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Capítulo VI


VI.1. As canções do fim

Entrada no meu diário, data: setembro 1996

O bar de Vilamoura onde se cantava karaoke estava cheio e muito animado.

A Catarina agarrou no microfone e preparou-se para cantar "True Colors" da Cindy Lauper. Todos lhe disseram que era uma canção muito difícil, que tinha muitos agudos, mas a Catarina já tinha bebido dois gin tónicos e sentia-se pronta para conquistar os palcos do mundo. Saltou do seu lugar e postou-se diante da televisão, à espera que aquilo arrancasse, a música e depois a letra, palavras brancas que se iam colorindo à medida que era necessário cantar.

- Será que ela vai conseguir ler? – Perguntou o Mário a fingir-se preocupado.

- Eu ouvi essa! – Barafustou a Catarina, ajeitando o fio do microfone para não atrapalhar.

- Deixa-a cantar – disse a Luísa agarrando no copo de whisky-cola.

A música começou. Eu acabei o resto do meu vodka. O André disse-me ao ouvido:

- Queres outro, Ana?

Olhei para ele.

- Outro? Olha que já bebi muito esta noite.

- Não estás a conduzir...

- Mas devo manter a minha sanidade mental.

- Para que queres isso?

- Ora... Não quero sair daqui de gatas.

- Estás com medo do quê? Solta-te... Vou buscar outro copo.

Não lhe consegui dizer que não.

A voz da Catarina encheu o bar. A nossa mesa calou-se para ouvi-la cantar. As outras mesas, nem por isso.

O espetáculo começou. Com as duas mãos coladas ao microfone, a Catarina esforçava-se para acompanhar a letra com a melodia, sem desafinar muito. Mas como estava nervosa por estar sob os holofotes, acabava a cantar três versos adiantados. Calava-se quando se apercebia do facto trauteava para não perder totalmente o fio à meada, arrancava no tom errado e prosseguia a cantoria, a completar o desempenho com uma mão que subia e descia, ao ritmo da canção.

- "And I see your true... colors... shinning through".

A Catarina elevava a voz como uma profissional.

- "That's why I love you, so don't be afraid".

Naquela sexta-feira de meados de setembro alguns colegas da turma da universidade tinham combinado uma saída noturna, para recordar os bons velhos tempos e pormos a conversa em dia. A Luísa tinha-me telefonado na tarde e eu não dissera que não, até porque, mesmo que tivesse dúvidas, a Catarina ligara-me cinco minutos depois da Luísa e haveria de mas desfazer.

Eu adorava aqueles jantares, aquelas saídas, rever as antigas amizades universitárias, especialmente se no grupo estivesse incluído o André. O que era raro não acontecer, porque o André nunca falhara esses encontros. Sentávamo-nos ao lado um do outro, conversávamos no restaurante, acabava sempre por ir no carro com ele, bebíamos juntos na mesa do bar que fechava a noite, o assunto nunca se esgotava, falávamos de tudo.

O André tinha sido a minha grande paixão na universidade, mas no fim do curso separámo-nos, cada um começou a trabalhar e à força de encontros esporádicos nalgumas sextas-feiras durante o ano, a paixão foi esmorecendo, reacendendo-se timidamente quando nos voltávamos a ver. Nunca tinha acontecido nada de substancial. Eu gostara dele, não sabia muito bem se ele gostara de mim. Apesar de a Catarina afirmar que o André adorava-me, só que tinha medo de dar o último passo e aquilo acabava sempre numa morna conversa entre dois grandes amigos, com algumas brincadeiras pelo meio e algum álcool.

Se o André perdesse o medo, porém, se cruzasse a fronteira e se avançasse no meu território, eu não fugiria. Havia qualquer coisa que retinia no meu interior sempre que o reencontrava à sexta-feira à noite, para mais um jantar de turma, sempre que ele me cumprimentava com dois beijos na face, demasiado junto à minha boca. Porque o André existia muito antes do bonitinho do Hugo. E muito, muito antes...

Engoli em seco, desesperada de repente por uma gota de vodka que me devolvesse ao mundo azul da universidade.

Muito antes do Tiago.

Os últimos acordes. A Catarina baixou o microfone, deu dois saltinhos ao som dos derradeiros batuques.

Irrompemos em palmas, em assobios, em rasgados elogios. O André pousou um novo copo de vodka na nossa mesa e sentou-se ao meu lado. A Catarina agradeceu com uma pronunciada vénia. Devolveu o microfone à animadora do karaoke e atirou-se para o sofá que ocupávamos. O Mário entregou-lhe o terceiro gin tónico. Começaram os comentários e as piadas, a Catarina defendendo a sua atuação e incitando o próximo corajoso para agarrar no microfone e ir cantar também.

- Oh, Ana! Faltas tu, pá! – Exclamou ela, limpando o suor da testa com os dedos da mão.

Afastei o copo de vodka dos lábios.

- Eu já vou.

Apanhei um olhar caloroso do André.

- Vai lá cantar uma dos anos sessenta, que tu gostas tanto.

Realmente estava a ficar quente ali dentro. Também já me sentia a suar por todos os lados.

- Uma dos Beatles – insistiu a Catarina.

- Eu disse que já vou.

- Não vês que ela está entretida? – Observou o Mário, piscando o olho ao André.

A Luísa agarrou na tabela plastificada das canções. A Catarina achou-a com mais disposição para ir cantar do que eu e concedeu-lhe todas as atenção, escolhendo também a melhor música para animar o pessoal, que estava tudo muito murcho. Não notava que era ela quem estava mais acelerada, por causa do gin tónico. E eu por causa do meu vodka.

Saboreei um pequeno gole da bebida, sentindo-a queimar o palato, o odor quente enchendo-me as narinas e mergulhei de cabeça no mundo azul da universidade que procurava emular naquele local de diversão em Vilamoura.

O André colou o seu copo de imperial ao meu copo.

- Vamos fazer um brinde.

- Brindamos a quê?

- Aos encontros felizes.

Sorri.

- Hum... Estamos inspirados hoje?

- Desde que mantenhas a tua sanidade mental.

Lancei uma risada, que me soou um pouco ébria, mas o vodka passava rapidamente do estômago para as veias e daí para o coração, que a pizza que tínhamos jantado já não devia fazer qualquer lastro.

O André olhava para mim e eu comecei a contar mentalmente os segundos. Oito, nove, dez, onze, doze. E eu também olhava para ele, sorrindo, querendo encurtar, finalmente, aquela distância parva que sempre tinha existido. Quinze, dezasseis, dezassete, dezoito. Começava a ficar tonta de tanto fixar o olhar dele, mas não seria eu que iria quebrar aquele fio invisível que nos estava a ligar inexoravelmente. Vinte, vinte e um, vinte e dois e já eram segundos a mais.

O Mário lançou mais uma das suas piadas, escutei alguém a rir. O André decidiu que estava satisfeito, bebeu outro gole de imperial, pousou o copo na mesa e finalmente apartou o olhar. Tive a impressão que também ele estivera a contar os segundos. Mais do que dez e era crítico, química certa, como dizia a minha amiga Patrícia.

A animadora do karaoke anunciou mais um participante e passou o microfone a um homem. Começou a tocar "Wonderful Tonight" do Eric Clapton.

A minha paixão antiga hoje não me parecia assim tão impossível. Recostei-me no sofá, embalando-me na tontura do vodka, recordando os pequenos nadas daquela noite, tentando ler os sinais necessários para não esbarrar quando chegasse o momento de abrir o território e ir mais longe do que alguma vez tinha ido com o André.

- "... you look wonderful tonight...".

Claro que não era a voz do Eric Clapton, mas o homem cantava bem, com uma voz grossa e envolvente. Notava-se que conhecia bem a canção e que estava habituado a cantá-la, porque raramente desafinava.

- Não te vais deixar dormir aqui, pois não?

Abri os olhos de repente. O André sorria, debruçado sobre mim.

- Eh... Não, claro que não.

- Trouxe-te o vodka para que fiques divertida. Não era para adormeceres.

- Eu não estava a dormir – protestei, endireitando as costas.

- "I feel wonderful because I see the love light in your eyes".

Por um instante, parecia que iria beijar-me.

Entrei em pânico. Estava demasiada gente à volta! E eu não suportaria as piadas do Mário, haveria de me derreter de vergonha.

- "... you just don't realize how much I love you..."

O anúncio da Luísa interrompeu a cena:

- Já sei o que vou cantar! Vai ser Tina Turner.

O André voltou ao seu lugar, bebeu mais um gole de imperial. O Mário perguntou-lhe qualquer coisa.

- Qual é a canção? – Perguntou a Catarina.

- "What's Love Got To Do With It".

- Boa escolha. Essa é espetacular!

A Luísa pousou a tabela plastificada das canções na mesa e agarrou no whisky-cola. A Catarina propôs um brinde. Eu sei que levantei o copo, fizemos o brinde e bebi uma grande porção de vodka que me pôs literalmente a arder.

Teria de me ir refrescar, acalmar um pouco. Fui até à casa de banho lavar a cara. Quando saí tropecei num rapaz, pedi desculpa mas reconheci-o e a alegria que senti por encontrá-lo no mesmo bar que eu frequentava, porque ainda não o tinha descoberto no meio daquele ambiente cheio de fumo, deixou-me mais quente que o vodka que tinha a circular no sangue.

Sorri para o Tiago e cumprimentei-o entusiasmada:

- Komba-wa! Genki desu?

O rosto dele contorceu-se de uma forma estranha, um remoinho a engolir-lhe as feições, a partir da boca e depois explodiu numa gargalhada alarve.

Só vi cabeças a girarem na nossa direção.

Quedei-me varada de espanto com aquela reação. Fora igual a uma bofetada que me tivesse rebentado a boca.

O Tiago ficou sério de repente e disse com brusquidão:

- Estou ocupado, nena. O que é que queres?

Uma rapariga alta e ruiva enroscou-se no braço esquerdo do Tiago, materializando-se do nada, uma cobra envolvendo-o lentamente como um pequeno demónio tentador. Olhou para mim com sobranceria. Tinha a boca entreaberta e vi a língua dela passar pelos dentes, medindo-me e avaliando-me como qualquer coisa inferior a um inseto.

Ele tinha-me feito uma pergunta e eu devia responder. Achava eu...

Gaguejei:

- Não quero nada...

Resposta errada. Apercebi-me disso tarde demais.

O Tiago mostrou um sorriso enviesado, apertando a cobra de encontro a si, que continuava de boca aberta e com a língua cor-de-rosa a passar pelos dentes.

- Queres sim. Sempre que nos encontramos tens esse...

- Acho melhor não continuares – murmurei.

- Fogo dentro de ti.

Inclinou-se, como se me fosse beijar, arrastando a cobra consigo, que se aproximou demasiado como se me fosse beijar também, envolvendo-nos numa espécie de casulo. Encolhi-me.

- E hoje estamos a experimentar o lado selvagem, nena? Tens um hálito de quem andou nos copos... O que é que tens estado a beber?

- Não te interessa!

- Queres vir comigo? Hum? Fazemos uma festa a três. Aqui a Vânia não se importa... Importavas-te?

A cobra negou com a cabeça. Mas por que é que não fechava a boca e insistia em mostrar-me a língua cor-de-rosa a passar pelos dentes?

Um braço pesado carregou-se nos meus ombros. Senti-me aprisionada. Olhei para o lado e descobri o João.

- Espanhol, engataste mais esta?

O Tiago disse-me ao ouvido:

- Ou então, uma festa a quatro. Tu ficas com ele... Ou queres ficar com a Vânia? Seria o máximo, nena.

Empurrei o João.

- Eh, lá... Não gostas?

- Então, não aceitas o convite? O lado selvagem, nena. E estás no bom caminho. Uns bons copitos, depois uma aventura na cama. Que dizes?

- Estou acompanhada, Tiago.

O João disse:

- Eu não conheço esta gaja, espanhol? Não é aquela coisinha do outro dia?

- Porra, estás sempre a vê-la e a dizer a mesma coisa.

- Já a comeste?

O Tiago riu-se para mim.

- Tenho de a comer, sim... Para ver se acabo com esse fogo.

Olhei-o perplexa e, sobretudo, desiludida. À beira das lágrimas, não fui capaz de lhe dizer o que estava a sentir naquele momento: um enorme e azedo desprezo. Uma terrível e infindável desilusão. Pela enésima vez, ele despedaçava a imagem imaculada que eu tinha dele.

Disse com tristeza:

- Desculpa se te incomodei... Adeus, Tiago.

Acabou-se. Deixei-o para sempre.

Nunca mais iria insistir... Mesmo que me doesse, que me despedaçasse.

Odiava o Tiago. E o meu coração morreu com esse ódio.

Porque havia muito mais no Tiago... Sabia-o.

A animadora do karaoke anunciou o próximo artista. A Luísa deixou o seu whisky-cola na mesa e recebeu o microfone. A música começava, ela gingou as ancas, num tímido passo de dança. A Catarina bateu palmas, enfiou dois dedos na boca e assobiou.

Sentei-me. O André perguntou:

- Quem era?

Corei. Não queria que nenhum dos meus amigos tivesse presenciado aquele encontro lamentável, muito menos o André.

- Ninguém. – Forcei um sorriso. – Um amigo da Patrícia. Uma pessoa sem importância.

- Hum...

Agradeci-lhe interiormente por não insistir nas perguntas.

A Luísa cantava bem, no ritmo certo. Ela sempre fora amiga da perfeição, em qualquer coisa que fizesse. Quando passava a computador os manuscritos dos trabalhos de grupo, era bem capaz de imprimir dez vezes a mesma página até acertar com a formatação do texto que mais lhe agradava.

O mundo azul da universidade regressava para me envolver e acalmar.

Olhei para o André. Estava farta daquela indecisão. Agarrei na cara dele, puxei-o e beijei-o na boca. Ele olhou para mim surpreendido.

A Luísa cantava:

- "What's love got to do... got to do with it?".

Soltei-o, recuei no sofá, atrapalhada. Provavelmente, fora demasiado rápida, quase faminta. Não queria que também ele me acusasse de ter aquele fogo dentro de mim. Antes que eu me afastasse demasiado, o André aproximou-se e arrancou-me um segundo beijo. O meu coração deu um salto.

- "Who needs a heart, when a heart can be broken?".

Entreolhámo-nos, ainda na dúvida. Depois aconteceu um beijo mais caloroso, com muita língua e muita saliva. Ele abraçou-me, eu abracei-o, acabámos finalmente com a distância do sofá e de todos aqueles anos em que alimentámos a paixão em lume brando. Ninguém comentou, nem mesmo o desbocado do Mário, sempre tão disponível para fazer piadas sobre qualquer situação. A seguir, rimo-nos, nos braços um do outro, os narizes roçando-se.

Nessa noite de sexta-feira, o André e eu começámos a namorar.

Fim de entrada.


VI.2. A pisar o risco

Na Dimensão Real morava num apartamento agradável, acolhedor e simpático. Tinha apenas três divisões, um quarto, uma casa de banho e uma sala com cozinha incorporada. Podia ter tido pior sorte, como Ten Shin Han que, segundo o que ouvira contar, vivia no meio da serra, numa casa velha e a cair aos pedaços.

Yamucha atirou a mochila para cima do sofá, foi até à cozinha e abriu a porta do frigorífico. Agarrou numa lata de Fanta. Empurrou a porta do frigorífico com o cotovelo, abriu a lata, bebeu um grande gole do refrigerante e voltou à sala.

- Yamucha-san. Já regressaste?

Puar saiu do quarto a flutuar, a esfregar os olhos ensonado.

- Hai.

- Que horas são?

Yamucha consultou o relógio de pulso.

- São onze e meia da manhã.

- Onze e meia? – O sono de Puar passou-lhe de repente. – Tão tarde?

Yamucha sentou-se no sofá, estendeu as pernas em cima da mesa e agarrou no comando remoto. Ligou a televisão.

- Tenho de preparar o almoço.

- Não tenhas pressa, Puar. Ainda não tenho fome.

O gato azul tinha um aspeto peculiar na Dimensão Real. As suas características estavam ampliadas, cada detalhe exagerado – orelhas largas e pontiagudas, cara gorda, corpo redondo, um rabo grosso e felpudo. Por causa disso, achava que o companheiro já não possuía os mesmos poderes que tinha na Dimensão Z e gostava de o testar amiúde. Pedia-lhe que se transformasse em coisas simples. Uma escova de cabelo, um par de chinelos, um tapete, um jornal. Puar estranhava os pedidos, mas cumpria-os todos e convertia o corpo azul, sólido e aparentemente inflexível, nos objetos que Yamucha imaginava. Apesar de peculiar, continuava a ser o mesmo Puar de sempre. Pelo menos, por mais quatro meses, porque ao fim de um ano na Dimensão Real haveria de perder as suas faculdades.

Bebeu outro gole do refrigerante. Até ele próprio se classificava como peculiar, pensou desconsolado. As rugas acentuavam-se no rosto apagado e envelhecido, as duas cicatrizes sobressaíam demasiado, o que motivava olhares embasbacados e comentários pouco lisonjeiros das pessoas daquela dimensão.

Mas apesar de se sentir demasiado esquisito dentro daquele corpo que o estrangulava, Yamucha decidira que não iria ficar encerrado dentro daquele apartamento minúsculo, à espera do telefonema de Bulma a anunciar que a máquina das dimensões estava pronta. E por saber que era proibido levar uma vida normal naquela dimensão, por causa da estúpida regra de não poderem interagir com um deles, não contara a ninguém o que fazia, dia após dia.

- Correu tudo bem hoje? – Perguntou Puar.

Yamucha acabou de beber a Fanta, esmagou a lata entre os dedos.

- Tudo normal, companheiro. Como nos outros dias.

- Já fizeste amigos?

Notou um certo tom de censura no gato. Deixou a lata amolgada no sofá, pôs as mãos atrás da cabeça.

- Falo com alguns tipos que também frequentam o ginásio... Até agora, não aconteceu nada. Falar com eles não é essa coisa de interagir.

Fechou os olhos, sorrindo, inundado de confiança viril. Completou:

- Está tudo sob controlo! Não te preocupes.

Que se danassem as duas cicatrizes! Não havia ninguém mais forte do que ele naquele ginásio onde treinava os músculos e onde se distraía dos dias aborrecidos. Era admirado, notava-o, e como era calado, cultivava uma aura misteriosa que agradava especialmente ao elemento feminino. No ginásio, sentia-se um rei.

A campainha tocou. Os dois sobressaltaram-se. Yamucha perdeu o ar pretensioso, Puar olhou assustado para a porta.

A campainha voltou a tocar.

- Estás à espera de visitas, Yamucha-san?

- Não. E tu?

- Eu? Nunca saio de casa! Ninguém sabe que eu existo! Como é que alguém que não existe pode receber visitas?

- Chiu!

Puar cobriu a boca pequena com as patas.

A campainha tocou pela terceira vez. Yamucha ordenou:

- Esconde-te. Vou ver quem é.

- Vais abrir a porta?

- Até pode ser algum dos nossos.

Puar entrou no quarto, encostou a porta, deixando uma fresta para espreitar o que se iria passar na sala. Yamucha sacudiu a cabeleira negra e farta para trás. Apercebeu-se que precisava de tomar banho e de se trocar, cheirava a suor e as roupas estavam sujas. Abriu a porta de supetão. Ficou sem voz ao descobrir uma mulher que o cumprimentou com um rasgado sorriso.

- Bom dia. Posso entrar?

Nem esperou a resposta e entrou pelo apartamento adentro, com pequenos passos, a passar os olhos pelos cantos da casa de uma maneira casual. Yamucha fechou a porta.

Era uma mulher de meia-idade, com resquícios do antigo fulgor que exibira na juventude. Penteava-se com estilo, maquilhava-se com um certo exagero, usava roupas espalhafatosas e coloridas que lhe acentuavam as curvas ainda bem vincadas. Usava um conjunto de pulseiras douradas que retiniam umas contra as outras sempre que agitava o braço, nem que fosse ao de leve. Andava com graciosidade, como uma bailarina a pisar um palco coberto de pétalas de rosa.

- Tem uma casa muito bonita, senhor Eduardo – disse ela, voltando-se quando atingiu o extremo da sala. Encostou-se ao balcão da cozinha.

Yamucha lembrou-se com um estremeção que esse era o nome que usava na Dimensão Real.

- O-obrigado – gaguejou em castelhano.

A mulher percebeu claramente o seu desnorte.

- Não se lembra de mim, senhor Eduardo?

Ele riu-se, negando timidamente, sacudindo a cabeça.

- Sou colega sua no ginásio.

- No... no ginásio?

- Não se lembra de mim?

- Eh... Para dizer a verdade, a sua cara não me é estranha.

A mulher estendeu-lhe a mão direita, as pulseiras tilintaram.

- Sou aquela para quem olha tanto no ginásio que já me sinto gasta... Tanta olhadela, mas tem medo de se aproximar. Chamo-me Dedé.

- Dedé?

Ele apertou-lhe a mão, as pulseiras tilintaram mais um pouco. A mulher fez uma careta.

- Não gosto de Odete. Prefiro que me tratem por Dedé... se não se importa.

- Não, não me imp...

- Vive sozinho? – Cortou ela, num trejeito sedutor.

- Sim, vivo sozinho. Sou... solteiro.

Agora, começava a lembrar-se da mulher. Tinha reparado nela na semana passada, achara-a parecida a Bulma. Gostava de fazer exercícios nos aparelhos, exagerando os gestos para captar a atenção dela. Não sabia até que ponto o havia conseguido, até ela lhe aparecer, naquela manhã, no seu apartamento. Pelos vistos, resultara.

A Dedé deliciou-se com o que ele lhe dissera. As pulseiras tilintaram.

- Eu também vivo sozinha. Já fui casada, agora estou novamente livre.

- Eu... também estou livre.

- Oh! Mas que interessante!

Um breve silêncio que acentuou o nervosismo de Yamucha. Era essencial não resvalar para aqueles silêncios que matavam o embrião de qualquer relação ocasional. Perguntou, tentando acalmar-se:

- Como é que sabia onde morava?

Ela tapou o riso com a mão, fazendo tilintar novamente as pulseiras. Corou ligeiramente.

- Vai ter de me desculpar, senhor Eduardo, mas... segui-o.

- Seguiu-me?!! – Yamucha esbugalhou os olhos.

- Foi a única forma que encontrei para lhe devolver uma coisa que é sua. Ainda o chamei, mas saiu tão apressado do ginásio que não me deve ter ouvido.

Abriu a mala e estendeu uma toalha branca, bordada com duas letras verdes na ponta. Aparvalhado, Yamucha olhou para a toalha.

- São as suas iniciais, não são? "E.M."?

Não eram, mas ele não se descoseu. Aquelas toalhas tinham vindo com o apartamento.

- Eh... É o meu nome.

- E.M.... Eduardo... Eduardo, quê?

- Eduardo... Eduardo... Eduardo Martins! – Inventou à pressa, recorrendo-se do apelido do treinador do ginásio, o Tó Martins.

A mulher humedeceu os lábios com a ponta da língua, o batom vermelho-perigo brilhou. Yamucha recebeu a toalha.

- Eduardo Martins... Gosto do nome.

Yamucha sorriu, sabendo que assim acentuava ainda mais as duas cicatrizes, mas a mulher estava tão embevecida que não deve ter notado nada. Ou já as tinha notado e considerado que eram um adereço másculo indispensável no rosto daquele homem que a impressionara a levantar pesos. Ela apontou discretamente para a mesa onde repousava o telefone, as pulseiras tilintaram.

- Não me quer dar o seu número de telefone, senhor Eduardo? Podemos combinar um encontro, fora do ginásio, para um cafézinho. O que me diz?

- Ah...

- Está sozinho, eu também estou sozinha... Existe algum problema?

- Não, nenhum.

- Então?

Estava encurralado. Também não desejava espantar o pássaro quando este já estava a comer na sua mão e a curiosidade sobre como funcionaria uma mulher da Dimensão Real avolumava-se. Escreveu o número de telefone numa folha branca que arrancou de um pequeno bloco de papel que se colava, por um íman, à porta do frigorífico. Entregou a folha à mulher. O sorriso dela mudou de cordial para triunfante.

- Eu telefono-lhe.

- Fico... à espera.

A mulher encaminhou-se para a porta.

- Entretanto, continuamos a ver-nos no ginásio. Não é, senhor Eduardo?

- Pois... é.

As pulseiras tilintaram quando ela ajeitou uma madeixa de cabelo.

- Costuma ser assim tão tímido quando está ao pé de mulheres, senhor Eduardo? Prefere contemplá-las de longe?

- Não... Não estava à espera de visitas.

- Ah... Compreendo.

Yamucha abriu-lhe a porta. A mulher despediu-se com um sorriso, ele murmurou algumas palavras que serviram como resposta à despedida, mas a mulher não se importou com o murmúrio inteligível, pois já tinha conseguido o que fora ali buscar.

Quando fechou a porta, encostou-se à parede, suspirando de alívio. Puar apareceu a flutuar diante dos seus olhos, zangado, de sobrolho franzido e patas cruzadas.

- Tu deste o nosso número de telefone à Dedé?!

- O que é que querias que fizesse?

- Vais sair com essa Dedé?

Yamucha minimizou a questão.

- E depois?

Estendeu-se no sofá. Ao alçar os braços, para os colocar atrás da cabeça, sentiu o odor a suor dos sovacos e lembrou-se que continuava a precisar de um banho. Completou com alguma sobranceria:

- É só uma mulher desta dimensão.

Puar insistia:

- E se chegares a interagir com ela? Já pensaste bem? Bulma-san vai ficar furiosa.

- Bulma? E achas que tenho medo de Bulma?

- E de Vegeta-san, não tens medo? Ele também vai ficar furioso.

Yamucha levantou-se do sofá, enfiou-se na casa de banho, batendo com a porta.

Detestava lembrar-se do saiya-jin. Ele e Vegeta sempre foram incompatíveis.

Quando se enfiou debaixo do chuveiro, começou a ter dúvidas, a sentir-se inseguro, a perceber que talvez tivesse feito uma enorme asneira ao entrar no jogo da Dedé. Ele era tão crédulo com as mulheres. Invariavelmente acabava sempre por lhes fazer todas as vontades.

A voz de Puar veio da sala, abafada pela porta da casa de banho fechada e pela água do chuveiro.

- Espero que saibas o que estás a fazer.

Se acontecesse algum acidente e ele chegasse a interagir com a Dedé, seria uma verdadeira tragédia. Poderia considerar-se um homem morto, pois nada o iria poupar à fúria de Vegeta. Puar tinha razão.

Debaixo da torrente de água quente, Yamucha arrepiou-se.


VI.3. A amizade verdadeira

Aquela noite de finais de setembro estava fria. O céu negro e silencioso, salpicado de estrelas, estendia-se como um véu distante sobre o mundo. Trunks aconchegou o blusão ao corpo, enfiou as mãos nos bolsos e começou a andar.

A urbanização das Gambelas encontrava-se mergulhada na habitual quietude, tão silenciosa quanto o próprio céu. Ele aceitou aquela calma como indispensável, naquele momento da sua vida em que tentava afastar de si todo o ruído.

Aparentemente, nada tinha mudado. Continuava a sair de casa a horas impróprias, a regressar a horas ainda mais impróprias, a recusar uma conversa, qualquer tipo de aproximação, a não partilhar nada com a família, nem mesmo uma simples refeição. No entanto, tudo tinha mudado.

Nos primeiros tempos na Dimensão Real, sentira-se vazio e preenchera esse vazio com a invenção do Tiago. Agora, o Tiago já não era suficiente e sempre que ouvia o berro eufórico do João a chamar pelo espanhol, alguma coisa estalava dentro dele. E Trunks impunha um sorriso, impunha uma atitude, impunha uma mentira.

O facto é que o Tiago perdera a piada. As bebedeiras já não o divertiam, muito menos as raparigas fáceis e estúpidas que lhe arranjava o João. O verão já tinha terminado e tinha havido um acidente que criara um antes e um depois, uma nova cronologia. Apercebeu-se que o Tiago morrera nesse acidente, deixara aí a pele e a alma, o que quer que o tivesse constituído como um ser palpável naquela dimensão, e Trunks sentia-se cansado por ter de continuar a desempenhar o papel desse personagem.

A porta dos fundos da vivenda de Gohan abriu-se e ele saiu, carregando um enorme saco preto de plástico, atado na ponta. Trunks parou, fungando, absorvendo o frio da noite, espreitando o caminho que tinha feito e que o tinha levado até àquela casa. Gohan acenou-lhe.

- Komba-wa, Trunks-kun!

Trunks sorriu-lhe.

- Um saiya-jin também despeja o lixo?

- Hai. Quando casares, verás que existem outras coisas que os saiya-jin também fazem.

Gohan abriu o contentor do lixo que se disfarçava num recanto da rua, rodeado de arbustos, e atirou o saco preto de plástico lá para dentro. A tampa do contentor fechou-se com um baque despropositadamente barulhento. Vinha a sacudir as mãos, batendo-as uma na outra, como se pudesse assim livrar-se do cheiro. Trunks disse-lhe:

- Brincas comigo? Eu moro na Capsule Corporation. Tenho robots que tratam do lixo, não preciso nunca de o despejar. Mesmo depois de me casar.

- Ah, pois... Já me esquecia.

Gohan juntou-se a ele, metendo as mãos nos bolsos das calças para aquecê-las, ou então, para esconder o cheiro. Olhou para o céu negro e silencioso.

- Estavas a passear?

- Hai.

- Posso acompanhar-te?

Trunks encolheu os ombros.

- Depois de despejares o lixo, não há mais nada que um saiya-jin deva fazer?

- Não. Depois do lixo, estou livre.

- Não é um passeio muito divertido, aviso-te.

- Não faz mal. Estamos juntos, é o que interessa.

Na outra noite, tinham tido finalmente uma espécie de conversa. Trunks não falara muito, escutara o que Gohan lhe dissera, enquanto trincava as bolachas que ele tinha trazido num prato. O barulho dos maxilares a desfazer cada uma das bolachas ajudava a barrar parte do discurso de Gohan, para que lhe fosse mais fácil absorvê-lo, em doses não muito letais. Retivera duas frases, porém, da conversa e um gesto. As bolachas tinham terminado, Gohan pousara-lhe uma mão no ombro e dissera-lhe:

- Não guardo rancor por aquilo que aconteceu. Nunca guardei.

Limpara os dentes com a ponta da língua, para arrancar pedaços moles e doces de migalhas misturados com saliva e pedira água. Gohan perguntara-lhe se ele estava bem e ele respondera que tinha comido um feijão senzu e que não poderia estar mal. Falara-lhe a seguir das bolas de dragão e que queria que fosse ele a pedir o desejo. Nunca mencionaram o nome de Son Goten.

Missão cumprida e Trunks regressara a casa menos nervoso.

***

Os passos deles ressoavam na estrada.

- Não tens aulas de japonês hoje?

Gohan negou.

- Não. A aula foi ontem... A segunda aula desta semana foi desmarcada, a Ana disse-me que depois me telefonava a confirmar a data dessa segunda aula. Acho que ela se está a desinteressar de aprender japonês.

Trunks fechou os punhos dentro dos bolsos do blusão. Gohan prosseguiu:

- Não percebo aquela rapariga. Praticamente implorou-me que retomasse as aulas, depois de terem sido canceladas por causa do teu acidente. Não lhe quis dizer que não, afinal são apenas aulas, afinal estava a implorar-me... Mesmo que tivesse depois de me justificar perante o teu pai. Mas agora, já não me parece tão motivada como no início. Ontem nem trouxe o caderno dos apontamentos.

Uma situação inédita. Trunks comentou pensativo:

- Ela está a afastar-se? Não pode ser...

Gohan suspirou.

- Videl acha que vamos interagir com ela.

Trunks riu-se com a observação.

- Eu ou tu?

A tirada espirituosa não foi do agrado de Gohan. Franziu o sobrolho, olhou-o de esguelha, mas não quis agarrar na deixa, preferindo ignorá-la, não queria obviamente discutir.

- Por outro lado, o meu pai acha que interagir é uma coisa impossível.

- Essa é nova – disse Trunks ligeiramente espantado. – Goku-san acha isso?

- O teu pai não está de acordo.

- Vegeta nunca está de acordo com nada.

- Tenho pensado nessas duas possibilidades... Interagir com alguém com quem convivemos de forma sistemática, como a Ana. A impossibilidade de interagir, por ser algo tão rebuscado e complicado que não está ao nosso alcance. Chego sempre à mesma conclusão. É melhor não tentarmos a sorte e devemos evitar a Ana-san.

Trunks parou. Sentia as faces geladas.

- Porquê?

Gohan também parou. Analisava-o curioso, começando a formar uma ideia sobre as relações dele com a rapariga da Dimensão Real, como parte do raciocínio que seguia naquela matéria. Perguntou-lhe:

- O que é que queres da Ana-san?

A resposta haveria de alimentar novas conjeturas. Trunks percebia o espanto de Gohan, nem ele saberia a solução daquele enigma – o que queria ele, de facto, da Ana? No âmago, naquele recanto esconso onde ainda se mantinha são e lúcido, sentiu um repuxão. Teve medo, mergulhava em águas misteriosas, mas soube que não iria recuar. Nunca medira os seus atos pela razão, lembrou-se. E respondeu de forma casual:

- É a única pessoa da Dimensão Real com quem falo em japonês.

Gohan rebateu:

- Ela já não quer aprender a falar japonês. O interesse dela pelo japonês acabou.

Por outras palavras, o interesse da Ana por ele tinha acabado. Percebeu a indireta, o aviso camuflado. Gohan pedia-lhe que reconsiderasse, que regressasse à luz, quando ele já caminhava sob essa luminosidade que correspondia ao caminho certo. E o que havia no fim do caminho? A dimensão onde ele pertencia? A vitória sobre Zephir? Son Goten?

Trunks olhou para o chão.

- Isso é uma coisa que tenho de esclarecer.

- Se ela quer afastar-se... Deixa-a. Será melhor para todos, até para ela. O que ganha a Ana em relacionar-se com um grupo estranho de pessoas que, mais cedo, ou mais tarde, irão abandonar este lugar?

- Mas não faz sentido. – Trunks entremostrou um sorriso apagado. – Ela gosta de "Dragon Ball".

- Nani?

- É por esse nome que a Dimensão Real conhece a Dimensão Z. "Dragon Ball".

- Bola de dragão? – Traduziu Gohan admirado.

- Hai... O que não deixa de ser irónico.

Mais dados, que Gohan processava no cérebro, acomodando-os para analisá-los mais tarde. Haveria de os esquematizar numa bonita equação matemática e talvez fosse o que Bulma precisasse para pôr finalmente a máquina das dimensões a funcionar. Gohan olhou-o por cima dos óculos e pediu, sem qualquer esperança de ser ouvido:

- Trunks-kun, não o faças. Deixa a Ana-san em paz.

Trunks retomou a caminhada.

- Quero ouvir da boca dela porque é que já não quer aprender japonês.

Fizeram o caminho de volta em silêncio, cada um recolhido nos seus pensamentos, nas suas ideias, nas suas teimosias.

A noite estava bonita, mas fria e exageradamente quieta. Gohan despediu-se com um aceno e entrou em casa. Trunks enterrou a cabeça nos ombros, procurando aquecer-se dentro do blusão. Desceu a rua. Quando chegou perto da vivenda onde morava, não entrou. Ainda não se sentia preparado. Reuniu energia e elevou-se nos ares. Olhava para o manto de estrelas distantes enquanto subia, decidido a deixar-se embalar pelo vento, largando-se sem âncora e saboreando a última viagem que iria fazer naquela dimensão – que haveria de levá-lo a costas seguras. Ou àquilo que procurara nos últimos meses: um inferno insuportável.


VI.4. O regresso do tio misterioso

A empregada da loja fez aquela cara de quem analisava a roupa para ver se combinava com quem a vestia, mas já com a resposta preparada que não tardou:

- Fica-lhe muito bem.

Maron, de mãos apoiadas nas ancas, girou a cintura para a esquerda, depois para a direita, sem desfitar o espelho. A empregada completou com o sorriso mil vezes ensaiado:

- Parece que foram feitas especialmente para si.

Maron admirou um pouco mais as calças pretas e depois anunciou que iria levá-las. A empregada concordou com a escolha, teceu mais um elogio pré-fabricado, sorria por ter conseguido subir um pouco mais a sua comissão naquele mês. Maron entrou na cabina e descerrou as cortinas prateadas para se despir.

O melhor remédio para um coração partido era ir às compras e gastar uma quantia indecente de dinheiro. Dissera à mãe que iria até à rua das lojas da cidade porque queria renovar o guarda-roupa. Não lhe estava a pedir autorização e esperara o sermão condizente, que haveria de começar e terminar mencionando que ela só tinha dezasseis anos. No entanto, número 18 entregara-lhe o cartão de crédito dizendo:

- Não tem limite.

Recebera incrédula o cartão de crédito. Número 18 acrescentara:

- Não te demores demasiado. Já sabes que o teu pai fica preocupado.

Guardara o cartão de crédito na mala.

- Isso vai passar.

Olhara para o rosto sereno da mãe.

- Essa dor não dura para sempre.

- Não me dói nada – dissera na defensiva.

Mas a mãe não respondera.

Maron pagou as calças pretas, agarrou no saco de papel reciclado com o logotipo da loja e saiu para a movimentada ruas das lojas. Já contava com uma impressionante coleção de sacos na mão esquerda e estava disposta a colecionar mais. Parou diante de uma montra admirando os vestidos. Gostou principalmente das cores quentes da nova coleção, dos boleros a condizer, dos cintos e dos sapatos. Reparou noutro canto da montra, nas blusas e nos casados de malha, que também eram muito bonitos e aconchegantes.

- Maron?

Ouviu o seu nome e estremeceu, porque ninguém a tratava por aquele nome ali, a não ser que a conhecessem. Mas ela não tinha reconhecido a voz e voltou-se rapidamente.

- És tu, não és?

Olhou para o homem que a interpelava. Cabelo preto comprido e liso, olhos claros rasgados, duas argolas douradas nas orelhas. Em redor do pescoço, tinha um lenço vermelho. A roupa que usava chamou-lhe a atenção, tudo a combinar num estilo muito irreverente.

Reconheceu-o de repente, ligando a imagem verdadeira da Dimensão Z àquela imagem distorcida conferida pela Dimensão Real e exclamou:

- Número 17?!

Ele sorriu.

- Ah, lembraste-te de mim.

Quando ela ia sorrir também, como se um sorriso tivesse o poder de unir a distância que havia entre eles, apesar de serem tio e sobrinha, ele ficou sério, agarrou-lhe num braço e perguntou-lhe num sussurro junto ao ouvido:

- Ouve, Maron... O que raios se passa aqui? Que sítio é este?

A primeira coisa que lhe veio à cabeça foi responder que estavam na rua das lojas da cidade, mas depois percebeu a profundidade da pergunta. Pensou em pedir-lhe que a largasse, mas se respondesse talvez surtisse o mesmo efeito e o afastasse. Não gostava daquela proximidade com um completo desconhecido, apesar de serem tio e sobrinha.

- Estamos noutra dimensão, chamada Dimensão Real. Fomos enviados para cá por um feiticeiro louco chamado Zephir, que quer conquistar o Universo. Com um feitiço, todos aqueles que estão ou estiveram ligados a Son Goku, viajaram da Dimensão Z para Dimensão Real.

Como esperado, número 17 soltou-lhe o braço, deixando a pele dormente onde os dedos apertaram. O seu tio era forte, muito mais que a mãe, pensou com um laivo de curiosidade, a alma de lutadora a espicaçar-se com um possível desafio.

- Goku... – murmurou número 17.

- Estás aqui durante este tempo todo e ainda não sabias?

Ele inspirou uma grande porção de ar pelo nariz, enfiando as mãos nos bolsos do casacão.

- Eu não me dou propriamente com os amiguinhos do teu pai. Como querias que soubesse?

A secura da resposta abalou-a. Apertou as alças dos sacos de papel, apetecendo-lhe apertar o pescoço dele, em vez das alças dos sacos de papel. Mas, de seguida, número 17 mostrou-lhe um sorriso enigmático e piscou-lhe o olho, como se lhe estivesse a pedir desculpa por ter sido tão seco. Maron corou.

- No entanto, não deixa de ser um lugar agradável. Diferente.

Ela pensou em contar-lhe o que não poderiam fazer na Dimensão Real, como interagir, transformar o feiticeiro num deus, ficar naquela dimensão para sempre ao fim de doze meses, perder os poderes, mas desistiu da ideia. As regras só atrapalhavam e ele aparentava ser daqueles que detestava cumprir regras.

- Presumo que seja uma estadia temporária.

Ele inclinou-se para dizer aquilo, aproximando-se do rosto dela. Maron respondeu, recuando um passo:

- Hai.

- Hum... Poucas palavras. Como a tua mãe. Estou a aborrecer-te, miúda?

- Não.

- Como é que regressamos à nossa dimensão?

- Eh... Está a ser construída uma máquina.

- Quando a máquina estiver acabada e pronta para a viagem, conto contigo para que me avises. Quero regressar à minha casa, apesar de este lugar ser agradável. Ouviste, miúda?

- Não tenho nenhum problema de audição. E não gosto que me trates por miúda. Tenho nome e tu sabes qual é.

Número 17 riu-se.

- Igualzinha à mãe.

Tornou a inclinar-se, perscrutando-lhe o rosto ao perguntar:

- Sabes combater?

Um arrepio fê-la estremecer. Ajeitou os sacos de papel na mão.

- Porque é que queres saber?

- Sabes combater, ou não?

- Sei.

- Tens treinado? – Reparou no que ela segurava e completou com algum desdém: – Ou preferes andar nas compras, a gastar o dinheiro dos paizinhos?

Ela indignou-se com aquela observação. Tanto parecia aproximar-se dela, seduzindo-a com os seus modos insinuantes e a sua voz maviosa, como parecia escorraçá-la com ditos cortantes e ofensivos. Quem é que desejava um tio instável e louco daqueles?

Rangeu os dentes.

Ele riu-se outra vez.

- És mesmo igualzinha à tua mãe!

- Não me tenho treinado – respondeu numa rajada, para que ele parasse de rir. – Não me apetece.

Número 17 ficou sério.

- Queres vir treinar comigo?

Nova pergunta desconcertante. Ela olhou-o fixamente.

- Se pensas que te vais divertir à minha custa, estás enganado. Sei lutar e não me vais conseguir derrotar facilmente.

- Nem eu te quero derrotar. Só quero treinar contigo. Ver se realmente...

Agarrou-lhe no queixo e completou:

- És igualzinha à tua mãe.

Pediu-lhe um pedaço de papel e uma esferográfica. Maron entregou-lhe um dos talões das compras da tarde, pediu a uma mulher que passava uma esferográfica e número 17 anotou o nome do sítio onde morava, um lugarejo situado na serra, servindo-se de uma montra como apoio para escrever. Devolveu-lhe o talão das compras escrito, ela devolveu a esferográfica à mulher.

- Então, está combinado? – Perguntou número 17.

Maron assentiu, sem demonstrar o receio que estava a sentir por estar a aceitar aquele convite:

- Está combinado.

Número 17 piscou-lhe o olho, despediu-se com um curto aceno e desceu a rua das lojas, de mãos enfiadas nos bolsos do casacão, num andar que transpirava segurança e presunção, uma pitada de perigo e doses incomensuráveis de mistério. O tio que todas as sobrinhas gostariam de ter, pensou.

Olhou para o talão das compras. A morada estava escrita numa letra irregular. Notava-se que número 17 detestava escrever ou escrevera tão pouco ao longo da vida que nunca praticara a caligrafia.

Mordeu o lábio inferior. Aquilo era uma loucura, mas não iria recusar o convite de número 17 e iria lutar com ele, na serra onde morava, a mesma serra que ela via desde a janela do seu quarto pejada de casas, onde se acendia um tapete de luzinhas quando anoitecia. Talvez uma dessas luzinhas fosse a casa de número 17.

Guardou o talão das compras no bolso das calças e deu-se por satisfeita.

O dia de compras tinha sido proveitoso e o coração partido estava parcialmente remendado.


VI.5. Afastamento

Entrada no meu diário, data: setembro 1996

Esperava pelo André na entrada do centro comercial da rua das lojas. Tínhamos combinado encontrarmo-nos depois do trabalho para tomar um café, conversar e trocar alguns beijos para acalmar as saudades, pois os dias eram demorados quando eu não estava com ele.

Namorávamos há mais de uma semana e estava a ser uma experiência deliciosa. Talvez não devesse reduzir a coisa a uma mera experiência, mas não sabia bem como classificar o turbilhão de sensações que me engolia. Ser a namorada do André completava-me, ocupava-me com distrações válidas, empurrava-me para descobertas interiores que eu explorava extasiada, acalmava-me, devolvia-me amor-próprio, segurança e calor.

Consultei o relógio de pulso. Ele estava ligeiramente atrasado. Trabalhava num banco e, por vezes, o horário de saída era irregular, contara-me. Eu não me importava de esperar, aumentava a expetativa do reencontro. Enquanto ele não vinha, distraía-me com o movimento da rua, pensando nos momentos que já tínhamos colecionado juntos, desde a sexta-feira em Vilamoura, desde o primeiro beijo.

Tinha contado à Patrícia a novidade no último fim-de-semana, quando ela me tinha telefonado para convidar-me para uma saída até à discoteca. Dissera-lhe que já tinha outros planos e explicara que andava com o André. Ela ficara muito calada e perguntara:

- Ele não era da tua turma na universidade?

- Era.

Perguntara-lhe pelo Miguel. A Patrícia respondera-me que estava em Lisboa. No fim do verão, regressara à base. Só viria ao Algarve em ocasiões especiais, com feriados colados a fins-de-semana ou coisa do género. Ela até estava a considerar ir trabalhar para Lisboa, até começara a enviar currículos e a responder a anúncios de empregos na capital, para ficar mais perto dele. Eu não percebera a necessidade, pois parecia-me que o Miguel nunca ligara muito bem com ela, apesar de a Patrícia ter julgado que sim, mas esse pensamento guardara-o para mim. Perguntara-lhe pelo Pedro, apesar de me ter amaldiçoado a seguir por ter feito semelhante pergunta. O Pedro estava bem, respondera-me, com o Pedro para toda a vida fora divertido, mas não passara de uma aventura de verão, que já tinha terminado, insistira ela. O verão e a aventura, os dois terminados. Haveria outros verões, acrescentara com alegria, apesar de entristecer logo a seguir e confessar que detestava o inverno.

- Olá, Ana.

O Tiago apareceu à minha frente com um dos seus sorrisos luminosos. Porém, a presença dele já não encontrava eco em mim. Não lhe devolvi o cumprimento e ele deixou de sorrir.

- Passa-se alguma coisa?

Voltei-lhe a cara. A minha vontade era pregar-lhe uma enorme bofetada, que deixasse a minha mão marcada na pele.

- Ana?

Tinha de fazer alguma coisa, não o queria comigo quando o André aparecesse. Consultei outra vez o relógio de pulso e disse-lhe, sem o encarar:

- Não quero falar contigo. Nunca mais quero falar contigo e agradeço que não me dirijas a palavra. Estás a incomodar-me.

- Nani?

A palavra japonesa irritou-me. Olhei-o e insisti:

- Não quero falar contigo. Não percebes? De ti, quero distância. E vai-te embora, pois estou à espera de uma pessoa e não quero apresentá-la a um perfeito idiota desprezível, que sente um especial prazer em espezinhar os outros.

Ele olhava-me boquiaberto, completamente desnorteado.

Resolvi, por compaixão, esclarecê-lo.

- Não estou disposta a aturar-te as manias, espanhol. Para mim, acabou. Quando estás sem o teu amigo João por perto, és completamente diferente. Consegues ser... um rapaz normal, com alguma noção de bom senso. Mas quando estás com o João e com aquelas rapariguinhas que te abrem as pernas só por causa desses teus lindos olhos azuis, és um autêntico palerma. E eu fiquei farta de aturar os teus caprichos. Compreendeste-me agora? Ou queres que te faça um desenho?

Vi o maxilar dele vincar-se quando apertou os dentes. Atrapalhado, tentou uma explicação:

- Eu... sei que não tenho sido...

Levantei uma mão, travando-o. Não queria saber das suas explicações. Simplesmente, já não confiava, nem acreditava nele.

- Chega, Tiago... Acabou.

- Estás zangada comigo?

O anjo mentia-me, mais uma vez. Vacilei por um segundo e irritada por estar a ceder, explodi:

- Não achas que o que me fizeste no kakaroke de Vilamoura é motivo mais do que suficiente para estar zangada contigo? Humilhaste-me, seu palerma! Humilhaste-me à frente dos meus amigos! Odeio-te!

Ele tartamudeou qualquer coisa que me recusei a escutar.

- Deixa-me em paz! Não quero ter nada a ver com gente desprezível. Diz-me: continuas a ser um criminoso, não continuas? O crime que cometeste ainda está aí dentro, a contaminar-te o carácter e a alma e a afastar-te de todos aqueles que gostam de ti ou que tentam gostar de ti, de verdade. Porque os amigos, como o João, só estão contigo porque sabem que ganham qualquer coisa. Quando deixarem de ganhar, abandonam-te. E entre os amigos verdadeiros que perdes e os amigos falsos que te deixam, o saldo é óbvio. Acabas sozinho! Adeus, Tiago.

Fechei os olhos, mas quando os abri o Tiago ainda estava ali, especado diante de mim, à espera de uma oportunidade para se defender. Mas eu não o deixei. Já lhe tinha dito tudo e não havia mais nada depois disso. Abandonei a porta do centro comercial e pus-me a descer a rua, tentando acalmar-me.

Não sei se passou muito ou pouco tempo, mas pareceu-me que o mundo tinha paralisado e só eu me movia. Olhei para o relógio de pulso e não consegui ler as horas. Esfreguei os olhos, respirei fundo, endireitei o pescoço, as costas, o ego. Tinha-me libertado de um peso desnecessário, de uma ilusão supérflua.

O André encontrou-me. Perguntou-me por que é que eu não estava à espera dele na porta do centro comercial. Disse-lhe que escolhera ver umas montras enquanto esperava e que sempre nos tínhamos encontrado e era o que importava. Sorri, senti nos lábios o sabor molhado do beijo dele e foi como se a tempestade tivesse ido embora para sempre.

Fim de entrada.

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