crispou-se.
Goku assentou os punhos fechados na cintura, inclinou a cabeça ligeiramente para a direita, adotou uma expressão pensativa, que chegava a ser cómica por ser, ao mesmo tempo, tão transparente e inocente.
- Temos um grande problema com Keilo. Quando regressarmos à Dimensão Z iremos enfrentá-lo outra vez e ainda não descobri uma maneira de o derrotar. Temos de estar na nossa máxima força e com uma técnica sem falhas para o conseguirmos.
- Eu sei! – Virou-lhe costas e confessou com relutância: – É por isso que continuo a treinar-me, mesmo estando nesta maldita dimensão! Mesmo tendo este maldito corpo!
- Pode ser uma vantagem. Temos um aspeto esquisito e sentimo-nos esquisitos. No início, foi um bocadinho difícil adaptar-me a este corpo. Sufocava-me. A ti também deve ter acontecido o mesmo, não? Bom, o que eu quero dizer é que este corpo é muito pesado e pouco flexível.
Vegeta encarou Goku, que prosseguiu:
- Mas é útil para nos treinamos. Será parecido a treinar com a força da gravidade. Quando começámos a treinar com a gravidade, foi importante para nós, ajudou a aumentar os nossos poderes. Foi assim que alcancei o nível do super saiya-jin e tu também... E acho que, para aumentar os nossos poderes agora, nada melhor do que coisas novas e diferentes. Como este corpo pesado e diferente.
Vegeta levantou um sobrolho.
- Se conseguirmos fazer na Dimensão Real o mesmo que fazemos na Dimensão Z, com este corpo, ficaremos mais fortes – concluiu Goku.
Vegeta ensaiou um pontapé. Girou sobre si próprio, a perna atingiu o ar.
- Estamos mais lentos – observou Goku.
- E menos resistentes.
- É verdade. Basta um simples soco e começo logo a sangrar. Agora tenho mais cuidado quando estou a combater com Ubo. Nos primeiros tempos ficávamos os dois partidos e com a cara inchada durante dias. A ti também te acontece o mesmo?
Vegeta sorriu.
- Ainda bem que estás mais frágil, Kakaroto. Apetece-me ver sangue e ver o teu será perfeito.
Goku também sorriu.
- Começo eu ou começas tu?
Vegeta atacou, punho em riste. Não tinha a rapidez da Dimensão Z mas era suficientemente rápido para surpreender. Goku estava atento e apanhou-lhe o punho com a mão direita.
- Até onde chega o poder de Keilo?
O combate tinha começado. Vegeta tentou libertar-se, Goku soltou-o para abrir uma brecha na defesa. Foi para atingi-lo, mas Vegeta desviou-se e esmurrou Goku nos queixos.
- Já te tinha dito, Kakaroto – gritou Vegeta a recuar, unindo as mãos por cima da cabeça para novo golpe.
Goku esquivou-se, alçou a perna numa tentativa de pontapé que roçou a cara de Vegeta.
- Eu não sei nada sobre Keilo!
O príncipe atacou novamente, com uma rajada de murros dos quais Goku se desviou com relativa facilidade. Optou por não ripostar a nenhum, analisando atentamente os movimentos do oponente.
Vegeta afastou-se de repente, voando às arrecuas.
- Só sei que é o super saiya-jin lendário. Até vê-lo no Templo da Lua...
As palavras afastaram-se com ele.
A energia de Vegeta subiu descontroladamente e, numa fração de segundo, o seu corpo brilhou numa explosão de luz. Os músculos tornaram-se mais tensos. Dobrou os braços pelos cotovelos, fechou os punhos e soltou um brado que ecoou como um trovão. A onda energética que se soltou, a emitir calor e faíscas, fez tremer a terra. Vegeta estava no nível dois dos super saiya-jin. Ao experimentar o seu enorme poder, sorriu.
Goku abriu muito os olhos, escandalizado.
- Vegeta! Estás a provocar tremores de terra! Os nossos treinos devem ser secretos! Não achas que estás a...?
A frase não foi terminada. Vegeta aproximou-se, com uma rapidez estonteante, e quando lhe conseguiu sentir o hálito atingiu-o com um murro nos queixos, tão potente que Goku caiu desamparado. Viu-o desaparecer pelo meio das árvores escuras e seguiu-o.
Vegeta pousou devagar. Perscrutou a paisagem, procurando pelo outro. Não o encontrou nem com os olhos, nem com o espírito. A aura de Goku tinha-se sumido, o que queria dizer que preparava uma resposta.
Concentrou-se, focou os sentidos. Acalmou ligeiramente a ânsia guerreira do super saiya-jin que lhe incendiava a alma.
Na retaguarda! Escutou-o primeiro, sentiu-o depois. Mas foi tudo mais rápido do que antecipara. Sentiu um impacto doloroso na nuca e caiu para a frente. Mas assim que bateu com a cara na terra levantou-se, voltando-se imediatamente para o adversário.
Ficou pasmado com o estado de Goku. A túnica verde estava feita em farrapos, no braço esquerdo tinha uma ferida junto ao ombro. O sangue escorria do nariz e da boca. Estava também transformado em super saiya-jin, nível dois, o que equilibrava as probabilidades entre eles. Tinha-se transformado antes de o ter atacado, naquele ínfimo de segundo em que se revelara, antes do golpe. Continuava a ser um génio a combater, pensou com um laivo de inveja.
- Acabámos de ter uma conversa sobre os nossos corpos da Dimensão Real que são pouco resistentes e fazes-me uma coisa destas? – Disse Goku a sorrir.
Vegeta sorriu com ele.
De seguida, ficou muito sério e completou a frase que tinha deixado suspensa:
- Até ver Keilo no Templo da Lua, nunca tinha acreditado verdadeiramente na sua existência.
Goku limpou o sangue do nariz e da boca, fixou em Vegeta os olhos esverdeados. O cabelo alaranjado revolvia-se entre faíscas. Notou que o príncipe lhe fazia a cortesia de aguardar pelo seu ataque.
- Se Keilo chegar ao nível três do super saiya-jin, estimo que as forças dele sejam o triplo das forças desse nível.
Tentou um murro, mas Vegeta defendeu-se com um braço. Os dois saiya-jin entreolharam-se.
- O seu poder é o dobro do normal quando está no nível dois – explicou Goku.
- O que significa... – rugiu Vegeta furioso e atacou com uma chuva de murros, que Goku aparou com os braços e com as mãos.
O combate corpo-a-corpo estava a empurrá-lo para trás, mas Goku só se apercebeu quando sentiu o tronco de uma árvore a arranhar-lhe as costas. O punho de Vegeta desfez a árvore, pois desviou-se à justa, no último milissegundo necessário para evitar que este lhe desfizesse o nariz.
- O que significa que eu não o consigo derrotar!
- Não o podemos deixar chegar a esse nível. Temos de o eliminar antes.
Esticou os dois braços, lançou uma vaga invisível de energia, Vegeta caiu com um urro de raiva por se ter distraído. Goku gritou, fez tremer o chão. Lançou uma bola amarela que explodiu onde Vegeta estava – onde estaria, não fosse a rapidez do príncipe tê-lo arrancado da posição vulnerável e assim conseguir escapar da explosão.
Vegeta também sangrava da boca. Disse:
- Já terminou a tua preocupação com os tremores de terra?
Goku expirou o ar que tinha guardado no peito, aligeirando a rigidez da posição, tentando perceber as exigências e os limites daquele corpo estranho. Era a primeira vez que se transformava em super saiya-jin e sabia que, com Vegeta, se passava o mesmo.
- Estava farto de levar. Também gosto de dar – respondeu.
- Isto começa a ficar interessante.
Aproximaram-se, para mais uma ronda.
Vegeta tentou rasteirá-lo, Goku saltou. Enleou-se nos ramos das árvores, atrapalhou-se. Vegeta puxou-lhe pelas pernas, atirou-o com toda a força para o chão. Ao tentar pontapeá-lo, Goku rebolou, pôs-se de pé, evitou o ataque, atacou, por sua vez. Socou Vegeta. A cabeça dele foi lançada para trás, seguida de um arco de gotas de sangue. O golpe acabou por ser mais doloroso do que esperava, Vegeta gemeu. Goku parou, apertou os dedos, enchendo a mão de força. Vegeta abanou a cabeça, para recuperar da tontura. Cerrou os dentes. Investiu e apesar de os murros terem falhado o alvo, conseguiu derrubar Goku com um pontapé.
Concentrou energia, a terra voltou a tremer. Goku levantou-se, limpando a testa que sangrava.
- Queres eliminar Keilo? – Perguntou Vegeta marcando-lhe os movimentos. – Essa é nova! Pensei que não gostavas de eliminar os teus adversários.
- Não temos outra alternativa... Ele é uma coisa maligna.
Goku também concentrou a sua energia e também fez a terra tremer.
- Como chegaste a dizer, Vegeta, não passa de um feitiço. Alimenta-se da magia do Makai.
Regressaram aos céus.
- Finalmente, falas como um saiya-jin, Kakaroto – provocou Vegeta.
- Não é que me agrade muito, mas Keilo tem de desaparecer.
Uma rajada de vento passou entre eles, varrendo as serranias abaixo, trazendo um silêncio pesado, enquanto resumiam as forças e preparavam nova sessão de treinos.
Vegeta exclamou, subitamente animado:
- Vamos iluminar a noite, Kakaroto!
- Ahn?
Nas suas mãos tremeram duas esferas de luz branca e cintilante. Goku agitou um braço.
- Espera! Devemos evitar ataques energéticos!
A ferida junto ao ombro ardeu-lhe e baixou o braço, com uma careta de dor.
- Passemos a coisas sérias! Queres eliminar Keilo, ou não?
- Quero.
- Então, temos de combater a sério com este maldito corpo que eu odeio.
As duas esferas brancas cruzaram o ar e Goku utilizou a supervelocidade, desaparecendo para deixar as esferas passar, aparecendo de seguida, no mesmo lugar. As esferas atingiram as árvores em baixo, desfazendo-se em múltiplas centelhas num rebentamento que ficou a reverberar pelos vales.
- Vegeta!
- E odeio ainda mais o teu corpo!
A cara de espanto de Goku arrancou a Vegeta uma gargalhada.
- E agora, Kakaroto, defende esta!
Uniu as duas mãos, os dedos curvaram-se, fez surgir um halo amarelo que depressa se materializou em algo mais volumoso. O rosto crispou-se e berrou, convocando a sua energia vital, canalizando-a:
- Final Flash!!!!
O ataque de Vegeta iria atingi-lo em cheio, se não reagisse da mesma maneira radical e insensata. Goku disparou:
- Kamehame-ha!!!!!
Os dois raios, um amarelo, outro azul, chocaram na noite. Iluminaram-na e aqueceram-na como um cometa que acabava de atravessar a atmosfera, faiscando na tresloucada e suicida viagem. A terra foi sacudida pelas forças gigantescas dos dois super saiya-jin que se enfrentavam sem restrições.
A não ser a dos seus odiosos corpos, matéria de uma dimensão alheia à sua.
Uma explosão brilhante engoliu tudo. A comoção dissipou-se, a calma aparente e a escuridão violeta regressaram às serranias.
Goku, ofegante, procurou por Vegeta. '
Defendeu um soco com os dois braços cruzados sobre a cara.
Vegeta riu-se. E Goku também começou a rir.
O sabor do sangue era estimulante.
Iria ser uma noite muito longa e muito agitada.
VII.2. Reagir
Trunks nunca tinha estado naquela posição e não sabia o que fazer. Tinha o cérebro embrulhado num nó tão grande que jurava senti-lo dentro do crânio, a provocar-lhe aquela monumental dor de cabeça, a empurrar a matéria cinzenta de encontro aos ossos, a impedi-lo de pensar.
Assentou as mãos na cómoda, as unhas arranharam a madeira, de dentes tão apertados que a dor da cabeça estendia-se aos queixos. Não reconheceu a cara transtornada que viu no espelho.
Ele nunca tinha estado no patamar de baixo, numa situação inferior, empurrado para um canto, relegado para segundo plano, entregue a um papel secundário, de mero espetador, ignorado, desprezado. Decidira sempre o seu destino, com toda a segurança e presunção, fora sempre o dono da peça e o diretor do jogo.
Pensou nela, na culpada por ele se encontrar naquele estado. Sabia que ela tinha arranjado alguém. Tinha um namorado, de certeza, que a afastava dele. Os ciúmes enfureceram-no ainda mais. Não suportava imaginá-la com outro. Era impossível que ela se tivesse apaixonado por outro rapaz.
Espremeu o crânio, para extrair, pelas orelhas, o terrível nó que o agoniava. Rugiu com a dor que lhe esgravatava as entranhas e que o asfixiava. Não aguentava mais, sentia-se a arder e prestes a explodir. Quase a transformar-se em super saiya-jin. Olhou para a cómoda, o objeto mais próximo da sua fúria. Enfiou-lhe um pontapé com toda a força e abriu-lhe um buraco no centro. A cómoda desconjuntou-se, as gavetas resvalaram umas de encontro às outras.
Teria de reagir.
Não conseguiria viver com aquele nó dentro do crânio.
Ele quis falar com ela, naquela tarde, mas ela não o quisera escutar. Até conseguia compreender as razões dela, mas ele queria dar-lhe um presente, algo que nunca dera a ninguém daquela dimensão. Estava preparado para lhe revelar a sua verdadeira identidade, pois já tinha enterrado o Tiago. Mas ela rejeitara-o sumariamente e enfiara-lhe aquele nó no crânio.
Fechou os olhos. Ela não queria, mas iria escutá-lo, nem que fosse à força. Não a iria perder, não tolerava essa amputação no orgulho. Era com a Ana que iria interagir e seria ela que o salvaria, ou que o condenaria, mas seria com ela, porque a Ana era dele e não aceitava partilhá-la com mais ninguém.
Abriu a porta com brusquidão. Se hesitasse, desistiria.
Se hesitasse, nunca mais se livraria daquele nó.
Ao sair do quarto, encontrou a irmã no corredor. Fingiu não a ter visto e correu para as escadas, deslizou pelos degraus. Bra espreitou o quarto e desatou a correr na direção oposta, a gritar:
- Okaasan! O nii-chan destruiu a cómoda!
VII.3. A confissão
Entrada no meu diário, data: setembro 1996
No meio de um demorado e escandaloso beijo, a mão dele resvalou para um sítio escabroso e eu reagi como se me tivesse picado. Ele recuou imediatamente, afastando-se.
- Bolas, Ana! Já não somos dois adolescentes – protestou, voltando-se para a janela.
Estávamos os dois dentro do carro, estacionado em frente ao prédio onde eu morava. Voltávamos do cinema, depois de termos ido jantar juntos e ele trazia-me de volta a casa. A despedida estava a ser demorada e ele estava a ser insistente.
O André mordia a unha do polegar esquerdo. Ficara aborrecido comigo.
- Tens razão – concordei, envergonhada. – Mas ainda não me sinto preparada.
Escutei o suspiro dele que me incomodou.
- É uma coisa normal, entre duas pessoas que gostam uma da outra – disse-me, a olhar para a janela.
Reparei que agitava a perna direita, para se acalmar.
Estava demasiado longe de mim, refugiado no assento do condutor, demarcando o seu espaço, que não se podia fundir no meu porque eu rejeitara os seus avanços, que eram normais entre duas pessoas que se gostam e estranhei por estar a repetir as palavras dele, a tentar que fossem minhas, pensadas por mim.
Encurtou um pouco a distância, pousando a mão na minha face direita. Sussurrou:
- Adorava fazer amor contigo.
Corei.
- Tu também gostavas, não gostavas?
Tentei falar, mas o meu lábio inferior limitou-se a um espasmo. O André sorriu-me.
- Olha, fazemos o seguinte: o meu primo de Évora já se foi embora e posso conseguir a chave do apartamento dele. Passamos lá o próximo fim-de-semana, sossegadinhos. Só nós os dois... Hum? O que é que achas?
Acenei que sim, timidamente.
- Vamos ter todo o tempo do mundo e podemos ir com calma. Eu não te quero forçar a nada. E até sexta-feira, vais preparando as coisas, no teu ritmo.
O André beijou-me.
Apesar de aterrorizada, concordei:
- Está bem.
Saí do carro a tremer.
Fiz-lhe adeus, fingindo um sorriso. Fiquei especada no passeio até que o carro do André desapareceu na esquina e percebi que ficara sozinha, de noite, na rua silenciosa. Enfiei a mão na mala à procura do porta-chaves.
Não sabia o que fazer e o fim-de-semana estava próximo, mais três dias e estávamos nessa sexta-feira, o dia que eu iria passar a noite no apartamento do primo de Évora do André e com o André. Os dois sozinhos, na mesma casa, no mesmo quarto. A fazer as coisas normais que as pessoas que se gostam fazem.
Tentei respirar, mas o diafragma estava bloqueado.
Ouvi o motor de um automóvel aproximar-se. Encontrei o porta-chaves e quando ia voltar-me para a porta de alumínio vi um Toyota branco entrar na rua. Os pneus chiaram no asfalto com a travagem brusca. A porta do condutor abriu-se e apareceu o Tiago.
- Quero falar contigo. Entra no carro.
Quedei-me imóvel e boquiaberta.
Aquilo não me estava a acontecer...
O diafragma voltou a funcionar e respondi:
- Já te disse que não temos nada para falar.
Enfiei a chave na fechadura, girei o pulso para a direita. Um estalido, destranquei a porta de alumínio.
O Tiago surgiu no patamar, ao meu lado.
- Mas eu preciso falar contigo.
Assustei-me. Mas como fora ele parar ali em cima tão depressa? Empurrei a porta com o braço direito, a segurar o porta-chaves na mesma mão.
- Boa noite, Tiago.
Senti um puxão e os meus pés levantaram-se do chão. Gritei, agitei os braços para me equilibrar e para me soltar, sem nunca largar o porta-chaves, nem a mala.
O Tiago carregava comigo, enrolando um braço na minha cintura e parecia não estar a fazer esforço nenhum. Mas ele teria assim tanta força? Com o braço livre abriu a porta do Toyota branco e atirou-me lá para dentro. Aterrei de qualquer maneira, pernas ao alto, costas enroladas, bati com a nuca na manete das mudanças.
Tirei os cabelos da cara, enquanto tentava colocar-me numa posição em que me fosse possível sair daquele automóvel sem ser de gatas, mas quando consegui tatear a porta e encontrar o manípulo que a abria, o Tiago ocupava o lugar do condutor e acionava o fecho centralizado, trancando-nos ali dentro.
Reagi com um grito indignado.
Tirei as pernas do painel de instrumentos, puxei o manípulo mesmo sabendo que as portas estavam trancadas.
- O que raios estás tu a fazer?
Um solavanco colou-me ao assento e o Toyota arrancou com uma chiadeira de pneus semelhante à que fizera quando parara. O Tiago girou o volante e começou a carregar no acelerador.
- Para! – Exigi – Para imediatamente este carro e deixa-me sair!
Ele não me respondeu.
- Sabes o que é que estás a fazer?
Olhei em pânico pelo vidro dianteiro. Pelo caminho que seguia, estávamos a sair da cidade.
- Estás a raptar-me, palerma!
Continuava sem me responder.
Endireitei-me no assento, a dividir o olhar entre o vidro dianteiro e o vidro da porta.
Disse-lhe irritada:
- Assim que sair deste carro, vou direitinha à polícia. Ouviste-me? Vou fazer queixa de ti. Tu não me podes levar contra vontade, tu não me podes fazer isto.
- É melhor pores o cinto.
A voz dele era calma.
- O quê?
- Gosto de acelerar.
- O quê?!
Coloquei o cinto de segurança.
Entrámos numa estrada que levava até à serra. Não me atrevi a insistir nas minhas exigências. Por um lado, ele não me iria escutar. Se não o fizera quando estávamos na cidade e perto da minha casa, o local lógico para me deixar e acabar com aquela loucura, não fazia sentido ouvir-me agora pois iria largar-me no meio de nenhures e eu não queria ser largada tão longe de um sítio seguro e conhecido. Por outro lado, porque o automóvel voava literalmente na estrada, a mais de cento e oitenta quilómetros por hora, consegui ler no velocímetro, e não o queria perturbar ou corríamos o risco de uma distração fatal e ainda acontecia um acidente e eu não queria voltar a casa toda partida, ou não voltar nunca.
Fechei os olhos e instalou-se o silêncio.
Estava cheia de medo, mas jurei a mim mesma não vacilar. Não queria que o Tiago pensasse que me afetava com aquele rapto. Estava decidida em ir falar com a polícia, assim que regressasse à cidade, esperando regressar inteira à cidade.
Ficava cada vez mais escuro, a estrada era velha, a subir, com muitas curvas que se acentuavam por causa da velocidade. Estávamos já na serra, a galgar um dos seus montes. Abrandámos a marcha. Abri os olhos, espreitei pelo vidro da porta. Não consegui perceber onde estava e fiquei apreensiva. Só via mato e sombras.
O Toyota parou num refúgio, à beira da estrada, camuflando-se entre algumas árvores antigas, de troncos grossos. Era uma espécie de miradouro natural, numa encosta de um cerro e de onde se conseguia ver as luzes da cidade lá em baixo, na lonjura, e a faixa negra do mar. Um sítio ideal para duas pessoas fazerem as coisas normais que as pessoas que se gostam costumam fazer.
O Tiago rodou a chave, desligou o motor, as luzes do Toyota apagaram-se e ficou muito escuro. Escutava-se claramente a minha respiração e a respiração dele. Com uma mão ligou o autorrádio, com a outra desapertou o cinto de segurança. Eu fiz o mesmo, também desapertei o meu cinto de segurança. O volume da música estava baixo, mas o suficiente para se conseguir distinguir as canções que iam tocando.
- Estás zangada comigo, não estás?
A voz dele causou-me um arrepio.
- Estou – respondi.
- Eu também estaria, no teu lugar.
- Não se raptam as pessoas no meio da noite e espera-se que elas estejam muito contentes com isso.
- Estou a falar de Vilamoura.
- Ah...
Não o encarava, não conseguia. Tinha diante de mim a visão magnífica da cidade desfeita em luzinhas, brilhando como uma joia. Era ali que estava a minha casa, o meu quarto, o André. Baixei os olhos, esfreguei os braços com as mãos, senti frio.
Ah... Vilamoura.
Podia dizer que sim e mostrava que me importava com o que ele me fazia. Podia dizer que não e não tinha garantias de regressar a casa.
Ele esperava a minha resposta, com uma paciência que me confundia e me irritava. Eu não queria ter mais nada a ver com ele. Nunca tinha tido na realidade, mas seria melhor terminar com aquela invenção, pois eu, naquele momento, tinha outros compromissos, outras responsabilidades.
No entanto, apesar de ele conseguir ser falso comigo, eu não conseguia sê-lo com ele e respondi:
- Sim, estou zangada contigo.
Acrescentei com relutância:
- E não te quero ver mais, Tiago.
Ele recostou-se no banco, de olhos fechados. Ficou assim durante algum tempo.
- Sabes porque é que eu te fui procurar esta tarde, Ana? Para te pedir desculpa.
Sustive a respiração.
- Tens razão. Tenho sido um palerma contigo. Tu não mereces isso. És uma rapariga... importante para mim. Contigo, falo em japonês. Lembras-te? És a única pessoa daqui com quem falo em japonês.
Ele passou para o banco de trás, tão de repente que me sobressaltou. Estendeu uma mão entre os dois assentos, eu olhei para a mão dele.
- Vem cá.
Olhei para a cidade iluminada. Engoli a saliva, respirei fundo.
Que se danasse! Eu já estava danada, de qualquer forma.
Aceitei a mão dele e fui para o banco de trás do Toyota branco. Os olhos azuis do Tiago brilhavam e a minha alma quebrou-se em mil estilhaços de cristal.
Tornei a engolir, à espera.
- Não me deixes agora que preciso de ti, Ana... onegai shimass.
- Tiago...
- Eu não sou...
- Desprezível? Eu sei que não és desprezível. E também tenho que te pedir desculpa. Também te tratei mal, esta tarde. Mas estava tão zangada contigo.
- Não, nena. Eu não sou...
Ele susteve as palavras numa grande golfada de ar.
- Os meus segredos, queria revelar-te os meus segredos. Mas está a ser mais difícil do que eu esperava.
O japonês dele aturdiu-me.
- O quê? Porque é que estás a falar comigo em japonês? Assim, não te consigo perceber.
- Existe tanta coisa que se pode perder. Mas eu também perdi o que nunca quis perder. E já não sei onde está o futuro e até se existe um futuro.
Ele baixou a cabeça, apertou os punhos, roendo-se com uma dor qualquer que começou a sentir e que subia à superfície, rasgando-lhe a pele e ele lutava contra essa dor. O seu orgulho desfazia-se também em estilhaços de cristal.
Soluçou.
- Quando eu tive o acidente, tu também estavas lá, nos meus sonhos. Tinhas um sorriso tão bonito e sorrias para mim. E estávamos todos juntos. Eu e tu, Maron e... e o meu amigo, como se fosse possível nós estarmos juntos. Tenho saudades dele e já não aguento mais. Tenho saudades dele...
Levantou os olhos onde duas lágrimas se tinham acabado de soltar. Eu comecei a chorar com ele.
- Estamos aqui por causa de mim e eu não quero estar aqui. Ser quem sou hoje, esse Tiago espanhol, é devido ao sangue que derramei com as minhas mãos.
Abriu as mãos e pôs-se a olhar para elas.
- Ao crime que cometi.
Funguei, limpei a cara. Não conseguia parar de chorar e o Tiago também não.
- Eu matei-o. Eu matei o meu melhor amigo.
De súbito, abraçou-me. Assustou-me, porque foi um abraço compulsivo, violento. Apertou-me com tanta força que fiquei sem ar. Tossi.
Ele continuava a chorar, abraçado a mim.
Enterrei as mãos nos cabelos dele, prateados e azuis, como um raio de luar. Segredei-lhe que estava tudo bem, mas era uma frase automática, demasiado gasta. Repetia-lhe isso, como se fosse uma gravação, sem verdadeiramente sentir o que dizia, porque simplesmente não sabia o que mais poderia dizer. Queria ficar assim abraçada, porque o calor do corpo do Tiago era a coisa mais deliciosa que experimentara na vida. Mesmo que fosse num momento extremo, mesmo que ele estivesse a chorar e mesmo que eu chorasse com ele. Mesmo que não significasse nada mais do que um ato desesperado de alguém carente.
- Sou culpado de um crime que não tem perdão, nem castigo. Pensei que inventando outra identidade, anulando a anterior, renegando a minha vida verdadeira, fosse castigo suficiente, mas descobri que não é. Não há nada que apague o que fiz. Eu matei Son Goten, o meu melhor amigo.
Nisto, acalmou-se, deixou de tremer entre os meus braços. Eu não queria que ele se soltasse de mim. Entrelacei os dedos nas madeixas do cabelo dele, como se assim me conseguisse prender eternamente àquele calor.
- Nunca disse isto a ninguém. Julguei que não era necessário. Mas agora percebo que o era... Precisava de desabafar, dizê-lo com a minha voz. Mesmo que não me sinta melhor, mesmo que o peso ainda continue aqui dentro. Mas fazê-lo contigo, nesta língua a que chamas japonês, foi como... uma espécie de solução.
Encarou-me, encostou a testa dele à minha, a ponta dos nossos narizes roçaram-se.
- É esse o meu segredo, o maior de todos.
Já não chorava e eu também não.
Aguardei mais palavras, mas ele teria terminado e ficou em silêncio, a respirar para cima da minha boca.
Então, afastou-se.
Encostou-se no banco, cobrindo a cara com as mãos.
- Tiago, eu... Eu não entendi nada do que acabaste de me dizer.
- São os meus segredos – respondeu-me.
No autorrádio, a música continuava. Ouvi Billy Corgan, dos Smashing Pumpkins, a entoar:
"Believe in me as I believe in you
Tonight... Tonight..."
Resolvi não insistir.
Deitou a cabeça no meu colo, respirando lentamente. Depois do pranto, aliviado, buscava sossego. Acariciei-lhe os cabelos com toda a ternura.
Pouco depois, adormeceu.
Fim de entrada.
VII.4. Os treinos na serra
Duas árvores tinham acabado de cair carbonizadas. Os troncos ainda crepitavam incandescentes quando Goku aterrou, a defender duas bolas de energia e a enviar outras duas, que cruzaram o céu a sibilar. Vegeta desfez o ataque de Goku com ambas as mãos.
- Vegeta, acaba com isso!
As gargalhadas do príncipe entoaram na noite que tão orgulhosamente tinha estado a iluminar.
- Daqui a pouco temos assistência ao nosso combate se não acabas com os teus ataques energéticos
- Desfazemos a assistência com um desses ataques e deixa de haver testemunhas.
- Vegeta!
- E o teu sangue saiya-jin, Kakaroto? Não te esqueças que prometeste eliminar Keilo.
- Eu não prometi nada.
- É a tua vez! Ataca!
A teimosia de Vegeta roçava o insuportável. Goku saltou para se juntar a ele no ar. Preferia um combate aéreo a um combate no meio das árvores e dos arbustos. O corpo tenso brilhava. Uniu as duas mãos, levou-as atrás. Vegeta comentou divertido:
- Kamehame? Outra vez?
- Isto vai surpreender-te.
A energia vital concentrou-se, tornando-se numa pequena esfera azul compacta na concha formada pelas mãos de Goku. Vegeta fixou-o, antecipando o embate. Apesar de desdenhar daquela técnica que conhecia havia anos, sabia que encerrava um potencial mortífero enorme se não a enfrentasse corretamente.
Nisto, Goku desapareceu do lugar onde estava.
- Na-nani? Onde...?
Vegeta retesou os músculos, enquanto procurava pelo adversário, com os olhos e com o espírito. Pensava furioso em como tinha o outro conseguido deslocar-se tão rapidamente, quando a velocidade naquela dimensão estava condicionada àquele corpo pesado.
A aura de Goku regressou um segundo depois. Vegeta apenas conseguiu afastar-se um par de metros e cruzar os braços defronte do rosto. Goku gritou, lançando os braços na direção dele:
- Ha!!!!
O raio azul atingiu Vegeta em cheio. Goku observou a nuvem de fumo a diluir-se, até ficar a silhueta do príncipe a flutuar por cima de uma árvore desfeita.
- Como raios fizeste isso? – Perguntou Vegeta a aproximar-se.
Goku sorriu.
- Shunkan Idou.
- Shunkan Idou? Eu não te vi colocar os dois dedos na testa.
- Não preciso dos dois dedos na testa quando tenho a aura da pessoa que quero visitar à minha frente.
- Hum... Esse teu ataque não esteve nada mal, Kakaroto.
- Arigato, Vegeta!
- É a minha vez.
- Surpreende-me!
- Podes crer que sim.
Uma rajada de vento passou entre os dois saiya-jin.
Vegeta esticou os braços. Goku preparou-se, elevando a sua energia. Uma saraivada de pequenas bolas de energia desabou-lhe em cima. Goku detestava essa técnica mais do que qualquer outra que utilizasse energia vital, porque essa dava muito mais nas vistas ao criar no céu uma infinidade de pequenas explosões. Vegeta sabia disso e fazia de propósito.
Goku irritou-se. Desintegrou as bolas de energia com o seu ki e mergulhou. O soco atingiu o ar, pois o adversário tinha sumido... Voltou a cabeça para o lado esquerdo.
E apareceu, instantes depois, no mesmo sítio. Vegeta agarrou na túnica verde de Goku e esmurrou-o na cara. Deu-lhe um segundo murro e soltou-o. Goku equilibrou-se no vazio, atordoado, a oscilar como se o vento o estivesse a segurar.
- Não te devias ter irritado – observou Vegeta com secura.
- Distraí-me... O mérito é teu.
- Hum! – Cruzou os braços. – Não foi um grande ataque, mas como consegui apanhar-te, agradou-me.
Goku sorriu. Agoniado, apagou o sorriso. Tossiu e da garganta saiu sangue. Cuspiu para o lado, levantou o braço direito e pediu:
- Uma pausa.
- Estás cansado?
- Tu também não me pareces nas melhores condições.
Vegeta tentou disfarçar as mazelas que o corpo exibia, retorquindo orgulhoso:
- Eu estou bem.
Mas Goku insistiu:
- Uma pausa, Vegeta. Isto é só um treino.
- Pensei que fosse um treino a sério.
- E é. Mas não devemos exagerar treinar este corpo.
- Bah! Não passas de...
Um estalido. Um tremor na alma.
Vegeta e Goku calaram-se. Quedaram-se imóveis, como duas estátuas petrificadas. Sentiram, ao mesmo tempo, o começo de um remoinho negro a sugá-los para um mundo conhecido. O peso do corpo frágil da Dimensão Real a dissolver-se em pedaços de chumbo.
E depois do remoinho uma espécie de porta, abrindo-se lentamente.
Passou-se uma eternidade. O momento prolongava-se sem acabar, mas finito nele próprio, como se tivesse parado quando começara e se recusasse a avançar. Era apenas uma imagem estática, que se podia contemplar mas nunca experimentar.
A porta que se abrira com um estalido imperceptível, fechou-se com outro estalido.
O momento passou.
- Era... a Porta dos Mundos – balbuciou Goku.
- Interagir... Alguém esteve quase a interagir.
As faíscas estalaram em redor de Vegeta. Soltou um berro:
- Trunks!
E preparava um arranque a toda a velocidade, não fosse Goku tê-lo agarrado pela cintura. Puxou-o.
- Espera!
- Solta-me! Tenho de encontrar aquele imbecil!
- Como é que sabes que é ele?
- Só pode ser ele. Continua a desafiar-me, mesmo depois do acidente.
Goku encontrou o ki de Trunks perto dali.
- Solta-me, Kakaroto!
- Só depois de te acalmares. Não adianta ires atrás de Trunks. Não aconteceu nada, a Porta dos Mundos não se abriu.
Vegeta expirou ruidosamente, parou de se debater. Goku aligeirou o braço e o príncipe deslizou para se afastar. Fungou desagradado, cerrou os dentes.
Goku observava o horizonte, à espera de mais desenvolvimentos, mas a sensação do estalido na alma não regressou e o horizonte continuou imutável e escuro.
Cansado, Vegeta desceu e estendeu-se entre os arbustos. Não lhe apeteceu falar. Aquela experiência tinha sido desagradável e assustadora. Tinham quase deitado tudo a perder, tinham quase transformado o feiticeiro num deus. A ideia irritou-o na mesma proporção que o aterrorizou. Goku juntou-se a ele, encostou-se ao tronco de uma árvore, também calado.
Vegeta conhecia bem a magia do Makai. Lembrou-se como era poderosa, peganhenta, dolorosa. Lembrou-se como a voz de Babidi se colava ao seu cérebro, tão palpável que levaria à loucura uma mente fraca. Dava-lhe ordens que ele recusava-se a cumprir por causa da sua honra ... E Kakaroto tentava chamá-lo à razão... E ele ripostava que queria ser o saiya-jin que tinha sido... E os golpes embatiam na pele, esmagavam a carne... E o combate entre ele e Kakaroto... O combate...
Vegeta despertou. Adormecera e recordara o passado no sonho breve. Abanou a cabeça para limpar as memórias desse sonho. Ainda deitado na terra, perguntou:
- Kakaroto, vamos continuar com os treinos?
Não obteve resposta.
- Kakaroto?
Voltou ligeiramente a cabeça e descobriu-o a dormir, encostado ao tronco da árvore. Não o incomodou. Achou que também ele precisava de se render ao sono. Fechou os olhos e tornou a adormecer.
VII.5. Os segredos revelados
Entrada no meu diário, data: setembro 1996
A claridade incomodava-me, mas recusava-me a abrir os olhos, dormitando naquele limbo entre o sono profundo e a espertina. Sentia-me cansada, com uma dor que me moía o fundo das costas. Gemi, quis afastar a claridade, encontrar outra posição que fosse menos incómoda.
Passado uns minutos, rendi-me e perdi a guerra com o sol. Pisquei os olhos, tentando situar-me. Tinha vontade de urinar, a boca sabia-me mal.
Vi um vidro embaciado, um espelho retrovisor. Vi o painel de instrumentos e uma luz acesa de onde saía música. Pareceu-me um carro... Mas o que fazia eu num carro, de madrugada?
Lembrei-me de repente e abri os olhos. O Tiago dormia, encostado à janela da porta. Tapei a boca com as mãos. Tinha passado a noite com ele, a dormir no banco de trás de um carro, no meio de nenhures.
Ele roncava ligeiramente, apesar de toda aquela luz a entrar pelo carro adentro. Como conseguia ele dormir como se estivesse numa cama, era um mistério, porque eu tinha a sensação que não tinha dormido nada. Os ossos estalaram quando me espreguicei.
Encolhi-me com um arrepio. Estava com frio. Tentei abrir a porta e verifiquei que estava trancada. Sim, o Tiago tinha trancado as portas para aquela viagem. Rastejei até ao assento do condutor, carreguei no botão do fecho centralizado situado na porta desse lado. Quando regressei ao banco traseiro, encontrei o Tiago a esfregar os olhos. Notei que tinha rastos brancos na cara, onde as lágrimas tinham corrido. Adorei esse detalhe e a boca, que já me sabia mal, ficou seca como um cato.
- Ohayo, Ana.
- Ohayo.
- Hum... Que horas são?
- Não sei, mas deve ser muito cedo.
- Então, podemos dormir mais um pouco.
- Sim.
Puxei o manípulo, abri a porta, uma aragem fresca entrou no habitáculo.
- Onde vais?
- Vou fazer xi... Vou... Tenho de ir lá fora.
- Ah, eu também quero.
- Eh... Eu vou sozinha!
Ele riu-se.
- Está bem, vai lá primeiro.
Quando regressei vinha enregelada. Encolhi-me no banco. Ele saiu pela outra porta, mas não se afastou tanto como eu. Voltou-se para uma árvore perto do carro. Eu corei e desviei o olhar. Aquela intimidade confundia-me.
Enrosquei-me num canto, estava cheia de frio. Quando ele entrou, enroscou-se em mim e eu fiquei imóvel, deixei de conseguir reagir normalmente. Aquilo não era suposto estar a acontecer, certamente, mas também não queria que ele me soltasse. Naquela posição, com ele a abraçar-me por trás, aquecia-me e confortava-me.
- É mesmo muito cedo – disse-me.
- O sol nasceu...
- Hum... A noite de ontem já acabou.
Estava tão fatigada que adormeci pouco depois, com ele a respirar para cima dos meus cabelos.
Despertei estremunhada. Sacudi-o.
- Tiago, que horas são?
Ele também tinha adormecido. Resmungou, de olhos fechados.
- Estás a ouvir-me? Temos de ir embora! Hoje é dia de semana, tenho de ir trabalhar.
Ele levantou uma pálpebra.
- Trabalhar?
- Tiago, acorda. Leva-me para casa.
- Ainda é cedo...
- Estou com fome e quero ir tomar banho e tenho de ir trabalhar.
Ele concordou, de olhos fechados.
- Hum... Fome. Também tenho fome.
Esperei. Mas ele não se mexia. Sacudi-o outra vez.
- Para com isso, nena. Estás a deixar-me tonto.
- Tiago, vá lá. Vamos embora!
Contrariado, abriu os olhos. Bocejou com espalhafato, espreguiçou-se ocupando a parte de trás do carro com os braços abertos, obrigando a baixar-me. Passou vagarosamente para o assento do condutor.
- Primeiro, vamos comer. Existe um lugarejo aqui perto. Vou buscar qualquer coisa para trincarmos.
Não o contestei. Naquela altura já me tinha entregado incondicionalmente nas suas mãos.
Subimos um pouco mais na serra. Eu olhava para a cidade pelo espelho lateral, quando esta ficava visível entre as encostas, junto à faixa de mar que era azul forte àquela hora da manhã. Estávamos a afastar-nos, mas não me importei, porque significava que ficava mais uns minutos com ele.
Estacionou o Toyota à porta de um café de uma aldeia que se constituía por casas de um lado e do outro da estrada que subia. Entrou e passado um pouco trouxe três sandes de queijo, um leite achocolatado e um sumo de laranja. Levou o Toyota até outro refúgio, colado a um enorme penhasco recortado num cerro e foi aí que comemos. Antes de eu conseguir chegar a metade da minha sandes, já ele tinha devorado as suas duas sandes e amolgava o pacote do sumo de laranja. Ele comia realmente muito depressa.
Olhou para mim e o leite ficou-me atravessado na garganta.
- Vamos embora – anunciou e começámos a descer a serra, em direção à cidade e ao mar.
Fizemos a viagem calados.
Espreitei o relógio digital do carro, situado por cima do autorrádio. Eram quase dez horas, a manhã de trabalho estava perdida. Achei que o dia inteiro também. Não me conseguiria concentrar e fazer o que quer que fosse depois de uma noite como aquelas, tão mal dormida. Espreitei-o. E passada com o Tiago. Apesar de não ter acontecido as coisas normais que acontecem entre duas pessoas que se gostam, fora inédito e especial ter partilhado sono, baba e fazer xixi de manhã com ele. Sorri.
De repente, empalideci. Lembrei-me do André.
Estava metida numa grande trapalhada! O que diria ao André? Não, o André não poderia saber daquela noite. E iria eu mentir ao meu namorado? Comecei a roer as unhas.
O Toyota branco estacionou em frente ao meu prédio. O Tiago desligou o motor do carro.
- Bem, espero que os meus pais não me façam muitas perguntas.
- Foi a primeira noite que passaste fora de casa?
- Não. Mas foi a primeira vez que não disse para onde ia.
- Diz-lhes que foste raptada.
Ri-me.
- Quem diz a verdade, não merece castigo. Não é?
- Acho que sim, nena.
Saí do carro, fechei a porta. Ele abriu a janela, a convidar-me para a despedida formal, para umas últimas palavras. Enfiei a cabeça pela janela e disse-lhe:
- Até qualquer dia, Tiago.
- O meu nome não é Tiago.
- Mas eu não sei o teu nome verdadeiro. Lembras-te?
- Chamo-me Trunks.
- Trunks?
- Hai.
Desenfiei a cabeça da janela, endireitei as costas.
A boca sabia-me mal, precisava desesperadamente de um banho. Um duche morno para me acalmar, para me limpar, para me envolver num relaxamento que me atirasse para o sofá onde levaria o dia inteiro a relembrar a noite anterior.
Ele tinha-me contado como se chamava e eu nada, como se fosse a coisa mais natural do mundo. Pois, era apenas um nome...
Lembrei-me do pai dele, que tantas vezes me tinha baralhado o raciocínio e evitado uma conclusão lógica, mas que agora parecia-me absolutamente fundamental para quebrar o último selo.
O pai do Tiago era um homem de estatura baixa, de cenho franzido, cabelos muito pretos espetados para cima, dono de uma força impressionante, sabia lutar. O pai do Tiago, não. O pai de...
Um relâmpago cruzou-me a mente.
"Dragon Ball".
O professor Gomano tinha uns olhos negros que sorriam atrás dos óculos e tinha um rosto simpático e tinha uma biblioteca recheada de livros e tinha uma filha que se chamava Paula. Não! Chamava-se... Pan!
As imagens passavam com a velocidade de balas no meu cérebro entontecido. A cabeça estalou e comecei a ver tudo enevoado.
O homem vestido de vermelho, a atirar para o laranja. Aqueles cabelos negros espetados em dois tufos e a cara... Aquela cara inocente, terna, admirada, a olhar para mim.
E, quando o vira, balbuciara:
- Goku...
"Dragon Ball".
E Trunks e Pan e, muito provavelmente, Gohan e Videl e Vegeta e...
E eu a cair no passeio, engolida por uma náusea.
Desmaiei.
Fim de entrada.
VII.6. A intrometida
Entrou na garagem confiante, pois aquele haveria de ser um dia de triunfo.
Bulma olhava para a máquina das dimensões, as mãos enluvadas apoiadas nas ancas, um boné nos cabelos penteados num rabo-de-cavalo, vestida com um fato-de-macaco azul. Estava pronta para atacar o mostrengo, como ela lhe chamava agora.
Ao contrário do que era habitual naquela dimensão, conseguira dormir uma noite despida de pesadelos. Despertara apenas uma vez, com a impressão de estar a cair para um remoinho. Algo como um estalido na alma... Mas a impressão passou depressa, deitara a cabeça no travesseiro e voltara a adormecer profundamente.
De manhã acordara com aquela ideia e amaldiçoara-se por não se ter lembrado daquilo antes. Preparara leite e uma tigela de cereais para Bra e correra para a garagem, ansiosa por pô-la em prática.
Era uma quarta-feira de finais de setembro. Dali a cerca de uma semana faria nove meses que tinham chegado à Dimensão Real. Riscou mais um dia no calendário, onde contabilizava o tempo que mediava até à catástrofe. Antes de começar a trabalhar, ligou o rádio. Em vez de música, surgiu a voz do locutor a relatar uma notícia:
-"Foi sentido um sismo na região do Algarve, perto das zero horas de ontem, que atingiu a magnitude de quatro vírgula um na escala de Richter. O sismo foi seguido por várias réplicas, com magnitudes mais baixas. Apesar de ter sido relativamente fraco, o sismo assustou alguns habitantes da cidade de Faro e arredores. Os bombeiros reportaram vários telefonemas de moradores assustados. No entanto, não há vítimas a lamentar, nem estragos materiais relevantes. O epicentro, segundo o centro regional de Meteorologia e Geofísica, situou-se na serra do Caldeirão..."
Pensou no sismo e achou que o tinha sentido, mas não se recordava bem porque dormira realmente muito bem na noite anterior. Provavelmente, não fora nenhum sismo, mas um saiya-jin teimoso e insatisfeito a treinar-se para não sucumbir à monotonia da vida numa dimensão que odiava. Sorriu. Sentiu falta dos abraços dele e sem querer os olhos ficaram húmidos. Respirou fundo, limpou o nariz com a ponta dos dedos, agarrou numa chave-de-fendas.
O radar do dragão saiu do bolso do fato-de-macaco. Sentou-se e pousou-o na mesa, voltando o mostrador verde-escuro para baixo. Agarrou na chave-de-fendas e preparou-se para desaparafusar a parte de trás.
Aquele aparelho redondo, prático, que cabia numa mão e que detetava as bolas de dragão, tinha no seu interior a mais fina tecnologia da Dimensão Z e, por conseguinte, peças únicas e componentes eletrónicos especiais, que iriam ajudá-la a superar as dificuldades que a máquina das dimensões apresentava, por estar a ser construída com base numa tecnologia que ela não conhecia totalmente e que era claramente menos evoluída.
Abriu em esfusiante sorriso, considerando-se um perfeito génio, mas amaldiçoando-se a seguir por não ter tido aquela ideia mais cedo.
O tampo da mesa tinha pouco espaço, pejada de placas e de ferramentas. A arrumação nunca fora o seu forte e sempre sentira um especial prazer em trabalhar no caos. Afastou o que estava a atrapalhar, para criar mais espaço no tampo, mas a manga encalhou no radar e este caiu no chão, juntamente com as placas. Levou as mãos à cabeça. Era só que lhe faltava ter partido o maldito radar, agora que lhe tinha arranjado utilidade! Agarrou neste com cuidado, viu que estava ligado pelo bipe-bipe que emitia.
Bipe-bipe?
Intrigada, passou os dedos pelo mostrador do radar para limpá-lo. Como podia haver bipe-bipe sem bolas de dragão? Em cima, para noroeste, brilhava um pontinho branco na esquadria perfeita do radar, com um número quatro.
- Nani? A bola de dragão de quatro estrelas?
Pressionou várias vezes o botão do radar, mas o pontinho não desapareceu. Franziu a testa, a pensar se com a queda não teria avariado qualquer coisa... Ou teria consertado. Lembrava-se de o ter acionado uns meses depois de ter chegado à Dimensão Real e no mostrador não havia pontinho nenhum.
E se agora havia pontinho, significava que alguém ligado a Son-kun tinha com ele uma bola de dragão no momento da viagem. Pressionou o botão, diminuindo o raio de ação do radar e não apareceu mais nenhum pontinho a piscar. Era, realmente, só uma bola de dragão. Encolheu os ombros. Com, ou sem bola de dragão, o radar iria mesmo ser desmontado.
O portão da garagem abriu-se. Não se voltou. Talvez fosse Kuririn para mais uma das suas visitas de auditoria.
- 'Kaasan?
Era a voz de Trunks e largou imediatamente a chave-de-fendas e o radar. Levantou-se. Reparou que o filho tinha alguém nos braços. Estreitou os olhos. Trunks desceu a pequena rampa e percebeu que era uma rapariga inconsciente.
- Quem é ela?
- Uma amiga...
- O que foi que lhe aconteceu?
- Contei-lhe uma coisa. Ela não deve ter aguentado a emoção e desmaiou. Não ia deixá-la caída no meio da rua e resolvi trazê-la para cá.
- O que foi que lhe contaste?
- Para onde a levo? Para a sala?
- Trunks-kun! O que foi que lhe contaste? – Insistiu zangada.
Trunks mostrou um sorriso enviesado e ela estremeceu.
- O que andaste tu a fazer agora?
- Contei-lhe que não me chamo...
Uma presença silenciosa, que se impunha pelo seu silêncio, chamou-lhes a atenção. Bulma e Trunks olharam ao mesmo tempo para a entrada da garagem e descobriram uma silhueta distinta na contraluz.
- Vegeta? – Disse Bulma.
Quando viu que o filho não estava sozinho, Vegeta desceu a rampa a coxear e a berrar:
- Que raios é isso que tens aí contigo? Kuso!!
Bulma arrepiou-se ao ver que ele estava ferido. Tinha arranhões e hematomas pelos braços, a cara amassada, as roupas rasgadas.
Vegeta estacou. Empalideceu como se estivesse a contemplar um fantasma. Depois, a cara ficou vermelha, apontou um dedo esfolado à rapariga e vociferou:
- O que é que essa intrometida está aqui a fazer?
- Ela tem nome, 'tousan – disse Trunks com o seu sorriso enviesado.
- Leva-a daqui! Imediatamente!
- Mas quem é essa intrometida? – Perguntou Bulma confusa.
- É uma amiga do teu filho e do idiota do filho do Kakaroto!
Bulma recordou-se e indagou, ainda mais confusa:
- Aquela que esteve no jardim da nossa casa a espreitar-nos?
- Hai!
Trunks também ficou confuso.
- Ela esteve aqui? Quando?
- Quando regressaste do hospital – explicou Bulma.
- Honto?
- Como vês – Vegeta avançou um par de passos até se colar ao filho –, essa intrometida não hesita em meter o nariz onde não é chamada. Leva-a daqui! Não a quero na minha casa!
- Espera, Vegeta – intrometeu-se Bulma. – Não vês que ela está desmaiada?
- Pois ele que a acorde e que a leve daqui. Ou então que a leve para o hospital, se está doente!
- Parece-me que também precisas de ir ao hospital – observou Bulma com um esgar.
Vegeta voltou-se furioso.
- Nani?
- Onde é que tens andado para vires nesse estado?
Trunks aproveitou a interrupção no fio da conversa e foi deitar a rapariga num sofá velho que se encostava à parede dos fundos da garagem. Mas não conseguiu respirar fundo, o berro de Vegeta trouxe-o de novo para a arena.
- Leva-a daqui!
Ele enfiou as mãos nos bolsos das calças.
- 'Tousan, deixa-a dormir um bocadinho. Não passou uma noite muito descansada.
- Estiveste com ela, esta noite?
Voltou-se para Bulma.
- Hai, 'kaasan. Mas não aconteceu nada entre nós.
- Então, por que é que ela desmaiou? O que foi que lhe contaste, afinal?
Vegeta perguntou irado:
- Foste tu que a fizeste desmaiar?
- Hai. Contei-lhe que me chamo Trunks.
O rosto de Vegeta ficou de todas as cores – vermelho, roxo, azul, branco, amarelo, cinzento. As veias na testa pulsaram, Os olhos quiseram saltar-lhe das órbitas. Começou a espumar da boca. Bulma juntou as mãos, como numa prece.
- Trunks-kun, tu sabes o que acabaste de fazer? Colocaste-nos em perigo!
- Não sejas dramática, 'kaasan. Contei-lhe, e depois? Não aconteceu nada, como vês. Continuamos nesta dimensão. Somos dois casos perdidos, já to tinha dito. Tu não consegues terminar a tua máquina, eu não consigo interagir. Apesar dos esforços...
E quando se voltou para o pai, para ver que cara punha desta vez, não conseguiu evitar o choque. Vegeta atirou-se ao seu pescoço. Os dois rebolaram pelo chão sujo da garagem.
Trunks afastou Vegeta com uma cabeçada e um soco. Uma ferida antiga abriu-se e sangrou. Vegeta irritou-se ao ver o próprio sangue. Aparou um segundo soco e atingiu o filho com um pontapé no peito, derrubando-o. Agarrou-o pela gola, esmurrou-o na boca.
Bulma puxou-lhe pelo braço.
- Vegeta, não!
- Solta-me!
O safanão foi tremendo e Bulma foi atirada de encontro à mesa. Vegeta desferiu outro murro, Trunks gemeu, com a boca cheia de sangue. Bulma atirou-se a Vegeta, agarrou-o pela cintura, puxou-o com toda a força, separou-o do filho.
- Para, por favor! – Gritou-lhe.
O cansaço devia estar a vencê-lo e só havia essa explicação para Vegeta não se libertar dos braços dela. Mas ordenou-lhe rugindo:
- Solta-me, mulher!
Bulma voltou-se para o filho.
- Levanta-te. Sai daqui e leva a rapariga para o quarto dos hóspedes.
Trunks abanou a cabeça, a tossir engasgado.
- Despacha-te! E vai-te limpar, tens a cara numa lástima.
A custo, pôs-se em pé. Esfregou os olhos, dirigiu-se para o sofá. Vacilou, tremia das pernas, notou Bulma. Vegeta tinha desistido, fixava o filho com uma raiva surda, mordendo cada gesto, mas mantinha-se nos braços dela, aceitando a sua ingerência.
Trunks tomou a rapariga nos braços, subiu as escadas interiores e desapareceu pela porta que conduzia até ao rés-do-chão da vivenda. Só nessa altura é que Bulma aligeirou o abraço. Vegeta rastejou para longe dela. Sentou-se, encostou-se à parede, a tentar conciliar a respiração. Estava zangado. Bulma sentou-se em frente a ele, também ofegante.
Ele disse:
- Não gosto que te metas nos meus assuntos!
As palavras contrariavam a sua atitude. Bulma não queria mais discussões. Estava a perder tempo, tinha de terminar a máquina das dimensões, abrir o radar do dragão, avançar mais qualquer coisa naquela tarefa impossível.
- Trunks é o meu assunto. Tínhamos combinado isso depois do acidente.
- Humpf!
Ele limpava o sangue da cara atabalhoadamente.
- E bater em Trunks não adianta nada, Vegeta.
- Ele merece uma boa tareia.
- Essa tareia não ia adiantar nada. Trunks passava uma longa temporada na cama, ficava a odiar-nos um pouco mais...
- Ele odeia-me?
- Ele tem sangue saiya-jin.
Vegeta riu-se.
Bulma levantou-se, sacudiu a poeira das calças. Disse sem olhar para ele:
- Tu também, vai-te limpar. O que foi que andaste a fazer, nestes dias que estiveste fora? A caçar animais selvagens?
- Cala-te, mulher.
Ele olhava para as escadas e para a porta entreaberta que Trunks utilizara. Coxeou, colocou um pé no primeiro degrau, mas retirou-o a seguir. Resmungou inconformado:
- Aquela intrometida está dentro da minha casa.
- Ela não nos vai fazer mal nenhum.
Bulma agarrou novamente na chave-de-fendas, mas pousou-a na mesa, ao lado do radar. Tinha uma convidada e deveria ir tratar do almoço. Não iria mandar a rapariga embora, assim que acordasse, era contra as regras da boa-educação. Suspirou, detestava cozinhar.
- Não sentiste?
- Hum?
Vegeta continuava parado no início das escadas, a olhar para a porta.
- Esta noite. A Porta dos Mundos esteve quase a abrir-se.
Bulma recordou que algo estranho a despertara no meio da noite. Mentiu:
- Não. Não senti.
- Foi o teu filho e com aquela intrometida. Ele esteve quase a interagir, eu sei. E se não ponho um travão nisto...
- Não vai acontecer – cortou ela, amedrontada. Não por causa do feiticeiro, do Universo, mas porque temia estar a abrir-se dentro da sua família uma chaga impossível de curar.
- Tenho um mau pressentimento. – Mostrou-lhe um punho fechado. – Bulma, a partir de hoje, Trunks passa novamente a ser assunto meu! E não vais interferir.
- Mas...
- Não há "mas". A discussão terminou.
- Como queiras!
Atirou a chave-de-fendas contra a máquina das dimensões. A ferramenta fez ricochete na chapa que ficou a vibrar com um zumbido metálico. Vegeta subiu as escadas a coxear.
Bulma deixou-se cair numa cadeira, encostou a cabeça na mão, a suspirar.
Outro dia de trabalho perdido.
O calendário não mentia. Faltavam quase três meses para a catástrofe.
VII.7. Despertando para a verdade
Entrada no meu diário, data: setembro 1996
A escuridão coloriu-se de cinzento, primeiro um tom mais carregado que foi mudando gradualmente para tonalidades mais claras, até ser quase branco, até despertar.
Doía-me a cabeça mas fiz um esforço para abrir os olhos. Aquele dia estava a ser pródigo em despertares inusitados. Não sabia muito bem onde me encontrava, se no meu sofá depois de um duche, se no carro do Tiago, se na minha cama depois de ter sonhado em que tinha passado a noite a dormir no banco de trás do carro do Tiago, se em frente à minha casa com Trunks em forma de rapaz, se noutro lugar qualquer.
Percebi que estava deitada.
Definitivamente, a última hipótese: noutro lugar qualquer.
As pálpebras pesavam-me uma tonelada, mas consegui entreabri-las.
Estava num quarto, deitada numa cama feita, apalpei uma colcha debaixo de mim. As persianas da janela estavam corridas, passava luz pelos buraquinhos. Nas sombras, não reconheci a mobília, os recantos.
Encontrei uma miúda a olhar para mim, debruçada sobre a cama. Não consegui assustar-me, estava dormente.
A voz saiu-me rouca:
- Quem... quem és tu?
A miúda era bonita. Loira, olhos azuis, uma cara redonda, um vestido a combinar com o laço que lhe prendia o cabelo.
Lembrei-me dela. A miúda estava no hospital, naquela noite em que soubera da notícia do acidente do Tiago.
A cabeça encheu-se das memórias dos últimos instantes antes de ter desmaiado. O Tiago dizia que se chamava... E se ele se chamava... então, aquela miúda era a irmã dele e chamava-se...
- Bra – murmurei.
Ela reagiu. Correu para a porta, mas não chegou a sair. Falou em japonês para alguém que se aproximava:
- Okaasan, ela já acordou.
- Vai para baixo. Estamos quase a começar a almoçar. Venho ver se a nossa convidada já está em condições para ir comer.
- Hai!
A miúda desapareceu e entrou uma mulher. Também a reconheci, também estava no hospital.
- Estás acordada? – Perguntou em castelhano, inclinando-se sobre o meu rosto. – Já te sentes melhor?
Era a mãe dele e se ele se chamava... então a mãe dele chamava-se Bulma. O nome atordoou-me e fechei os olhos.
- Sentes-te melhor? - Insistiu preocupada.
Respondi a gaguejar:
- Sim.
- Consegues levantar-te?
- Eu... acho que preciso de um banho.
- Queres tomar banho? Este quarto tem casa de banho privativa. Arranjo-te roupa e uma toalha.
- Se não se importar...
- Não me importo nada. Se não te importares de usar a minha roupa.
- Eu? – Soltei um risinho nervoso. – Usar a sua roupa? Essa é boa!
- Podes tratar-me por tu.
Ela foi até à janela dizendo:
- Vou levantar as persianas, para deixar entrar um pouco de luz no quarto. Bem, tomas banho e depois vens almoçar connosco. Concordas?
Fiquei tensa.
- Almoçar aqui?
- Hai.
A claridade do dia que inundou o quarto encandeou-me e tapei os olhos com os braços.
- Gomen nasai.
- Não faz mal. Tenho de me levantar e deixar de ser piegas, certo?
- Vou trazer-te o que precisas. Ah... Só uma coisa.
A cabeça parecia um carrossel. Pisquei os olhos, espreitei-a por entre os braços, era ainda mais esquisito do que quando a vira no hospital, agora que sabia quem ela era.
- Como é que te chamas, querida?
- Ana – respondi.
- Ana... Gosto do nome.
Saiu do quarto.
E apeteceu-me desmaiar outra vez.
***
O aroma saboroso de comida acabada de fazer vinha até mim, saindo, invisível e tentador, pela porta da cozinha. A sandes de queijo e o leite achocolatado do início da manhã há muito que tinham sido digeridos e estava outra vez com fome.
Parei, a tomar coragem.
Belisquei-me. A dor dos meus dedos a apertar a pele foi bem real e eu acreditei que não estava a dormir.
Entrei na cozinha. Era espaçosa, quadrada, com eletrodomésticos brancos e brilhantes, bancadas de madeira clara, os azulejos e as cortinas em tons de amarelo. Junto à parede, debaixo de um candeeiro quadrado cromado, estava uma mesa de seis lugares, com três cadeiras ocupadas. O pai à cabeceira, a filha e o filho de cada lado. Disse os nomes deles mentalmente. Vegeta, Bra e Trunks.
Não conseguia avançar. Era como penetrar num sonho alheio.
- Senta-te ao pé de Trunks, Ana – indicou a mãe.
Disse o nome dela mentalmente. Bulma.
Respirei fundo e dirigi-me para o lugar que me tinha indicado. Puxei a cadeira com cuidado para não arrastá-la pelo chão. Sentei-me sem fazer qualquer ruído. Era um fantasma a entrar no mundo dos vivos. Ou então, o contrário, um ser vivente a visitar o mundo etéreo. Deixei as mãos no colo, debaixo da mesa. Não conseguia olhar para ele, que se sentava ao meu lado direito.
Bulma guarneceu a mesa de diversas travessas onde fumegava arroz, legumes variados, pedaços de carne envolvidos em molho espesso. Pousou ainda um jarro de água e dois pacotes de sumo. Começou a servir os pratos, começou por Vegeta.
Tomei coragem e levantei os olhos. Estremeci aflita com o que descobri.
- Tiago, o que foi que te aconteceu? Tens a boca rebentada.
Ele olhou primeiro para o pai. Respondeu:
- Não foi nada... E podes parar de chamar-me Tiago. Já sabes que o meu nome não é esse.
- Ah... Desculpa, não me apercebi.
Bulma acabou de servir os pratos.
- Ana-san, podes começar a comer. - Voltou-se para a filha. - Bra, para de olhar para a nossa convidada e olha para o teu prato.
A miúda agarrou imediatamente no garfo a dizer:
- Gomen nasai, 'kaasan.
O almoço começou em silêncio. Apesar da simpatia de Bulma, o ambiente estava longe de ser simpático. Agarrei também no meu garfo. A comida parecia apetitosa, mas perdera inexplicavelmente o apetite. Espreitei Trunks, mais a sua boca rebentada. Tragava garfadas de legumes e de arroz como se não comesse há três dias e agora, conhecendo a sua identidade, já percebia por que comia ele tão esganado, fosse uma sandes de queijo, um gelado ou legumes com arroz. Sorri. Sem querer, o meu olhar desviou-se para Vegeta e descobri que tinha um olho negro, a testa arranhada, um grande penso na face direita. Teriam andado a lutar os dois, pai e filho? Outra vez?
- Passa-se alguma coisa? – Perguntou-me aborrecido, batendo com os talheres no prato.
- Não, nada. - E mergulhei os olhos no meu prato.
- Vegeta esteve a treinar-se ontem à noite - explicou Bulma.
Vegeta tornou a bater com os talheres no prato, em sinal de protesto.
- E apesar de não me ter dito, aposto que foi com Son-kun.
- Quem?
- Goku.
- Com... com Goku? - Gaguejei.
Bra olhava para mim com um sobrolho franzido.
Trunks não reagia e continuava a comer, como se o mundo fosse acabar dali a dois minutos.
Bulma perguntou-me:
- Estás a gostar do almoço?
Acenei que sim.
- Não estás a comer, querida.
- Ah... Ainda me dói a cabeça.
- Faz um esforço, deves alimentar-te. Estás muito pálida.
Acenei outra vez que sim e enfiei um garfo cheio de arroz na boca.
- Eu sei que não sou uma excelente cozinheira, mas esforcei-me para que hoje saísse tudo bem. Nunca gostei muito de cozinhar, admito. Agora, se quiseres provar comida divinal, feita com todos os preceitos, terás de ir visitar Chi-Chi.
Vegeta levantou-se de repente. Encolhi-me.
- Onde vais? - Perguntou Bulma.
- Já terminei. - E saiu da cozinha, com as mãos enfiadas nos bolsos. O prato estava cheio de comida.
Bra seguiu o pai com o olhar, enquanto mastigava devagarinho. Trunks terminava a sua refeição e arrumava os talheres no prato, colocando-os lado a lado, com tanto cuidado que nem sequer retiniram. A minha deixa. Arrumei também os meus talheres, limpei a boca no guardanapo. Agradeci o almoço e disse a Bulma que teria de me ir embora. Tinha gente preocupada comigo por não saberem do meu paradeiro e estava a faltar ao emprego. Ela concordou comigo e pediu ao filho que me levasse à cidade. Trunks levantou-se e saiu da cozinha. Despedi-me à pressa e segui-o, não queria perder a minha boleia.
***
O Toyota branco deixou a urbanização de Gambelas numa marcha regular, nada condizente com o condutor que havia afirmado que gostava de acelerar. Possivelmente, de noite transformava-se.
O silêncio continuava a imperar, mas não me achei no direito de o quebrar. Sentia-me constrangida com aquela situação e esperava que ele não tivesse mesmo de me matar, depois de ter revelado os seus segredos, mesmo que a ameaça se revestisse agora de um ligeiro toque cómico.
Foi ele que acabou por falar:
- Deves ter muitas perguntas que queres fazer.
Concedia espaço à minha curiosidade, queria revelar-se, totalmente despido de toda e qualquer máscara que o tinha resguardado dos perigos do meu mundo.
Sim, tinha muitas perguntas, todas atropelando-se, querendo ser a primeira, porque era a mais importante, a pergunta que responderia, de uma assentada só, a muitas perguntas, mas o que comecei por perguntar foi:
- Onde está o Toyota vermelho?
- Ficou destruído no acidente.
- Sempre tiveste... um acidente?
- Hai. Estive quase a morrer, mas um feijão senzu salvou-me.
- Claro! Um feijão senzu! – E desatei a rir pois aquilo soava de uma maneira tão fantástica. Lembrei-me do mestre que tinha a forma de um grande felino branco e estranhei: – Quer dizer que Karin está aqui? Mas onde?
- Não sei. Num qualquer lugar misterioso, para ocidente. Todos aqueles que estão ligados a Son Goku estão aqui.
Processei aquela informação devagar.
- Todos mesmo?
- Hai, todos. Já conheces alguns...
Lembrei-me e comecei a tremer.
- Gohan. – Olhei para ele e perguntei: – Eu tenho aulas de japonês com Son Gohan?
Ele também olhou para mim.
- Se quiseres continuar com as aulas.
- Que coisa... tão... espetacular. – Perguntei a seguir: - E que fazem aqui, em Portugal? Por que é que não estão no Japão?
- Escolhas.
- De quem?
- Ana, mesmo que te tenha revelado o meu nome verdadeiro, continua a haver segredos que não vejo necessidade de os conheceres – sentenciou com uma voz dura.
- Porquê?
- Pergunta outra coisa.
- E por que é que não falam em português?
- Ainda não temos uma voz portuguesa. Falamos apenas as línguas que nos foram atribuídas na tua dimensão.
- Ah... Compreendo. Conseguem falar os idiomas para os quais "Dragon Ball" foi dobrado. Estou certa?
- Se é assim que o entendes, acho que está certo.
- Por que é que não gostas de "Dragon Ball"? Se tu és... quem dizes que és?
Sorriu pela primeira vez.
- Para nós, ver a forma como existimos nesta dimensão é mortal. Se for exposto ao teu precioso "Dragon Ball", perco a vida.
- Oh... Não sabia... E falei-te tantas vezes de...
- Não o poderias saber.
Entrávamos na cidade. O Toyota parou num semáforo fechado, atrás de uma fila de automóveis.
- Conheces-nos demasiado bem, não conheces?
- Conheço.
Ele olhava-me com uns olhos azuis profundos e agora entendia a beleza transcendental do rosto dele. Apaixonei-me por ele na curta duração daquele olhar que não pertencia ao meu mundo. Eu tocava no impossível, no universo dos sonhos, noutra dimensão.
Ele aguardava que eu respondesse mais qualquer coisa.
O semáforo abriu.
- Já vi o teu pai chorar.
O Toyota arrancou atrás dos outros automóveis.
- Gostei da resposta – disse lacónico.
Comecei a divagar:
- Isto parece uma coisa dos "Ficheiros Secretos"!
Ele levantou um sobrolho, numa expressão admirada.
- Conheces? "Expediente X"? É uma série de televisão.
- Nós não vemos televisão, para não termos dissabores.
- Hum... Percebo, por causa de "Dragon Ball". Bem, então eu conto-te a cena. Estás a ver, "Ficheiros Secretos", dois investigadores do FBI. Aparecia o Fox "Spooky" Mulder, com aquele estilo muito compenetrado, mostrava-me as suas credenciais e dizia-me: "Bom dia!... ou Boa tarde! Agente Mulder, do FBI. E esta é a minha colega, a agente Scully". A Dana Scully vinha atrás dele, olhos claros, cabelo ruivo, também compenetrada, enfiada nos seus fatos de duas peças, de saia travada. O Mulder começava com as perguntas, que nunca são diretas: "É verdade que conheceu um rapaz chamado Tiago, num dos bares da cidade, no mês de agosto?"; "É verdade que conheceu o pai do Tiago nessa mesma noite?"; "Não conheceu mais ninguém relacionado com o Tiago? Amigos da família?"; "Nunca achou nada estranho no Tiago?". Então, eu começava a ficar preocupada... A Scully analisava as minhas reações com o seu olhar científico... As perguntas do Mulder não eram diretas, porque o que ele queria averiguar era a presença dos heróis de "Dragon Ball" em carne e osso, na minha... como foi que tu chamaste? Na minha dimensão. E, ao mesmo tempo, provava a sua teoria da existência de muitos universos e da existência de vida extraterrestre, pois, no fim de contas, vocês são extraterrestres.
Ele riu-se e eu ri-me com ele.
O Toyota estacionou na rua do meu prédio.
- É verdade, não é? Vocês são mesmo extraterrestres?
Trunks desligou o motor do automóvel.
- Meio saiya-jin.
Arrepiei-me, sorri.
Como já era habitual, as despedidas eram sempre difíceis e longas.
- Bem... - Não consegui dizer o nome dele, era tudo demasiado recente, precisava de absorver aquelas informações todas no seu tempo devido. – Obrigada por tudo.
- Eu também te agradeço. Por teres ficado e por teres escutado.
- Qualquer dia... Terás de me traduzir o que me disseste.
- Qualquer dia – concordou triste.
Abri a porta do carro.
- Vamo-nos vendo por aí.
- Se o meu pai deixar.
- Vegeta não gosta muito de mim. Porquê?
- Tem medo de ti.
Desatei a rir.
- O quê? Mas isso é impossível! Vegeta tem medo de...?
- Acredita que é verdade. Djá ná, Ana.
Sempre pensei que ele me fosse beijar, mesmo com a boca rebentada. Gostaria de curá-la com os meus beijos, mas ele agarrou-se ao volante e afastou a possibilidade dessa cura. Rodou a chave, o motor começou a trabalhar.
Fechei a porta do automóvel. Olhei desolada para a minha casa. Saía da dimensão dos sonhos, reentrava na realidade pardacenta. A janela do Toyota estava aberta e espreitei por esta.
- Espera! Quero perguntar-te uma coisa... Lembrei-me agora.
Trunks olhou para mim.
- Onde está Son Goten?
Empalideceu, gaguejou:
- Na-nani?
- Vocês são amigos, não são? Mas nunca te vi com ele. Tu disseste que tinham vindo todos para a minha dimensão. Onde está Son Goten?
O motor do Toyota roncou quando ele carregou no acelerador, com a mudança engatada e sem soltar a embraiagem. Larguei a janela.
- Desculpa Ana, mas tenho mesmo de me ir embora.
- Está bem...
E o condutor que gostava de acelerar revelou-se, mesmo à luz do dia, o Toyota branco desapareceu voando pela rua afora. Fiquei intrigada com aquela reação.
Entrei em casa mole e abatida. Não estava doente, apesar de ter sido essa a desculpa que inventei para não me aborrecerem com as inevitáveis perguntas, sendo a principal "mas por onde tens andado, desde ontem à noite?". Estava esmagada com uma realidade que me parecera fantástica quando a descobrira, mas que agora se revestia de um peso monstruoso que eu não sabia se seria capaz de suportar.
E, no meio de tudo aquilo, qual era o lugar do André?
E o meu lugar?
Fim de entrada.
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