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Capítulo V


V.1. Recomeçar

Bateu à porta do quarto, mas não esperou a indicação que podia entrar. Limitou-se a entrar. Bulma encontrou o filho esmorecido, parado em frente ao espelho.

- Não sabes bater? – Repreendeu-a.

- Eu bati.

Trunks nem sequer se dignou a olhar para ela, continuando a admirar o reflexo que lhe devolvia uma imagem que não condizia com o que esperava ver. Passou uma mão pelo cabelo que lhe caía até aos ombros. Desabafou:

- Preciso cortar o cabelo. Já está muito comprido.

- Queres que to corte? Eu posso...

- Não.

Bulma não esperava aquela resposta seca e imediata.

- Não, obrigado – acrescentou Trunks e amarrou o cabelo atrás, como se habituara a usar.

Ele continuava a sentir-se muito cansado, mesmo depois de ter dormido o dia inteiro. Ou fingira ou acreditara que dormira. A verdade era que sempre que fechava os olhos sentia na pele o metal frio a contorcer-se à sua volta, enquanto o carro dava piruetas no ar e aquele desejo mórbido de que tudo terminasse de uma vez por todas, sorrindo ao ver o sorriso do amigo que o chamava e eram os dois meninos outra vez, a treinar no bosque, no verão.

Mas o destino encarregara-se de colocar um feijão senzu no caminho do seu desejo mórbido e ali estava ele, a olhar para um espelho onde via um desconhecido, a cara amorfa de um morto-vivo com um cabelo demasiado comprido.

- Sentes-te bem, Trunks-kun?

A voz da mãe lembrou-lhe que não estava sozinho no quarto e que as divagações teriam de terminar, como se ela tivesse a capacidade de lhe ler os pensamentos.

- Hai.

- Pareces-me abatido.

- Não te preocupes comigo.

- Conseguiste descansar?

Trunks esqueceu finalmente o espelho e voltou-se para a mãe. Não aguentou por muito tempo o olhar dela e baixou a cabeça. Agarrou-se ao tampo da cómoda.

- Deram-me um feijão senzu – disse, a cismar com as botas que calçava –, que repõe todas as forças, cura todas as feridas, alimenta por dez dias. Como poderia ter estado cansado?

- Tens razão... Só estou preocupada contigo. Estamos todos preocupados contigo. Sabes isso, não sabes?

- Tenho estranhado. Ele não tem andado atrás de mim ultimamente.

- Nani?

- Vegeta... Cansou-se de me perseguir?

- Eu pedi-lhe que parasse.

- Fizeste mal. Estava à espera dele, na noite do acidente.

Encarou-a e atirou, consciente de que iria atingi-la mortalmente:

- Se ele tivesse aparecido, o acidente não teria acontecido.

Como esperado, Bulma estremeceu.

- Trunks-kun...

Ele susteve o olhar, empurrando a faca devagar, ferindo-a mais e mais e mais... Bulma percebeu a intenção dele. Armou-se com a armadura habitual, defendeu-se do golpe mortal.

- Talvez o acidente sirva para mudar alguma coisa por aqui.

O contra-ataque surpreendeu o atacante.

- Por que é que dizes isso?

- Espero que tenhas aprendido alguma coisa com essa tua experiência. O caminho que escolheste não te vai levar a lado nenhum.

A mãe estava quase a tocar-lhe na alma. Ele esquivou-se no derradeiro instante, não se podia deixar atingir daquela forma tão evidente.

- Não existe caminho nenhum.

Uma curta pausa.

- Há quanto tempo não falas com Goku? Ou com Gohan?

- Nani?

A mãe era exímia naquele tipo de luta, ele perdia como um principiante, enredando-se na armadilha que ela, implacavelmente, lhe estendia. Escondeu as mãos nos bolsos das calças. Tentou não parecer atrapalhado, mas começava a ficar com dificuldades em respirar.

- Não tenho nada para falar com eles.

- Pois eu acho que tens. E que evitas falar com eles por causa de Son Goten.

Fechou as mãos com força dentro dos bolsos. O metal frio contorcia-se, misturava-se com a carne, furava-o e transformava-o num ser híbrido, homem e máquina e a dor era recebida como abençoada, porque iria purificá-lo e levá-lo para o local onde o amigo o esperava. Antes de falar com Goku-san ou com Gohan-san, precisava falar com o amigo, para saber...

A voz de Bulma quebrou a lembrança em duas:

- Tens medo do que eles te possam dizer por causa daquilo que fizeste a Son Goten.

Trunks arquejou, a mãe rasgava sem pudor a máscara onde ele se refugiara naqueles últimos sete meses. Ela percebeu que o estava a alcançar, que finalmente o conseguira e animou-se.

- Trunks-kun, estás a carregar uma culpa que não é só tua. Se Son Goten perdeu a vida sabes muito bem que, em parte, Zephir foi o culpado.

Os olhos azuis dele, cheios de dor, fixaram-se no rosto da mãe.

- Dizes bem. Em parte! Porque o resto, a monstruosidade do ato, cabe-me a mim. Foi a minha mão que disparou o raio mortal que o matou! Foi a minha força que... – Deteve-se, porque resvalava para uma sinceridade que o enojava. – Bah! Não quero falar nisso!

- Provavelmente, deverias falar.

- O que queres saber? Os pormenores sórdidos?

- Não. Quero saber o que tu sentes, Trunks.

Ele encolheu os ombros.

- Não sinto nada.

Um beco. Bulma voltou atrás. Não o queria perder, era evidente, mas ele já estava longe e ela não se apercebia. Trunks colocava a máscara à pressa, antes que a perdesse para sempre. Precisava daquela identidade, ou morria.

A mãe disse-lhe:

- Quando me lembro do teu acidente, não consigo deixar de pensar que aconteceu porque tu quiseste que tivesse acontecido. Foste tu que o provocaste. Querias encontrar Son Goten no Outro Mundo.

O sorriso de Goten invadiu-lhe a mente. Trunks fechou os olhos, estarrecido com a lembrança.

- Queres encontrá-lo para pedir-lhe que te perdoe. Mas ele já te perdoou, acredito.

- Tu não sabes isso – gemeu, aflito com uma súbita apneia que lhe paralisou os pulmões.

Ela agarrou-se aos braços dele, abanou-o.

- Trunks-kun, se lhe queres pedir desculpa, porque não o fazes pessoalmente? Quando voltarmos à Dimensão Z e ressuscitarmos Goten com as bolas de dragão, podes dizer-lhe tudo o que quiseres.

O argumento que precisava para o golpe de misericórdia. Recuperou o funcionamento dos pulmões, respirou fundo. Soltou-se das mãos dela e disse com cinismo:

- Isso não vai acontecer, porque nunca mais vamos voltar para a Dimensão Z.

- Não podes dizer isso... Eu estou a construir a máquina das dimensões.

- Poupa-me! Podes enganar os outros, mas não a mim... Nem sei como consegues enganar Vegeta. Essa máquina nunca vai ficar pronta. Aqui não existe a tecnologia necessária para que isso aconteça, nem que peças ajuda aos amiguinhos universitários de Gohan.

Bulma soprou entre os dentes:

- Trunks... Estás enganado.

- E como eu nunca mais consigo interagir com ninguém... Acho que somos dois casos desesperados, 'kaasan. Dois falhados, sem possibilidade de recuperação!

Depois, abriu a porta do quarto e saiu.

Bulma sentiu-se desanimar.

O filho continuava a escolher a vertigem noturna que lhe comia a alma, que o raptava do mundo ao qual pertencia por direito e ao qual não queria regressar, percebia-o agora, pois temia reencontrar os fantasmas de velhas lembranças.

Afinal, nada tinha mudado com o acidente.


V.2. Visita à casa da serra

A casa de Ten Shin Han erguia-se no meio de nenhures, no fundo de uma depressão, entalada entre dois outeiros cobertos de vegetação rasteira e de azinheiras que cresciam selvagens na terra. Era difícil chegar lá porque não havia estrada alcatroada, apenas um caminho de terra batida, irregular e cheio de buracos.

- Tens a certeza que é por aqui? – Perguntou Bulma.

- Hai.

O automóvel seguia em marcha lenta, quase parado, conduzido por Kuririn.

- Mas o que é que deu ao Ten Shin Han para viver num sítio como este?

- Foi o que lhe calhou na Dimensão Real – respondeu Kuririn guinando o automóvel para a direita, para escapar de mais um buraco. – E é melhor que ele viva aqui, no meio da serra, sem muita gente por perto, por causa de Chaozu. Não te esqueças que o aspeto de Chaozu não é propriamente muito normal para os padrões da Dimensão Real.

- Provavelmente tens razão.

O automóvel parou finalmente à porta da casa pequena, paredes caiadas, uma janela de cada lado da porta, um telhado castanho. Necessitava de restauro e não parecia habitada. As ervas daninhas cresciam junto à casa, rodeando-a como se a amparasse entre a terra e a primeira fileira de tijolos. Havia um poço a pouca distância, coberto com uma tampa redonda de madeira, um balde de lata em cima, preso por uma corda grossa.

Kuririn bateu à porta. Ouviram-se passos arrastados no interior. O postigo entreabriu-se numa fresta discreta.

- Sou eu, Kuririn. Venho com Bulma-san.

Ten Shin Han fechou o postigo e abriu a porta com prontidão.

- Entrem. – Virou a cabeça para dentro. – Chaozu, podes sair. São amigos. Não há problema.

Passaram para uma divisão exígua, da largura da casa, decorada de forma austera por um sofá velho, uma mesa pequena num canto, uma mesa redonda com duas cadeiras e uma estante estreita vazia. Uma abertura arredondada, tapada com um reposteiro escuro separava aquela divisão do resto da casa que, pela amostra daquela entrada, devia ser pequena e acanhada. O chão era de ladrilhos cor de barro e estava encardido, não por falta de limpeza, mas por anos de sujidade entranhada.

Kuririn e Bulma sentaram-se no sofá, Ten Shin Han arrastou uma das duas cadeiras e sentou-se diante deles. Usava um turbante na cabeça.

- Isso é para quê? – Perguntou Bulma.

- Para esconder o meu terceiro olho. Uso-o para sair, às vezes esqueço-me de tirá-lo em casa.

Chaozu apareceu, afastando o reposteiro. Cumprimentou as visitas com uma vénia.

- Koniichi-wa! Oh... Que agradável surpresa.

- Olá, Chaozu – cumprimentou Bulma.

Ten Shin Han pediu ao companheiro que trouxesse chá e ele voltou para a misteriosa divisão que ficava para lá do reposteiro. Bulma sentiu curiosidade em conhecer o resto da casa, porque nunca tinha visto nada como aquilo – pequeno, pobre. Ao menos a ela tinha-lhe saído em sorte uma vivenda num sítio aprazível, com todas as comodidades, ao qual chamava lar sem qualquer dificuldade. Ten Shin Han percebeu o incómodo dela.

- A casa é uma ruína, mas já está bastante melhor. Eu e Chaozu estivemos a fazer alguns arranjos, assim que chegámos, para a tornar mais habitável. Até chovia aqui dentro. Zephir não foi muito generoso comigo.

- Ora, a casa até não me parece má – disse Kuririn.

Bulma fez uma careta, pois ele estava claramente a ser simpático.

- No entanto, eu e Chaozu não nos importamos, pois a casa é temporária. Em breve, estaremos de volta à Dimensão Z. Como é que está a máquina das dimensões?

- Está... Está muito avançada – respondeu Bulma sabendo que mentia. A maldita máquina era um espinho cravado no seu orgulho. Nunca levara tanto tempo com uma invenção sua.

- Pensas terminar a máquina quando?

- Talvez... talvez daqui a um mês.

- A máquina tem tido alguns atrasos – explicou Kuririn.

Bulma não gostou daquela observação e fez segunda careta. Kuririn percebeu que falara demais e acrescentou:

- Mas, agora estão a fazer-se progressos.

- Até parece que trabalhas comigo.

- Eh... Disse alguma coisa que não devia?

Ten Shin Han ficou confuso com a troca de palavras.

- Mas não foi para falar sobre a máquina das dimensões que viemos aqui – resmungou ela.

- Pois não – Kuririn olhou para ela.

Bulma prendeu uma madeixa de cabelo atrás da orelha, humedeceu os lábios. Perguntou de chofre, sem introdução prévia:

- Quem era o rapaz que tu e Yamucha encontraram muito ferido?

Caiu o silêncio.

O reposteiro mexeu-se, agitou as partículas de poeira suspensas no ar. Chaozu pousou o tabuleiro na mesa. Dispôs as quatro taças numa linha perfeita, serviu um chá fumegante que cheirava a flores e a mel.

Ten Shin Han apertou as calças junto aos joelhos.

- Como é que soubeste desse evento?

- Yamucha contou-me, quando me foi visitar à Capsule Corporation. O rapaz chegou a salvar-se?

Bulma recebeu a taça, cheirou o aroma delicioso do chá. Kuririn recebeu a sua taça, depois Ten Shin Han. Chaozu sentou-se na segunda cadeira, com a sua taça entre as mãos pequenas e brancas.

A abraçar o silêncio estava uma inquietude densa, quase palpável. Bulma esperava, com a taça quente a queimar-lhe os dedos. Ten Shin Han sorveu um pouco de chá.

- O rapaz salvou-se, com um feijão senzu. Chama-se Toynara e é um sacerdote do Templo da Lua.

Kuririn engasgou-se com o gole de chá que tentava beber.

- O Templo da Lua?! – Exclamou Bulma. – O mesmo templo de Zephir? Esse rapaz conhece Zephir?

- Hai, foi discípulo de Zephir, na verdade.

- E onde está esse Toynara?

- Deve estar onde o deixei, antes de termos vindo para a Dimensão Real, no Palácio Celestial. Como ele não está ligado a Son Goku, não veio connosco.

Kuririn disse:

- É uma grande coincidência teres encontrado um dos discípulos de Zephir, Ten.

- É uma sorte inesperada – corrigiu Bulma entusiasmada. – Quando regressarmos à Dimensão Z, esse Toynara saberá como derrotar Zephir.

- Provavelmente. Creio que não se importará de nos ajudar, procura vingar-se. Foi Zephir que o feriu e que o deixou às portas da morte, que lhe destruiu a casa e que lhe matou todos os amigos. Está suficientemente motivado... Além disso, conhece-nos.

Kuririn interrompeu a segunda tentativa de beber o chá de Chaozu que lhe fervia junto dos olhos.

- Conhece-nos?

- Hai. Conhece a existência dos saiya-jin.

- Como? – Perguntou Bulma.

- Ao que parece, está escrito num livro da Sala Sagrada, a grande biblioteca do Templo da Lua.

- Então, Zephir também sabe dos saiya-jin.

- Achas que sim, Bulma?

- Claro, Kuririn. Isso explica a estratégia do feiticeiro. Preparou-se para se enfrentar a Son-kun e a Vegeta. Criou um saiya-jin para obedecer às suas ordens, pensou numa armadilha infalível que os enviasse para longe, pois os saiya-jin são o seu maior empecilho para conquistar o Universo. Só há uma coisa que não encaixa bem...

- O quê, Bulma-san? – Perguntou Chaozu.

- Parece que, para além de estarmos longe, o que serve claramente os propósitos de Zephir (afastou os maiores inimigos, quem o iria combater e derrotar), o feiticeiro também pretende que estejamos aqui para o transformamos num deus e fazê-lo virtualmente invencível. Existe mais qualquer coisa, que nos escapa.

- Mais qualquer coisa? – Indagou Kuririn arrepiando-se.

- Hai... O feiticeiro não quer que fiquemos na Dimensão Real. Ele quer que cheguemos a interagir. Quer ganhar na máxima glória. Ouve, Ten: e o que é que Toynara sabe sobre os planos de Zephir?

- Não conversámos muito com Toynara. Ele é rapaz de poucas falas.

Bulma arqueou as sobrancelhas.

- Esconde o jogo? Não confia no seu salvador, que conhece os saiya-jin?

- Hai.

- Hum... Interessante. Poderá ser um Zephir em construção...

- E isso é bom? – Perguntou Kuririn.

- Claro! Iremos combater magia com magia, o pupilo a desafiar o mestre, a suplantá-lo e a derrotá-lo. Perfeito! Não há dúvida que temos um poderoso aliado contra Zephir, assim que chegarmos à Dimensão Z.

Kuririn conseguiu finalmente provar o chá de Chaozu.

- Gostaria muito de ver esse Toynara – acrescentou Bulma. – Fiquei curiosa... Assim que regressarmos à Dimensão Z, quero conhecer esse sacerdote do Templo da Lua.


V.3. As aulas de japonês

Entrada no meu diário, data: agosto 1996

Depois de algumas noites a chorar aflita, agarrada ao travesseiro, resolvi esquecer o Tiago. Era como se dizia, as más notícias chegavam sempre primeiro e se houvesse más notícias, eu haveria de saber, de alguma maneira. O Tiago estava em coma e, desde que não piorasse, o seu estado seria sempre igual e sem grandes novidades a reportar.

Haveria sempre de saber, convencera-me. As novidades corriam depressa na cidade, especialmente os acontecimentos estranhos e como exemplo tinha a história recente e curiosa de um doente em estado crítico que tinha sido raptado do hospital. Desaparecera simplesmente e nunca mais se soubera o que lhe tinha acontecido. Nem a polícia, apesar de todas as diligências e de toda a sua autoridade, tinha conseguido encontrar esse doente.

Ainda considerara ir bater à porta da vivenda onde tinha visto o pai do Tiago a conversar irritado com o tal homem vestido de vermelho, a atirar para o laranja. Passara três vezes pela urbanização de Gambelas, abrandara à porta da vivenda do professor e não parara, abrandara à porta da vivenda do pai do Tiago e arrancara. E o que diria eu se o pai do Tiago me fosse abrir a porta?

Resolvi esquecer o Tiago, mas não consegui arrebitar. Continuava sem apetite, apática, tão tristonha que começava a dar nas vistas.

Depois, tive uma visão.

Ele saía da Reitoria, pela porta mesmo em frente à porta da Escola Superior de Tecnologia, no campus da Penha da universidade. Saía nos habituais passos apressados como se quisesse fugir de tudo e de todos. Chamei por ele num grito, agitando o braço:

- Professor Gomano!

Ele parou. Descobriu-me, tive mesmo a sensação que iria escapar-se e aproximei-me numa corrida. Estava ali a minha oportunidade de recuperar o alento da vida.

Os óculos dele descaíram para a ponta do nariz, ficou tenso. Uni as mãos ao corpo, fiz uma vénia.

- Koniichi-wa, Gomano-san.

Ele gaguejou pouco à vontade, a forçar um sorriso:

- Koniichi-wa, Ana-san.

- Há muito tempo que não nos víamos.

- Hai... Há algum tempo.

- Já podemos retomar as aulas de japonês?

Ele aligeirou o nó da gravata.

- Mas... As nossas aulas tinham terminado, Ana-san.

- Não, tinham sido interrompidas. Por causa do Tiago.

- Não foi bem isso que eu...

- E como é que está o Tiago?

- Está bem.

- Está bem, como? Já recuperou do coma?

Notei uma gota de suor que descia pela testa até à cana do nariz. Ele sentiu-a e limpou-a com a mão repetindo:

- Está bem.

Haveria que flanquear o professor.

- No outro dia desligou-me o telefone. Passa-se alguma coisa?

Mas ele, astuto, recuperou a postura e também me flanqueou.

- No outro dia foste apanhada a espreitar uns amigos meus. Eu também estava nessa sala, sabias? É de má educação andar a escutar as conversas dos outros às escondidas.

Senti a cara escaldar. Não tinha resposta para aquilo. O professor empurrou os óculos com um dedo, mas a cana do nariz estava suada e eles voltaram a descair. Tinha uns olhos bonitos, escondidos atrás daqueles óculos tão feios, uma armação grossa e preta que já não se usava em lado nenhum.

Não percebi por que é que continuou a olhar-me com um ar pensativo. Eu aproveitei a sorte de ele não se ter ido embora e insisti:

- Já se passaram duas semanas. Podemos retomar as aulas de japonês?

O professor suspirou.

- Tu não vais desistir, pois não?

Neguei com a cabeça.

- Porque é que insistes?

- Já lhe expliquei por que é que quero aprender japonês. Tenho de passar outra vez pela entrevista de admissão?

- Muito bem, Ana-san. Aparece esta noite na minha casa.

Sorri com a vitória inesperada. Ele tinha-me deixado ganhar a contenda e eu não entendia porquê, mas ele lá teria as suas razões. Deu meia-volta, mas lembrou-se de um último detalhe e encarou-me.

- Quanto ao Tiago...

O nome provocou-me um choque elétrico.

- Está bem, como te disse. Foi transferido do hospital para uma clínica privada e está a recuperar do acidente.

- Ah! Está a melhorar?

- Hai.

Sorri, apertei as mãos no peito.

- Ainda bem! Tenho estado tão preocupada... Afinal, ele não é aquele doente que foi misteriosamente raptado do hospital.

O professor fez um esgar.

- Nani?

- Não soube da história? Corre pela cidade inteira.

Recuou três passos.

- Não ligo a mexericos... Até logo.

Mas também eu esqueci de pronto o mexerico. Despedi-me do professor e fui caminhando sobre as nuvens até ao meu automóvel. Tinha sabido notícias do Tiago e as minhas aulas de japonês iriam recomeçar.

As coisas compunham-se, lentamente.

A normalidade haveria de regressar aos meus dias.

Assim acreditava, depois daquele encontro com o estranho professor Gomano.

Fim de entrada.


V.4. A conversa franca

Num banco de jardim em frente à doca da cidade, onde se acotovelavam bamboleantes os barcos de recreio, Trunks observava o pôr-do-sol. Na mão esquerda segurava um pacote de pevides que retirava com lentidão e estalava entre os dentes, saboreando o sal de cada uma.

A confusão que lhe ia na alma ocupava-lhe a totalidade da mente, um remoinho ruidoso que ele se recusava a enfrentar e distraía-se com as pevides e com o vento frio a lamber-lhe a base do pescoço. Já não estava habituado a ter o cabelo curto. Cortara-o cinco dias depois do acidente. Não fora Bulma que o cortara.

- Este lugar está ocupado?

Trunks volveu a cabeça para o lado esquerdo. Descobriu-a parada, junto ao banco, as mãos a segurar uma pequena mala que, pelo aspeto murcho, não tinha nada dentro. Apenas um adereço que combinava com a cor do cinto.

Ela não esperou a resposta dele e sentou-se.

- Koniichi-wa, Maron.

A doca situava-se na baixa da cidade, perto da principal rua das lojas e de dois hotéis que recebiam com frequência turistas de todas as nacionalidades. Os estrangeiros passavam animados, vestidos casualmente, máquinas fotográficas a tiracolo, cruzavam-se com outras pessoas, em passeios descontraídos.

Trunks estendeu a Maron o pacote que tinha na mão. Estava quase vazio.

- Queres?

- O que é isso?

- Pevides. Prova.

Desconfiada, Maron tirou uma pevide e trincou-a. Não gostou muito e não tirou mais nenhuma. Trunks continuou a comê-las, com aquele olhar vazio.

- Fizeste-me esperar por ti uma eternidade – disse-lhe ela ao fim de alguns segundos de silêncio.

Trunks nada disse.

- Naquela noite de sábado em que nos encontrámos na discoteca – continuou ela. – Quando cheguei a casa, fiquei acordada à tua espera, mas tu nunca voltaste. Tiveste o tal acidente... Achei que era altura de termos uma conversa a sério. Uma conversa franca!

Mais uma pevide morreu triturada na boca de Trunks.

- Para quê?

- A maneira como te foste embora, aquilo que disseste, deixou-me preocupada. E tinha razão, afinal aconteceu o acidente. Percebi finalmente que o que dizem sobre ti é verdade.

- E o que se diz sobre mim?

- Dizem que não és o mesmo Trunks de sempre. Dizem que estás mudado.

Outra pevide. Fechou os olhos, encarou reticente o remoinho ruidoso. Não queria ter aquela conversa, mas não conseguia rechaçar a Maron como fazia com a mãe, com o pai, com a irmã, com os outros.

- Encarnaste noutro rapaz, adotaste essa personalidade e pensas que esse és tu. Agora já não és Trunks. És o Tiago!

- Tenho de ser o Tiago – disse com ironia, a retirar restos de casca de pevide dos lábios. – Não achas que se dissesse que me chamava Trunks não dava muito nas vistas? Com essa história do "Dragon Ball" a circular por aí...

Desconversava, um dos seus subterfúgios.

- Consideras-me como tua amiga?

A pergunta fê-lo estremecer. Enfiou os dedos no pacote e descobriu que as pevides tinham acabado. Apertou a boca, temendo o que se seguiria. Mas ele sabia-o, demasiado bem... Não podia deixá-la chegar a esse ponto irreversível, não podia trair ainda mais Son Goten.

Maron prosseguiu cautelosamente, medindo as palavras, utilizando-as como quem encaixa peças de um complicado puzzle de três dimensões:

- Pois eu considero-me como a tua melhor amiga. Nesta dimensão horrorosa, não existe ninguém que te conheça melhor do que eu. Naquela noite em que fiquei à tua espera, deixei-me dormir sobre o parapeito da janela e sonhei com o dia em que nos conhecemos pela primeira vez. Eu tinha três anos, mas ainda me lembro.

Trunks amarrotou o pacote de pevides, o plástico estalou sinistramente. Encestou-o no balde do lixo que existia próximo do banco.

- Foi naquele torneio de artes marciais em que tu e Son Goten participaram na competição júnior e que tu acabaste por vencer. Tinhas oito anos, não era? Nunca nos tínhamos visto, mas eu já sabia tudo sobre ti. O meu pai gostava de me adormecer com histórias sobre as suas aventuras ao lado de Goku-san e assim acabei por conhecer tudo sobre os amigos do meu pai. Até sobre ti... Adorei conhecer-te no torneio, parecias um menino tão espevitado, forte, inteligente. Quis aprender a lutar, pedi à minha mãe que me ensinasse, para que um dia pudesse lutar contigo, num torneio de artes marciais. Sonho ainda com esse dia... Nós os dois, a competirmos pelo prémio final.

- Son Goten gosta de ti.

Maron atrapalhou-se e gaguejou:

- Na-nani?

- Son Goten está apaixonado por ti. Sabias?

Olhou-a de frente, olhos nos olhos. Maron corou.

- Sabias? – Insistiu.

- Não. Não sabia. Ele... Ele nunca me disse nada...

Maron baixou os olhos, ele percebeu o despiste dela, a mágoa que se espalhou no coração, como uma mancha escura, a partir da estocada fatal que ele desferira. Tinha acabado também de derrubar o puzzle de três dimensões.

- Ele também nunca te diria nada. É demasiado tímido para isso. Estou eu a contar-te.

Reclinou-se, apoiando os cotovelos nas costas do banco. Deitou a cabeça para trás. Apesar de saber que a magoara, sentiu-se satisfeito por tê-lo feito, a primeira coisa positiva que fizera naquela dimensão e fora para Son Goten. Esboçou um sorriso pálido. Haveriam de ser amigos para sempre...

Maron estava calada, a cara voltada para a esquerda, escondendo a angústia que lhe transfigurava o rosto, a olhar para o jardim, a não ver nada certamente, a tentar perceber onde colocara a peça errada, quando estava a construir aquele puzzle com tanto cuidado.

No silêncio, abria-se uma distância irreversível.

Um berro quebrou a tranquilidade.

- Espanhol!!

O João tapou-lhe o pôr-do-sol. Alçou o braço direito, à espera da palmada respetiva que haveria de selar o encontro com um cumprimento desajeitado, mas Trunks não reagiu e o João baixou o braço. Sentou-se no banco, fazendo ranger as ripas verdes de madeira, sacudindo os outros dois ocupantes.

Maron levantou-se.

- A nossa conversa terminou.

- Foi mesmo uma conversa franca...

- Parece que sim.

Evitava olhar para ele, optando por balançar a mala vazia.

- Vamo-nos vendo por aí.

- Como quiseres, Maron. Se o teu pai continuar a deixar-te sair.

- Às vezes, consegues ser insuportável.

- É o melhor, não achas? Depois do que te disse...

Ela foi-se embora sem se despedir, atirando a mala por cima do ombro, gingando até ao jardim. As palmeiras agitavam-se com a brisa do fim do dia e Trunks sentiu outra vez falta do cabelo comprido.

O João disse:

- Espanhol, que merda de língua estavas a falar com aquela gaja? Alemão? Ela parece alemã... A loirinha é bonitinha.

- Esquece a loirinha.

- Eh!... Andas a comê-la?

Lançou a mão ao pescoço do João, apertou-o, com alguma força, pouca pelo seu padrão mas a suficiente para estrangulá-lo, por três breves segundos. Soltou-o, admirado com aquela reação repentina. Olhou para a mão que reagira movida pelo seu subconsciente, que defendia a paixão do melhor amigo, porque conscientemente ele deveria ser o Tiago e não ter nenhum melhor amigo do outro lado do mundo.

O João tossiu, esfregando o pescoço.

- Espanhol! Ficaste maluco, ou quê? Para que é que foi isso?

- Disse-te para esqueceres a loirinha.

- Está bem, está bem – anuiu rouco, arranhando a garganta, puxando por um escarro que despejou na relva atrás do banco. – Porra, que apanhaste-me desprevenido.

Trunks deitou a cabeça para trás, fechou os olhos. O remoinho ruidoso tinha-se ido embora.

- Quase não te conhecia. Cortaste o cabelo.

- Tu também devias fazer o mesmo.

O João passou uma mão pela cabeleira desgrenhada.

- Eu não... Um dos meus pontos fortes é o meu cabelo, as meninas gostam muito deste meu look selvagem.

- Se é mesmo assim...

- Tens andado desaparecido, espanhol.

- Tenho andado por aí...

- E que sítios são esses? Nunca mais puseste o pé no "Académico", nem na "Kadoc". A Manuela do Porto anda doidinha, a perguntar por ti a toda a gente. Há duas semanas que não te deixas ver.

- Agora, andas a controlar-me?

O João mostrou a palma das mãos, rendendo-se.

- Eh, espanhol! Calma! Tu hoje estás impossível. Que bicho te mordeu?

Trunks suspirou.

- Nenhum.

Provavelmente, estava a ser mais Trunks do que Tiago e tinha de acabar com aquilo. Na Dimensão Real, não havia lugar para Trunks.

- Só estou a conversar contigo, espanhol. Queres saber de uma engraçada? – Riu-se, deu-lhe uma cotovelada. – Encontrei o Pedro há coisa de dois dias e ele disse-me que tinha ouvido que tinhas tido um grande acidente de carro e que era por isso que andavas desaparecido.

- Vocês andam a beber demais – murmurou Trunks arrepiado.

- Até me disse que estavas muita mal, quase a quinar.

- É evidente que essa história não passa de uma invenção.

Olhou inadvertidamente para o jardim, procurou por Maron, mas ela já se tinha afastado demasiado para ser visível dali.

- Tens planos para esta noite, espanhol?

Inclinou-se para a frente, apoiou os cotovelos nas pernas, entrelaçou os dedos. O sol acabava de se pôr no horizonte. Sim, a noite começava e tinha de se fazer alguma coisa.

- Não queres ir para Albufeira?

- Hum?

- Para Albufeira. Descobri um bar de strip com gajas e danças do varão. Gajas lindas, mesmo boas! Daquelas que só de lhes lamberes o pescoço, vens-te todo. Telefonamos ao Luís e ele vem connosco.

Levantou-se e o João também.

- Vamos no teu carro? Pago-te a primeira bebida... Hum?

- Não me apetece.

O João estranhou.

- Não te apetece? Que merda de conversa é essa?

- Não me apetece... – repetiu, encolhendo os ombros.

- Eh, pá... Preciso de ti espanhol. O bar é muita caro, tu é que tens aquele cartão de crédito especial com montes da dinheiro. Nunca entrei lá dentro, só vi os cartazes. Vá lá, espanhol... Não te cortes.

Trunks olhou muito sério para o João.

- Já te disse, não me apetece. Convida o Luís à mesma, fica pela cidade, bebe umas imperiais à minha saúde e ao meu cartão de crédito especial com montes da dinheiro. Combinado?

- Tu hoje estás muito estranho – comentou o João com sarcasmo, coisa inédita nele. – Tens a certeza que não tiveste nenhum acidente? Cá para mim, parece que bateste com a cabeça nalgum sítio.

- Talvez tenha batido.

E Trunks soltou uma gargalhada que lhe fez doer o peito, porque não se rira de alegria, mas de desespero.

Despediu-se do amigo e afastou-se, enfiando as mãos nos bolsos, saboreando com um arrepio a brisa fresca na base do pescoço. E decidiu, assim tão de repente que até ele próprio ficou espantado com a sua decisão. Iria falar com Gohan. Porquê? Porque já era altura. Porque devia.

Simplesmente, porque sim.


V.5. Encontro inesperado

Entrada no meu diário, data: agosto 1996

O professor já tinha estado sentado, mas levantara-se assim que eu abrira o caderno dos apontamentos. Não dissera palavra e saíra do escritório e achei que tivesse ido buscar um prato com bolachas, porque ninguém o chamara.

Naquela noite, senti receio por estar ali, em forma de um estúpido e singular arrepio. Tive o pressentimento de que estava a meter-me onde não devia e que me deveria afastar.

Provavelmente a minha insistência para recomeçar com as aulas de japonês tinha sido exagerada e despropositada. Provavelmente duas semanas não tinha sido tempo suficiente. Mas tempo suficiente para quê?

Resolvi acalmar-me. Não se passava nada de estranho...

A família do professor era uma família normal, como tantas que havia por aí – a mãe, o pai, uma filha. Hoje, só tinha visto o professor, o que até tinha sido melhor, porque com todos os arrepios que sentia, ser recebida pela antipática da mulher dele iria arrasar com a pouca autoconfiança que arranjara quando tocara à campainha da vivenda.

A porta do escritório abriu-se. Eu estava de costas para a porta. Ouvi o som de passos que entraram, mas que depois pararam. Seria o professor e o prato de bolachas. Voltei-me, ainda sentada.

O coração caiu-me aos pés, fiquei sem voz, o sangue congelou nas veias, todo o meu corpo reagiu como se tivesse acabado de ser envolvido por uma rede.

Saltei da cadeira, lancei-me na direção dele. Então, a minha voz regressou.

- Tiago?!!!

Ele estava parado, agarrado ao puxador da porta do escritório do professor Gomano.

Atirei-me para cima dele, abracei-me ao pescoço dele. Era sólido e quente, não era nenhum fantasma. Toquei-lhe no cabelo, que estava curto, na cara, no peito, nos ombros, nos braços. Fui mais ousada do que contava ser, continuei a tocar nele, na cara principalmente, naquele rosto de anjo que era tão real e que estava ali, comigo, no mesmo plano físico, não era uma alucinação.

Ele agarrou-me nas mãos.

- Ana, calma. Sou mesmo eu.

Sacudi os braços e ele soltou-me.

- Mas, tu estás bem? – Perguntei sem fôlego. – Como é que estás tão bem? Só se passaram duas semanas! Estás curado? Completamente curado?

Ele franziu os sobrolhos, apreensivo. Recuou ligeiramente. Eu insisti:

- Ainda hoje o professor disse-me que tinhas sido transferido para uma clínica privada. Saíste hoje, foi? Deram-te alta? Já estás completamente curado?

- Do que é que estás a falar? – Tartamudeou incomodado.

- Mas tu não tiveste um acidente enorme, há duas semanas? Até eu estive no hospital para saber qual era o teu estado. Estavas em coma!

- Eu... Não sei do que é que estás a falar.

A resposta foi como um soco na testa. Abanei a cabeça, como que a despertar do golpe, mas continuei zonza.

- Do acidente – tornei, a sentir a boca seca. – Estou a falar do acidente.

- Eu não tive nenhum acidente.

- Ahn?

O professor Gomano entrou com o prato de bolachas. Quando nos viu estacou. Olhei para o professor, suplicando um esclarecimento. Sorriu para mim, daquela maneira idiota que lhe fechava os olhos, estendeu-me o prato e fiquei com as mãos ocupadas.

Começou a falar com o Tiago em japonês.

- Vieste visitar-me. Eu... não estava à espera.

- Não sabia que estavas com ela. Se soubesse, não teria vindo. Poupava este aborrecimento. Tem estado muito aflita a perguntar como é que me curei tão depressa. Pensava que as aulas de japonês tinham terminado.

- E tinham terminado. Mas hoje encontrou-me na universidade e não consegui convencê-la que já não havia mais aulas de japonês.

- Bem, se estás ocupado...

- Espera! Queres falar comigo? Eu mando-a embora.

- Não é preciso, volto noutro dia.

- Não, por favor. Fica. Eu também quero falar contigo... Há muito tempo que não o fazemos.

O Tiago olhou para mim. Tirou uma bolacha do prato e disse:

- Estou à espera, na sala.

Enfiei a cabeça na porta para vê-lo andar pelo corredor, tão saudável e composto, sem o menor indício de um qualquer grave acidente de viação que o tinha deixado em coma.

O professor disse-me:

- Ana-san, se não te importas, hoje não vamos ter a nossa lição.

Olhei para o professor. Fechei as pálpebras, abri-as. Fechei-as e abri-as outra vez.

- Como disse?

- Hoje não te posso dar a aula. Fica para amanhã, pode ser? Como viste, tenho visitas.

- Ele está curado?

- Está... - suspirou, revirando os olhos. – Está curado.

Não consegui perguntar mais nada. O professor tirou-me o prato das bolachas, colocou-o em cima da mesa, no meio dos papéis e dos livros. Fechou o meu caderno e entregou-mo, juntamente com a esferográfica. Recebi tudo sonâmbula. Depois, deu-me a mala e empurrou-me pelo corredor, as mãos sobre as minhas omoplatas e eu deixei-me empurrar, no mesmo estado apático.

Passei pela sala, guinei para o vestíbulo da vivenda, consegui ver as botas do Tiago, mais nada. Ele deitava-se no sofá, provavelmente a comer a bolacha e estava nervoso, porque não parava com as pernas quietas.

O professor despediu-se de mim e eu fiquei na porta, do lado de fora, com o caderno, a esferográfica e a mala colados ao peito, entre os braços cruzados.

Não me mexi durante alguns segundos, o tempo que o professor levou a voltar-se, sair do vestíbulo, entrar na sala e começar a falar. Quando ouvi a voz do Tiago a responder, em japonês, num tom diferente daquele que ele usava, ou que o professor usava, quando falavam em castelhano, consegui deixar aquele sítio onde me plantara.

Abri a cancela, fechei a cancela. Destranquei o carro, abri a porta do carro, sentei-me, atirei o caderno, a esferográfica e a mala para o assento do pendura, fechei a porta do carro.

Escuro.

Engoli a saliva. Soube-me mal e fiz uma careta.

O Tiago estava curado.

O estranho pressentimento que me acompanhava naquela noite acentuou-se.

Olhei para a vivenda do professor Gomano.

Algum dia, haveria de descobrir o que se passava ali. Não descansaria enquanto não soubesse a verdade.

Pelo menos, as aulas de japonês tinham recomeçado.

Algum dia, sem dúvida... Ou não me chamava Ana Isabel.

Fim de entrada.


V.6. Um coração partido

A conversa daquela tarde não a largava, ressoando na cabeça repetidamente, até deixá-la nauseada e com vontade de vomitar. Deitada na cama, Maron tapou a cabeça com os braços.

Procurara por Trunks, disposta a confessar-lhe abertamente que o amava, expor-lhe o coração, ajoelhar-se vulnerável ante ele, entregar-lhe a alma e tudo o resto, anular-se e salvá-lo, pois só via essa maneira de o salvar da espiral suicida em que tinha embarcado. Encontrara-o, começaram a conversar e Trunks contara-lhe que Son Goten estava apaixonado por ela.

Maron soluçou, deitada na cama.

De corpo despido, descontraído e à disposição de qualquer estocada, menos daquela. Recolhera-se na carapaça imediatamente, confusa com a revelação.

Há mais de três anos que ela amava Trunks. Acontecera naquele último torneio de artes marciais, em que se tinham juntado todos pela última vez, antes daquela confusão provocada por Zephir. Ela só tinha treze anos. Trunks tinha participado com Goten, com Pan, com Vegeta e com Goku, quando tinham conhecido Ubo. Trunks tinha dezoito anos e resplandecia encanto por todo o lado e Maron deixara-se encantar. Trunks tinha luz própria, tinha o toque selvagem do pai e a beleza da mãe. Era impossível que passasse despercebido a qualquer rapariga e não lhe passara despercebido.

Maron sentia os olhos a arder, deitada na cama.

Mas Son Goten estava apaixonado por ela, dissera-lhe Trunks enquanto comia pevides salgadas. E se era assim, Trunks nunca se iria aproximar dela, mesmo que o amigo estivesse morto, nem que a sua vida dependesse disso. Se Goten gostava dela, ela estava-lhe vedada, terreno proibido e Trunks nunca iria trair Son Goten.

Maron arquejou, com o peito esmagado, deitada na cama.

Por momentos, teve o pensamento que deveriam ficar para sempre na Dimensão Real, sem Son Goten, que estava morto na Dimensão Z. A seguir, odiou-se por ser tão egoísta e começou a chorar em silêncio, porque também era amiga de Goten.

Deitada na cama, chorava lágrimas tão salgadas como as pevides.

Começou a lembrar-se dele. Goten era desajeitado, mas talvez isso só acontecia quando ela aparecia, porque estava apaixonado por ela. Tinha uma aparência frágil e indefesa, a roçar o infantil. Nem parecia ter sangue saiya-jin nas veias, não o demonstrava com tanta pujança como Trunks. Mas era um excelente lutador. Apesar de preguiçoso e pouco inteligente, de se vestir com um péssimo gosto e de ser distraído.

Maron limpou a cara, deitada na cama.

Só lhe encontrava defeitos e isso incomodou-a. Goten também conseguia ser divertido, simpático, bondoso e era, sobretudo, generoso, capaz de defender os outros com um altruísmo desconcertante. Tinha um coração sem maldade e um sorriso sincero, não dissimulava nunca e entregava-se a qualquer causa sem perguntar qual o preço.

Maron olhava para o teto, deitada na cama.

Talvez conseguisse gostar de Son Goten, da mesma maneira que gostava de Trunks. Talvez não fosse muito difícil. Seria mais complicado esquecer Trunks.

Bateram à porta do quarto. Sentou-se, inspirando profundamente. A cabeça do pai assomou-se à porta entreaberta.

- Maron, posso entrar?

- Hai, papa.

Kuririn entrou a dizer:

- A tua mãe disse-me que estavas aqui fechada e que não foste jantar. Passa-se alguma coisa?

Ela admirou-se, não se tinha apercebido que tinha passado tanto tempo. Aclarou a garganta e respondeu com a voz mais normal que conseguiu:

- Não tenho fome.

- Estás doente?

Um coração partido seria uma doença? Como não tinha a certeza, respondeu:

- Não.

Kuririn franziu a testa.

- Estiveste a chorar?

Ela voltou a cara para a parede.

- Não.

Mas o pai sabia que se passava alguma coisa com a sua menina. Perguntou com cautela:

- Tu tens saído de casa, não tens?

Mas ela entendeu como se fosse uma censura. E gritou a resposta:

- Estou farta de estar fechada! Eu não moro aqui! Esta não é a minha casa!

Maron desatou a chorar. Kuririn empalideceu ao vê-la chorar tão desamparada. E ela não sabia como parar as lágrimas que lhe corriam em fios molhados pelo rosto.

Kuririn abraçou-a. Tentava sossegá-la, acalmá-la, mas ficou com a sensação que o pai chorava com ela.

Maron pediu, entre soluços:

- Quero ir para a minha casa, papa! Quero ir para casa!

Kuririn entendeu. Fez que sim com a cabeça, ela sentiu o queixo dele roçar-lhe nos cabelos.

Pois também o pai queria voltar para casa, compreendeu, só que não sabia como fazê-lo.


V.7. Medo

- Não achas que estás a fazer o que não deves?

Videl tinha acabado de se enfiar debaixo dos lençóis, depois de ter apagado a luz do candeeiro da mesa-de-cabeceira e, ao contrário do que costumava fazer, não o abraçou e não deitou a cabeça no peito dele. Gohan estranhou. A indiferença e a pergunta.

- Do que é que estás a falar?

- Das aulas de japonês. – E sublinhou. – Da Ana-san.

- Ah, a Ana-san...

- Vegeta-san disse-te para parares com as aulas de japonês.

- Eu não parei com as aulas por causa de Vegeta, parei porque o meu pai me pediu.

Gohan suspirou. Não era coisa que lhe agradasse, ceder à insistência da rapariga que praticamente lhe implorava para ter as aulas de japonês, mas também não se importava muito porque não desgostava totalmente dela. Ao contrário de Videl, que demonstrava uma grande antipatia que ele considerava injusta.

- Além disso, para mim, tinha sido mais uma interrupção. Até a situação se acalmar para o nosso lado – desculpou-se.

- Já está mais calmo?

- Pelo menos, a polícia deixou de aparecer por aqui.

Gohan agarrou a mulher pela cintura, puxou-a de encontro a si, enterrou a cara nos cabelos dela. Começou a beijar-lhe o pescoço.

- Gohan?

- Hum?

O calor do corpo dela era inebriante.

- Tenho medo dessa Ana.

Aquela afirmação abanou-o. Deixou de beijá-la.

- Nani?

- Vamos interagir com ela, eu sei.

Gohan olhou-a nos olhos.

- Quem é que vai interagir com ela? Eu? Nós?

- Não sei. Mas é um pressentimento que tenho.

Não era antipatia, afinal. Era medo. Gohan abraçou-a com aqueles abraços fortes que a derretiam, que a faziam sentir segura, que ela adorava. Murmurou-lhe ao ouvido:

- Não vai acontecer, Videl. Ninguém vai interagir com ninguém.

Mas não acreditou nas suas próprias palavras. E teve a impressão que Videl também não.

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