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Capítulo III


III.1. A aparência da normalidade

O sol entrava em catadupas de luz pelo escritório adentro, iluminando as prateleiras repletas de livros de todos os tamanhos e de todas as cores. Um facto interessante naquela viagem entre dimensões fora a sua biblioteca tê-lo acompanhado. Os seus livros estavam todos ali e sempre que precisava consultar algum deles tinha-os perto e não abandonados numa dimensão distante e inacessível.

Gohan pousou a pasta de cabedal na secretária e mais os dois livros que levava na mão. Um era dele. O outro era da biblioteca da Universidade do Algarve.

Fora uma surpresa agradável e complicada descobrir que tinha uma universidade perto da casa onde morava na Dimensão Real. Tudo tinha acontecido um mês depois de ter chegado. Resolvera dar um pequeno passeio pelos arredores e conhecer o sítio onde iria morar durante alguns tempos. Agarrara na bicicleta e saíra de casa.

Gostara daquele lugar à primeira. Era sossegado, relativamente afastado do rebuliço da cidade, com um ambiente campestre cativante, apesar de se situar próximo do aeroporto da cidade. Havia casas, mas afastadas, semeadas por entre o arvoredo das matas circundantes. Para ele, que fora criado no meio da natureza, viver num sítio como aquele, ainda que noutra dimensão, não lhe pareceu tão mau quanto isso.

Nas matas de pinheiros que povoavam o local, Gohan encontrara alguns edifícios belos e imponentes, com uma arquitetura particular que lhe atraiu a atenção. Ao entrar no recinto a pé, levando a bicicleta consigo pelo guiador, descobrira que se tratava de uma universidade. Vira os estudantes, os professores, os investigadores, os funcionários no típico ambiente académico vibrante e sentira-se, subitamente, integrado.

Deambulara durante algum tempo, até que decidira visitar um dos edifícios. Encontrara a biblioteca e entrara. Com muita curiosidade e excitação, apreciara os livros nas estantes, analisara os temas expostos. Ao encontrar a secção de matemática, folheara os manuais dessa disciplina, curioso por perceber que eram exatamente iguais aos que conhecia. Sentara-se, levando alguns livros, enlevara-se na leitura, escalpelando os exercícios. Agarrara em folhas em branco e começara a compilar equações, resolvendo-as, embrenhando-se no desafio. Uma voz aparecera atrás dele:

- Isso é uma forma interessante de resolver esse problema.

Gohan assustara-se. Havia pouco tempo que estava na Dimensão Real e nunca tinha conversado com ninguém daquela dimensão. Como não sabiam ainda o que era interagir, tinha combinado evitar as pessoas dali.

- Desculpe – explicara o outro –, mas estava a passar e não pude evitar deitar uma espreitadela ao problema que estava a resolver. Peço, mais uma vez, desculpa se o estou a incomodar.

- Não... incomoda nada – arriscara Gohan e convidara o homem a sentar-se. Mostrara-lhe a folha.

A conversa desenrolara-se a partir daí. Os receios iniciais sumiram-se quando começaram a discutir matemática. O homem dirigia o departamento da disciplina numa das faculdades e Gohan acabara por confessar que também era professor de matemática. Como resultado, recebera um convite para ser assistente, uma pequena prestação de serviços que cobriria algumas aulas do semestre que tinha começado havia pouco tempo.

Uma proposta tentadora, mas também demasiado proibida. Gohan pensara muito sobre esta, falara com Videl. A mulher opusera-se com determinação àquela ideia disparatada de ser professor de alunos da Dimensão Real. E se isso fosse sinónimo de interagir? Mas ele, com a curiosidade espicaçada, anunciara-lhe que iria arriscar, queria ensinar naquela dimensão, saber se seria diferente da Dimensão Z.

Agora, já o sabia. Não era interagir e não era diferente.

***

O dia estava muito bonito. Gohan admirou-o pela janela do escritório, lembrando-se do seu primeiro dia de aulas. Fora um desastre, porque estava nervoso. Gaguejara como um principiante, vira a troça nos olhares dos alunos perspicazes, notara confusão nos alunos desleixados. Olhara para a plateia, respirara fundo e tal como o tinha feito quando enfrentara Cell, aceitara o desafio como inevitável e necessário. A seguir, tudo correra bastante melhor e no final do semestre sentiu-se especial com a proeza.

Agora, preparava o início de um novo ano letivo e preparava algumas aulas extra de um curso de verão que propusera ao departamento, revelação dos mistérios fantásticos da disciplina para alunos de outros cursos. Estava a ser um sucesso, tinham já quarenta inscrições, o que, para aulas de matemática, era admirável. Estavam a gostar dele como professor na Universidade do Algarve.

- Já voltaste?

Videl aparecia no escritório.

- Hai. Não tinha muito que fazer na universidade, apenas verificar as novas turmas e os horários do próximo ano. – Reparou na cara aborrecida dela. – O que foi?

- Sabes que isso de dares aulas na Universidade do Algarve nunca me agradou.

- Videl, já tivemos esta conversa antes.

- Irei insistir sempre.

- Dar aulas não é interagir.

- Não te bastaram aqueles quatro meses, antes do verão? Tinhas de continuar? E quando formos embora, achas que não irão conseguir sobreviver sem ti? Corta a relação, já!

Gohan suspirou.

- Não posso.

A cara dela torceu-se e desatou aos berros:

- Porque é que te empenhas tanto em seres professor na universidade deles? Gostas desta dimensão? Queres ficar aqui para sempre?

- Claro que não.

- Pois é o que parece!

A fúria repentina dela desconcertou-o.

- Não poderias comportar-te como os outros e ficares em casa? – Prosseguiu exaltada, esbracejando, cuspindo as palavras como se fossem dardos. – Não poderias fazer-me mais companhia? Estou sozinha, passo os dias fechada em casa, como se estivesse numa prisão. Tenho medo de sair, de encontrar-me com as pessoas daqui.

- Não é preciso teres medo. As pessoas daqui são muito simpáticas.

Videl apertou os punhos, a suster as lágrimas. Pelos vistos, ele não estava a acertar com as réplicas e fazia-a cada vez mais furiosa. Fez um olhar condoído, mas a pena que mostrava naquela expressão, foi como deitar gasolina para uma fogueira. Ela vociferou:

- Não quero ficar aqui, nesta dimensão estúpida. Eu não pertenço aqui. Esta não é a minha casa. Isto não sou eu!

Tentou outra abordagem. Cruzou os braços, franziu a testa e foi incisivo:

- Acalma-te. Nós não vamos ficar aqui para sempre.

Ela rugiu-lhe:

- Hoje não se consegue falar contigo. Baka!

Gohan aproximou-se, queria puxá-la para si, mas Videl esquivou-se.

- Se ficarmos nesta dimensão, significa que Zephir nos venceu – disse. – Mas isso não vai acontecer, o meu pai não vai deixar.

- Goku-san não controla a situação. Quem nos poderá salvar disto é Bulma-san que está a construir a máquina das dimensões.

- Então, teremos de confiar em Bulma-san. Não achas, Videl? E não pensar muito nisso, esperar pacientemente... Tentar viver com alguma normalidade enquanto aqui estamos.

- Tu vives, eu não. Limito-me a contar os segundos nos relógios cá de casa, a ver o tempo passar lentamente, num horrível inferno de tédio!

- Por favor... Prometo-te que te levarei a sair comigo mais vezes. Hum? – Sorriu com um laivo de entusiasmo. – Não achas boa ideia? Vamos passear!

Pelo descair de ombros e pela palidez que lhe pintou o rosto, ele percebeu que ela desistira da luta. Continuava, porém, a sentir uma imensa pena dela e queria muito confortá-la. Ela concluiu num fio de voz:

- Está bem... Tu é que mandas, não é assim?

Gohan negou com a cabeça.

- Não. Estamos juntos nisto e iremos vencer juntos. Como uma equipa. Tu, eu e Pan-chan.

- Não parece...

Os olhos de Videl fixavam-se na pasta de cabedal. Ele moveu-se de maneira a tapar o que ela via, sentou-se na secretária, cruzou os braços.

- Zephir é o nosso inimigo. Não me ponhas do lado errado, Videl-chan. Não me combatas, como se eu fosse o feiticeiro. Aprendi uma coisa, no passado, quando lutava ao lado do meu pai e de Piccolo-san. Sempre que combatíamos, tivemos que o fazer como uma equipa. Apenas unindo as nossas forças, conseguimos derrotar quem nos ameaçava.

Inesperadamente, ela riu-se.

- Da maneira como falas, até parece que também tu vais combater.

Gohan explicou sério:

- Assim que regressarmos à Dimensão Z iremos devolver a vida ao meu irmão e quero participar na busca das bolas de dragão. Por isso, devo envolver-me. E se for necessário combater...

Ela continuava a rir-se.

- Passaste mais de dez anos enfiado nos livros e agora deu-te outra vez vontade de ser um saiya-jin?

- Não é nada disso! – Protestou ele ofendido. – Sempre fui um saiya-jin, isso não é coisa que se deixe de ser. Só que, por vezes, determinados acontecimentos exigem que esteja à altura da minha herança.

- Já nem sequer és um super saiya-jin – alegou ela.

- Mas sou tão forte como um super saiya-jin.

- Sem treino não serves para nada, mesmo sendo assim tão forte!

Gohan cortou:

- Tens razão. Hoje é impossível conversarmos.

- Não estamos a conversar – cortou ela, por sua vez. – Estamos a discutir!

- Se assim é...

Voltou-se para a secretária, abriu a pasta de cabedal puxando pelo fecho com tanta força que acabou por parti-lo, completando:

- Não quero mais conversar contigo.

Pan entrou no escritório com uma folha de papel na mão cheia de rabiscos coloridos e salvou-os. A batalha terminava sem ter sido declarado um vencedor.

- Otousan!

- Pan-chan!

Gohan levantou a filha ao colo.

O seu maior tesouro era aquela miúda irrequieta e carinhosa. Quando pensava nela, de certa forma gostaria de voltar a ser uma criança. Assim, talvez as coisas fossem mais simples, sem preocupações e complicações desnecessárias.

Ela escorregou-lhe dos braços, entregou-lhe a folha de papel.

- Estava à tua espera para te oferecer este desenho.

- Para mim? Arigato!

Tentou descortinar o que estava ali desenhado, mas não foi preciso um grande esforço porque Pan explicou:

- É o tatami do Grande Torneio das Artes Marciais. És tu e o ojiisan a lutar pelo prémio principal, ser o maior lutador do mundo. Eu estou aqui de lado, mas tenho uma medalha ao pescoço porque ganhei o torneio dos mais pequenos... Vês?

- Está muito bonito.

- Quando voltarmos à Dimensão Z e depois de se derrotar o feiticeiro mau, vamos participar noutro torneio de artes marciais. Não vamos, 'tousan?

- Hai.

- Gostaste do meu desenho?

- Gostei muito. Vou guardá-lo num sítio especial.

- Amanhã vou fazer outro desenho! Mas esse será para ti, 'kaasan!

Videl sorriu.

- Vais também pôr-me a lutar?

- É uma surpresa.

A miúda girou sobre os calcanhares e saiu do escritório como entrou, a correr. Gohan e Videl entreolharam-se.

- Não gosto de discutir contigo – disse ele.

E ela acabou por concordar:

- Nem eu. Gomen nasai.

- Shss... Não peças desculpa. Não há nada para perdoar.

Conseguiu aproximar-se dela, desta vez não fugiu, não o evitou, não armou a carapaça espinhosa para se defender do ataque. Ela perguntou-lhe:

- Vai tudo correr bem, não vai?

- Vai. – Ele acrescentou num sussurro: – Prometo-te!

E num impulso que lhe saiu do fundo do coração, Gohan abraçou Videl com todas as suas forças.


III.2. O professor

Entrada no meu diário, data: agosto 1996

Os corredores da Unidade de Ciências Exatas e Humanas da Universidade do Algarve estavam desertos. Eram grandes e sombrios, com o sol a tentar penetrar pelas janelas pequenas e retangulares para iluminar a arquitetura moderna, em tons de vermelho. Era o final da tarde, tempo de férias e não havia alunos, nem professores e a maioria dos funcionários também já tinha ido embora.

Fora a Gambelas tratar de alguns assuntos relacionados com o meu trabalho e, antes de me ir embora, resolvera passar pela secretaria da Unidade. Perguntei pelo professor Gomano. Por detrás do vidro do balcão do atendimento, a colega disse:

- Estás com sorte, querida. O professor está cá hoje... Já sabes, neste período de férias, sem aulas, nem sempre os professores vêm até à universidade. Podes encontrá-lo na biblioteca.

- Obrigada pelas indicações. Até amanhã.

- Até amanhã, querida.

Subi as escadas que levavam ao piso superior onde se situava a biblioteca da Unidade, uma sala ampla com portas envidraçadas que abria diretamente para um átrio decorado com escaparates que exibiam revistas e jornais científicos, ainda uma pequena secretária normalmente ocupada pela funcionária que ali trabalhava e que anotava, no computador, as requisições dos livros. Mas antes de alcançar a biblioteca, vi um homem sair, com uma pasta de cabedal na mão. Cabelos negros, óculos grandes num rosto redondo de feições bem vincadas, mas agradáveis, corpo de medidas proporcionais. Chamei-o, enquanto estugava o passo para me juntar a ele:

- Olhe, desculpe... Sabe-me dizer onde posso encontrar o professor Gomano?

O homem encarou-me com um sorriso tranquilo, os óculos descaíram ligeiramente e pude reparar nos seus enormes olhos negros. Olhando melhor, o homem aparentava ter cerca de trinta anos e era bastante atraente.

- O que é que queres do professor Gomano? – Perguntou-me em castelhano.

Estaquei, com um arrepio, ajeitando o dossier azul-escuro que levava debaixo do braço, que continha a papelada que me tinha levado até Gambelas. Aquela coincidência da língua estrangeira levou-me a uma conclusão óbvia, mas esquisita, e arrisquei perguntar:

- Você é o professor Gomano?

- Sim.

- Ah... Olá. Boa tarde, muito prazer.

Estendi-lhe a mão direita atabalhoadamente. Ele passou a mala de cabedal para o outro braço e apertou-me a mão, num gesto amigável, imbuído de uma sensualidade camuflada, com aquele jeito misterioso e doce que eu reconhecia escondido no Tiago, que acabei por corar e esquecer o que lhe queria dizer a seguir.

- Muito prazer – disse ele a sorrir, lendo as minhas reações descabidas. – Já sabes o meu nome, mas eu não sei o teu.

Lembrei-me do que queria dizer a seguir.

- Chamo-me Ana e sou amiga do Tiago.

Bem, provavelmente não deveria juntar as duas coisas na mesma frase, o meu nome e o meu salvo-conduto para ter acesso ao professor, mas saiu-me tudo de rajada, de repente, sem que me pudesse controlar.

Ele estranhou. Ajeitou os óculos na cana do nariz e perguntou:

- Quem é o Tiago? É meu aluno?

- Não. É seu amigo.

- Amigo?

E o professor fez uma cara pensativa, como se fosse a primeira vez que estava a ouvir aquele nome. Mas depois algo se ligou nos seus neurónios e ele voltou a sorrir com aquele encanto que o Tiago também tinha mas numa escala mais celestial:

- Ah, o Tiago! Claro!... O Tiago.

E acrescentou baixinho, só para ele, mas eu acabei por ouvir:

- O que será que Trunks-kun arranjou desta vez, para que esta rapariga tenha vindo à minha procura?

O professor murmurara em japonês e foi meia vitória, afinal a recomendação do Tiago era válida. Por instantes, no domingo seguinte ao nosso encontro na porta do meu prédio, começara sinceramente a acreditar que o Tiago me tinha indicado o amigo professor só para se livrar de mim e da responsabilidade de me ensinar a língua do seu país natal.

- O Tiago disse-me que sabe japonês e eu queria saber se não se importava, senhor professor, de me dar algumas lições nessa língua.

- Queres aprender japonês? – Perguntou ele, franzindo o sobrolho.

- Quero.

- Porquê?

O professor mostrava-se desconfiado. Inspirei fundo e respondi com a voz afetada:

- Porque é uma língua diferente, de um país que admiro muito. Uma forma de enriquecer os meus conhecimentos, de alargar o meu currículo. É também uma língua difícil, com uma estrutura tão diferente da nossa, que será um desafio interessante conseguir dominá-la. Pretendo começar pelo japonês falado.

Uma resposta digna de uma entrevista para conseguir um lugar num qualquer curso de línguas com inscrições limitadas e fiquei toda orgulhosa. Só que ele não se impressionou.

- E queres que seja eu a ensinar-te japonês? Mas eu sou professor de matemática.

- Existe algum problema?

- Existe. Eu não te posso ensinar japonês.

O coração caiu-me aos pés.

- Porque não?

- Bem... Não sei se estarei a altura da tarefa.

- Mas o senhor sabe japonês, não sabe?

- Sei... - Gaguejou e foi a vez de ele corar.

- Viveu no Japão?

- Nasci lá. Pode-se dizer...

- Então, pode ensinar-me japonês. Prometo que serão poucas lições, só quero aprender o básico. O suficiente para conversar e compreender o que me dizem nessa língua. Prometo que não o irei aborrecer com muitas dúvidas. Consigo aprender depressa. Sempre fui boa aluna, especialmente a línguas.

- Não sei, Ana-san.

Depois do Tiago, foi a segunda pessoa que me tratou assim e achei delicioso. Mas a cortesia de nada servia se ele continuasse a recusar-se ser meu professor.

- Eu pago-lhe as lições! – Atirei.

- Não quero que me pagues nada.

- Então, qual é o problema?

- E onde teríamos as aulas?

- O senhor decide.

Olhou-me entre o aborrecido e o curioso.

- Tu não vais desistir, pois não?

- Não, professor.

- Porquê?

- É a minha oportunidade para aprender japonês.

- Terás mais oportunidades, acredito.

- Mas ter aulas particulares não se consegue sempre.

- É, realmente, um privilégio.

- Senhor professor...? Posso considerar-me uma aluna sua?

Deu-se por vencido, concordou com um suspiro muito pouco ortodoxo. Eu sorri, do alto da minha vitória. Tinha conseguido as aulas, teria, a partir dali, acesso a um dos amigos do Tiago que não era um palerma e poderia ver o Tiago, se ele algum dia fosse até à casa do professor Gomano. Oh, que coincidência feliz quando, nesse mesmo dia, eu estivesse no meio de uma aula de japonês a aprender o nome das estações do ano, ou como se diziam os números até dez.

Entregou-me um papel onde rabiscara a morada e pediu-me para aparecer naquela noite, pelas nove horas, para combinarmos melhor as aulas.

- Hoje? – Admirei-me.

- Hoje. Quando mais cedo começarmos, melhor. Não concordas?

- Sim, concordo.

O professor despediu-se. Vi-o desaparecer nas escadarias e ainda consegui vê-lo a ziguezaguear por entre os carros estacionados, fugindo como se fosse perder o autocarro. Montou-se em cima de uma bicicleta e saiu do campus a pedalar. Gostei dele e prometi ser uma aluna exemplar, da qual ele se orgulharia e da qual se lembraria sempre, afinal seria a sua primeira aluna de japonês.

***

O papel indicava que o professor Gomano morava numa vivenda da urbanização das Gambelas, perto da universidade. Assim que acabei de jantar, agarrei num caderno e numa esferográfica e pus-me a caminho. Às nove em ponto estava a bater na porta da casa.

Uma luz acendeu-se no vestíbulo. A porta abriu-se e eu demorei algum tempo a perceber que não se abrira sozinha. Olhei para baixo e descobri que estava a ser recebida por uma miúda que rondava os oito anos, que me observava com um ar reprovador, como se eu fosse uma vendedora de enciclopédias.

- Olá – disse e procurei ser amável. - Boa noite. O teu pai está?

Após mais uns segundos de dissecação visual, virou-se e anunciou:

- Otousan! Está aqui uma menina à tua procura!

A voz do professor Gomano surgiu de dentro de casa.

- Ela já chegou? Ah... Sim, já está na hora... Diz-lhe para entrar. Leva-a para a sala, por favor. Arigato.

A miúda fez-me um sinal, entrei e deixou-me na sala-de-estar da vivenda, que era enorme e estava muito bem decorada. Antes de sair, deitou-me outro dos seus olhares curiosos, que me davam a incómoda sensação de que era algum bicho raro que nunca vira.

O professor Gomano apareceu vindo de um corredor onde se via o princípio das escadas que davam acesso ao segundo piso da vivenda.

- Komba-wa, Ana-san – disse ele.

Respondi em português, desconfiando do que ele me tinha acabado de dizer, mas que me parecia um cumprimento:

- Boa noite, senhor professor.

- Por favor, não me chames assim. Trata-me pelo nome.

- Pelo nome, como?

- Por Goh... Por Gomano.

- Eh... Vai ser um pouco difícil no início, senhor prof... - Emendei: - Professor.

Uma mulher apareceu, de mão dada com a miúda que me abrira a porta. O professor mostrou um sorriso amarelo e apresentou-as:

- São a minha mulher e a minha filha, Valéria e Paula.

- Boa noite. – E fiz uma pequena vénia, mas as duas não reagiram.

A mulher disse em japonês:

- Não me disseste que tinhas visitas.

O professor deixou de sorrir e respondeu, também em japonês:

- Não... Devo ter-me esquecido de te dizer.

- Quem é ela? É tua aluna?

- Hai. É uma aluna especial.

- Especial? O que é que andas a tramar, desta vez, Gohan-san? É melhor começares com as explicações.

Falavam em japonês, porque era suposto eu não entender o que diziam, mas percebia que discutiam sobre e por causa de mim. O professor gaguejou:

- Ela está aqui para aprender japonês. Logo te explico, assim que ela se for embora.

- Espero bem que sim.

Atendendo à linguagem corporal, notei que a mulher do professor não gostava de mim.

- Isso vai demorar muito? – Acrescentou, semicerrando os olhos.

- Não, não. Uma hora... Talvez menos.

O professor disse-me, indicando o corredor de onde viera:

- Vamos para o escritório, ficaremos mais à vontade. – Ainda se virou para a mulher: - Se precisar de alguma coisa, chamo-te. Está bem?

Mas a mulher já não lhe respondeu.

Enquanto entrava para o escritório perguntei:

- A sua filha Paula... Só fala em japonês, em casa?

- Ela não sabe falar outra língua.

- Não sabe falar português? – Admirei-me.

- Não.

- Mas como é que tem um nome português?

O professor ficou pouco à vontade.

- Por causa da escola...

- Da escola? Ela anda na escola e não sabe falar português?

- É uma escola... japonesa.

- E para que precisa de um nome português, numa escola japonesa?

- O nome verdadeiro dela não é esse – lançou o professor, como uma boia à qual teria de se agarrar para se salvar do naufrágio.

Igualzinho ao Tiago... O que era demasiado estranho. A relação era óbvia, mas não consegui estender o fio de Ariadne de modo a quebrar o enigma do labirinto e conduzir-me à saída luminosa da verdade.

- E qual é o seu nome verdadeiro? – Perguntei, à espera da mesma desculpa que o Tiago invocava.

Mas o professor concedeu em dar-me uma resposta:

- O nome dela é Pan.

- Pan? É um nome invulgar...

Indicou-me uma das três cadeiras que rodeavam uma mesa posta no centro do escritório, enquanto fechava a porta com um cuidado extremo, para não fazer barulho e irritar ainda mais a mulher.

O escritório do professor Gomano fascinou-me por causa do aspeto imponente que lhe davam as prateleiras do chão até ao teto, cheias de livros. Nas lombadas que consegui ler percebi títulos em japonês ou em inglês. Contudo, não era muito espaçoso, ocupado quase totalmente pelas estantes, por uma secretária e a mesa central.

Sentei-me, retirando da mala o caderno e a esferográfica que trouxera. O professor afastou alguns papéis, jornais e livros que cobriam o tampo da mesa, para encontrar um espaço vazio para começarmos a aula. Ele espreitou por cima dos óculos o caderno que eu abria diante de mim e sorriu, divertido com a minha demonstração de aluna aplicada. Pigarreou ligeiramente e disse:

- Espero não defraudar as tuas expetativas.

- Não se preocupe. Sempre quis aprender japonês. Gosto de aprender. Devemos estar sempre dispostos a aprender, não acha?

- Hai, concordo. Eu também gosto muito de aprender. Foi a minha mãe que me ensinou a gostar de livros e de estudar. – Confidenciou pensativo: – É graças a ela que hoje sou um académico, um professor de matemática. Mas, o meu pai gostaria mais que eu fosse...

Deteve-se, enredado numa memória antiga que lhe iluminou a rosto e os olhos.

- Há muito tempo que conhece o Tiago? – Perguntei, a ver se o retirava do lugar onde se enredara.

- Quem?

- O Tiago.

- Ah... O Tiago. Sim, conheço-o desde que nasceu.

- A sério? – Sorri, porque imaginei o Tiago bebé, uma criança fofa, bonita, um anjo querido, nos braços da mãe enlevada no seu precioso tesouro.

O professor tornou a pigarrear.

- Podemos começar?

Endireitei as costas e fiz que sim com a cabeça.

- Muito bem. Primeiro: sabes dizer alguma coisa em japonês?

- Sim, palavras simples.

- Podes começar.

Desatei a enumerar as palavras e as frases curtas que sabia dizer na língua do país do sol nascente.

E foi assim que iniciei a minha primeira lição de japonês com o estranho professor Gomano.

Fim de entrada.


III.3. Rebelião

Que aborrecimento!

Maron atirou o livro de banda desenhada à parede do quarto e atirou-se para a cama, com os braços estendidos atrás da cabeça. Estava farta de estar fechada, para sempre sem fazer nada, a contar os dias que passavam tão lentamente como lagartos ao sol.

Era verão e ela não o podia aproveitar decentemente porque não pertencia àquele lugar e não devia misturar-se com as pessoas daquela dimensão. Era injusto! Essa lei que tinham inventado não se aplicava a todos. Trunks divertia-se e ela não podia divertir-se. Tinha de ficar fechada naquele quarto daquela casa horrorosa.

Foi até à janela que estava aberta, os cortinados oscilavam brandamente com a brisa noturna. Ficou a olhar para as sombras, sem realmente ver nada de interesse, a pensar que teria de libertar o seu interior aprisionado. Ou gritava até à exaustão ou fugia até ao fim do mundo.

O que era curioso e divertido era que moravam próximos uns dos outros, em casas parecidas. Tanto ela, como os seus pais, Mr. Satan e Mr. Bu, Gohan-san e Bulma-san, mais as respetivas famílias, habitavam vivendas num sítio que se chamava urbanização das Gambelas. Os outros estavam nas cercanias. Alguns na cidade, na ilha que servia como praia por aquelas bandas e na serra que se via da sua janela, ao fundo, onde tremeluziam as luzinhas das casas. Duas dessas luzes pertenceriam à casa de Chi-Chi-san e à casa de Ten-san.

Encostou-se à parede junto à janela.

- Já chega!

A menina bem comportada tinha acabado. Ela também tinha o direito de se divertir, desde que não interagisse com ninguém – e a própria palavra interagir dava-lhe vómitos porque estava farta de a ouvir.

Mas o seu pai haveria de ter um ataque quando lhe dissesse que queria dar um passeio à cidade. Kuririn tivera um desses ataques quando, no dia mais quente do ano, lhe tinha pedido para ir até à praia.

Pois, o seu pai podia ter os ataques que quisesse, que a ela não lhe importava nada! A partir dali tudo iria mudar. Obedecera a Kuririn durante sete meses e fora mais do que suficiente. Apenas tinha concordado em ficar reclusa na própria casa, porque pensou que não iria ficar ali tanto tempo.

A partir do dia seguinte, tudo iria mudar.

Satisfeita com a decisão, de consequências imprevisíveis, deitou-se novamente na cama, sorriu e pôs-se a sonhar de olhos abertos com as aventuras na Dimensão Real.

Começaria por procurar por Trunks.


III.4. Explicações

Ele bem que evitava olhá-la diretamente, mas ela tinha aquela mania de só falar com ele olhos nos olhos. Não adiantava fugir. Aquela discussão iria ter lugar, quer ele quisesse, quer não.

Videl, no meio do quarto, braços cruzados, esperava.

- Ela é só uma rapariga que me pediu para ter lições de japonês.

- Ela é uma rapariga desta dimensão, Gohan!

- Também todos os meus alunos são desta dimensão.

- Porque é que lhe estás a dar aulas particulares? Na nossa casa?

- Não me pareceu correto utilizar uma sala da universidade para ensinar japonês, quando sou professor de matemática.

- Não tens um gabinete na universidade?

- Tenho. Mas partilho-o com dois colegas.

- E porque é que lhe estás a ensinar japonês? Como disseste, és professor de matemática!

- Porque ela me pediu...

- E só porque te pedem, fazes o que os outros querem? Já começa a ser um hábito, nesta dimensão. Pedem-te para dares aulas na universidade... Tu aceitas. Pedem-te umas lições particulares de japonês... Tu aceitas.

- Porque é que estás tão nervosa? Já sabemos que dar aulas não é interagir.

Videl continuava zangada.

- Eu não gosto de a ter aqui em casa.

- Porquê?

- Ela pertence à Dimensão Real.

- As pessoas da Dimensão Real são pessoas como nós. Vivem noutra dimensão, só isso. De resto, vivem como nós vivemos.

- Quando aceitaste dar-lhe essas aulas não te passou pela cabeça que ela poderá conhecer-nos?

- Nani?

Gohan fez aquela cara engraçada de espanto que herdara do pai.

- Hai! Não te esqueças que existimos nesta dimensão.

Ele ficou sério.

- Não, não me esqueço. Trunks descobriu-o da pior maneira.

- Da única maneira. Ou seja, olhando para a forma como existimos na Dimensão Real.

- Por causa de ter olhado para uma só imagem, ficou doente durante uma semana. E foi um olhar de relance. Desconfio que, se ficarmos expostos durante algum tempo, será o suficiente para... morrermos.

- E se ela nos conhece, não será esse o primeiro passo para interagirmos com ela?

A cara engraçada retornou. Videl explicou:

- Talvez um de nós só possa interagir com alguém que nos conheça!

- É apenas uma suposição.

- Essa tua aluna particular poderá conhecer-nos.

- Nós não sabemos se ela nos conhece, ou não. E mesmo que conheça, como é que nos poderá reconhecer se usamos nomes inventados?

Recordou-se com um laivo de pânico que revelara à Ana o nome verdadeiro da filha.

- Ela não nos conhece – reforçou. – Se estivéssemos no Japão era bem provável que nos conhecesse. Agora, aqui em Portugal!... Não me parece.

Videl calou-se com o argumento dele.

- Essas aulas vão demorar quanto tempo?

- Não sei. – Ele encolheu os ombros. – Até irmos embora. Até ela aprender. Depende.

- Nada do que te possa dizer vai impedir de continuares com essa tua teimosia, não é? – Perguntou Videl com um suspiro.

- Qual teimosia?

- Dares aulas.

- Hai.

Videl abanou a cabeça inconformada. Gohan perguntou:

- A discussão sobre a aluna terminou?

- Terminou.

- Não vamos voltar a falar dela, pois não?

- Se não houver motivos.

- E que motivos poderão haver?

- Não sei. Vamos lá ver como é que se comporta essa tua aluna!

Gohan sentiu-se aliviado. Ainda bem que a conversa tinha terminado. Se continuasse, acabaria por revelar que a Ana conhecia Trunks e ele conhecia muito bem qual era a opinião de Videl sobre as andanças de Trunks naquela dimensão, que não eram nada do seu agrado.

Passado algum tempo, os dois foram-se deitar.


III.5. Ilusões e erros

Entrada no meu diário, data: agosto 1996

O escaparate das revistas chiou quando o forcei a dar meia volta para ver o outro lado. Nada de interesse, nada de novo nas muitas publicações coloridas que se expunham nos encaixes metálicos. Depois de um curto passeio pela baixa e antes de ir para casa, por vezes gostava de entrar naquela pequena loja do centro comercial, um corredor envidraçado que estreitava para os fundos, onde se vendia imprensa estrangeira, para espreitar as novidades dos jogos eletrónicos nas revistas da especialidade.

Na realidade, não procurava estreias no mundo das consolas e dos computadores. Nessas revistas reservava-se um espaço para as notícias do Japão, as estreias mais sensacionais e que haveriam de chegar à Europa e aos Estados Unidos da América meses depois. Antecipava-se a emoção, criavam-se expetativas. Mas, para além dos jogos, também havia notícias sobre manga e anime, traduzindo, banda desenhada e desenhos animados japoneses e era isso que procurava.

Apaixonara-me por esse tema quando conhecera a série "Dragon Ball". Tinha sido transmitida, alguns anos antes, na televisão espanhola e como em Faro se conseguia ver essa emissão, nos dias de bom tempo e sem vento, nascera uma legião de fãs de "Dragon Ball" na cidade, comigo incluída. A série tinha começado a ser transmitida na televisão portuguesa em abril daquele ano de 1996 e ainda ia nos primórdios, pelo que não estava ainda muito divulgada e a febre ainda não se tinha instalado. Mas, pelos meus cálculos, até ao fim do ano, quando começassem os episódios de cortar a respiração, a loucura haveria de ser nacional.

O criador de "Dragon Ball" chamava-se Akira Toriyama e passara a ser um nome venerado por mim, porque fora capaz de criar personagens fantásticos, uma história épica, que combinava as artes marciais com a busca da perfeição física e espiritual, tudo entrelaçado com a busca das bolas mágicas do dragão, que concediam desejos impossíveis, com a constante luta para proteger a Terra e o Universo de terríveis inimigos. O herói, Son Goku, manteve a sua personalidade simples e inocente ao longo do enredo, nunca se contaminando com a maldade que foi encontrando ao longo da sua vida. Pelo contrário, eram os adversários que se contaminavam com a sua inocência e alguns acabavam por combater o mal ao lado dele.

- Koniichi-wa, Ana.

A voz sobressaltou-me. Estava distraída, agarrada ao escaparate, e não contava encontrar ninguém conhecido. Voltei-me. E fiquei com o coração aos pulos, porque a surpresa de o descobrir ali foi enorme.

- Tiago. Olá... - gaguejei.

A loja era apertada, mal tinha espaço para os escaparates. As revistas mais procuradas, sobre jogos e sobre música, estavam no fundo e, nesse espaço exíguo e quente, fechado como uma gaiola de vidro, com o Tiago ao pé de mim, comecei a suar.

Ele estava irresistível. Na cabeça tinha um boné preto, com a pala voltada para trás, que lhe escondia os cabelos compridos, como sempre atados num curto rabo-de-cavalo. Vestia uma t-shirt branca simples, sem desenhos, e umas calças de ganga pretas, a combinar com as botas de atacadores, também pretas. Conseguia deixar-me completamente fora de mim. Nas nuvens. Em órbita.

Tentei controlar-me.

- O que fazes por aqui? – Perguntou-me.

- Vim ver as revistas.

O Tiago olhou para o escaparate onde me segurava para não cair.

- Gostas de jogos?

- Gosto... Mas o que procuro nestas revistas são as novidades sobre manga e anime.

- Manga?

- Lembras-te de ter falado sobre "Dragon Ball", na outra noite? Pois, estas revistas sobre videojogos têm sempre um espaço sobre manga... Sabes? Banda desenhada japonesa! Tu deves conhecer bem, nasceste no Japão. De vez em quando, aparece qualquer coisa sobre "Dragon Ball".

Reparei que o Tiago desviou imediatamente o olhar das revistas.

- E quando vejo alguma coisa sobre "Dragon Ball" – continuei animada –, nem que seja meia dúzia de palavrinhas e uma imagem minúscula, compro a revista. É uma maluquice mas essa série é uma maluquice! É quase um vício. Quando se começa a ver e se entra na história, não se consegue parar de ver.

- Queres um gelado? – Interrompeu.

Tal como na outra noite, o Tiago não se mostrou minimamente interessado em "Dragon Ball", o que era uma pena, porque sempre poderíamos conversar sobre o anime e como ele vinha do Japão poderia revelar pormenores que não viriam nas revistas.

- O quê?

- Anda, vamos comer um gelado.

Agarrou-me na mão e tirou-me da loja, quase a correr, ziguezagueando por entre os escaparates. Também devia estar com calor, realmente aquilo já se parecia com uma sauna.

Ele dava-me a mão! O calor da sua pele era tão delicioso. O meu coração batia e parava de bater, oscilava como a agulha de um sismógrafo a registar um tremor de terra de grande magnitude. Mas assim que saímos do centro comercial, uns míseros passos depois, vá-se lá saber porquê, largou-me a mão e, de repente, senti-me abandonada, o calor esvaía-se e deixei-me gelar, morrer. Pelo menos, foi o que a minha mão sentiu. Acho que fiquei com a mão aberta, dedos esticados, paralítica, a emular a lembrança do toque dele, até entrar na geladaria, o que era conseguido atravessando a rua, uma porta ligeiramente desviada, perto do centro comercial.

O Tiago escolheu dois cones com duas bolas de gelado e chantilly regado de topping de caramelo. Disse-me para indicar os sabores e fez o pedido, deixando a empregada derretida com o encanto dele, o que me deixou ligeiramente ciumenta, confesso. Mas ele não passava despercebido a nenhum elemento do sexo feminino, o poder de encantar era-lhe inato.

Saímos para a rua e ficámos debaixo do toldo da esplanada, junto à parede da geladaria, a comer os nossos gelados. Eu estava como a empregada, derretida e mais: enternecida com aquele gesto e com o facto de ele me ter dado a mão dentro da loja das revistas.

Era urgente acalmar.

- Sabes que já estou a aprender japonês? – Comecei.

- Honto?

Sabia que aquilo queria dizer, de verdade? Ou, a sério? E sorri. Adorava ouvir o Tiago falar em japonês comigo.

- Já tive duas aulas com o professor Gomano. Ele não te disse nada?

- Não... Há muito tempo que não estou com ele. - E refugiou-se no gelado.

- O professor é bastante simpático. Agora, a mulher dele não gosta nada de mim.

- Como é que conheceste a mulher dele?

- As aulas são na casa do professor.

- Na casa dele! Masaka! – Riu-se e acrescentou, olhando para cima, como se falasse com as nuvens: - Afinal, gostas de arriscar e parece que fazemos uma corrida, hum, Gohan-san? Quem é que interage primeiro com ela?

Engoli um bocado frio de chocolate e protestei:

- Estou a aprender japonês, mas ainda estou no início. Não te consigo perceber, Tiago.

- Claro, nena – retorquiu, naquele castelhano que me punha a cabeça a andar à roda. Nem sabia se gostava mais dele a falar japonês, ou espanhol. Perguntou: - Já sabes dizer alguma coisa?

Levantei o gelado e agradeci com um sorriso:

- Arigato gozaimasu!

- Perfeito.

- Achas? O professor diz que tenho de corrigir a pronúncia. Mas é compreensível, venho com vícios. É o que ele diz.

- Vícios?

- Já sabia dizer algumas coisitas em japonês. Palavras soltas, algumas expressões.

- Onde aprendeste?

- Com "Dragon Ball"!

O Tiago reagiu como se tivesse sido picado por um bicho venenoso. Ficou cinzento e voltou a cara, devorando o gelado à pressa. Desconfiei que ele conhecia "Dragon Ball", mas que, por algum motivo, detestava o anime. Ou então, devia ser alérgico, causava-lhe algum tipo de impressão, comichão em sítios críticos e que o levaria até ao hospital para uma injeção para anular o efeito.

- Porque é que não gostas de "Dragon Ball"? – Arrisquei perguntar.

- Não conheço, nena. Já to tinha dito.

- Parece que conheces...

- Impressão tua.

Como noutras ocasiões, sabia que me mentia.

Disse-me, entre duas lambidelas:

- És uma rapariga com sorte.

Reparei que já tinha comido o gelado quase todo, era rápido a comer. Ou então, era guloso. Gostava de chocolate e de chantilly e de topping de caramelo.

- Por estar a comer um gelado contigo?

- Porque tu és a única pessoa com quem falo em japonês.

- Não costumas falar? Mas é a tua língua materna.

- Não. Só contigo.

E aproximou-se tanto de mim quando me disse aquilo que consegui sentir o seu hálito doce, com um leve aroma a chocolate. Corei e desviei a cara.

O que é que ele andava a preparar? Seria algum truque para que caísse no jogo dele e ser mais uma das suas conquistas fáceis? Para que se fosse vangloriar, mais tarde, para junto dos amigos palermas que tinha conseguido engatar mais uma? Achei que seria melhor tomar cuidado e erguer as minhas defesas.

- Deve querer dizer alguma coisa, falar em japonês contigo. Não te sei esclarecer a dúvida, porque também gostaria de saber o que é isto que tu me fazes, Ana. Sentir que, depois de ter ficado sem alma, posso voltar a ser invulnerável.

Franzi a testa.

- O quê?

Respondeu-me com um sorriso. O meu forte estava a ser atacado impiedosamente, as defesas soçobravam, nem sequer eram suficientes para repelir o ataque.

Estava na altura de mudar de assunto, antes que fosse tarde demais. Havia que salvar a minha bandeira, pelo menos, naquela tarde quente.

- Estudas? – Perguntei.

Mastigou a bolacha do cone, fez uma pausa como que a perceber que, efetivamente, se mudava de assunto. Aceitou o novo caminho e respondeu:

- Não. Já estudei. Agora estou a descansar.

- A descansar?

- Estou de férias. Durante um ano. Depois, logo se vê.

- E não fazes nada?

- Não. Nada do nada.

Papás ricos, pensei. O pai de certeza ganhava uns cobres valentes a lutar em competições internacionais, provavelmente clandestinas.

- Se não estudas, deves trabalhar.

- Não trabalho, nem estudo. Não faço nada. Nem podia fazer. É proibido!

Mastigou mais um pouco do cone. Como comia ele tão rápido, era um mistério. Eu ainda tinha muito que lamber, verifiquei olhando para o meu gelado.

- É proibido? O que é que é proibido?

- Trabalhar ou estudar. Fazer alguma coisa aqui!

Também era um mistério como conseguia passar de uma conversa séria para uma conversa de loucos. Aquilo descambava a olhos vistos.

- Aqui? Aqui, onde? Em Portugal? Não estou a perceber...

- É proibido interagir.

- Interagir?

- Não posso interagir com ninguém. Por isso não estudo, nem trabalho. Por isso não faço nada. Nem devia sair à noite... Nem de dia. Não devia conviver com ninguém daqui.

- O que é isso, interagir?

- Se eu soubesse... Era contigo que interagia. Agora mesmo!

Exclamei indignada:

- Ah!

Soara-me a tirada reles de engate de barzinho de segunda categoria. As defesas foram armadas, aconteceu o volte-face na invasão e o forte regressava à sua inexpugnabilidade. Aborrecida, concluí:

- Dispenso.

- Não gostas de uma aventura, Ana?

Voltei-lhe as costas, enchendo a boca de gelado.

- Nesses termos, não – respondi a sentir os dentes estalar com o frio.

- Que termos?

- Para com isso. Não gosto quando és...

- O quê?

- Desprezível.

- Desde aquela noite, não deixei de ser um criminoso.

- E que crime é esse que cometeste?

Enfiou o fim pontiagudo do cone na boca, mastigou-o, olhando novamente para as nuvens, como se procurasse inspiração ou as palavras certas ou o perdão dos seus atos.

Não teve oportunidade de me responder. Se é que o iria fazer... Ou talvez o fizesse, em japonês, para que não o entendesse e para me irritar.

Uma voz longínqua entrou-me pelos ouvidos adentro.

- Espanhol!!

O João descia a rua na nossa direção, com os braços levantados, acompanhado pelo Luís e pelo Pedro. Já não me apetecia comer mais gelado.

O Tiago escondeu as mãos nos bolsos das calças.

- Olá, malta – cumprimentou.

O meu tempo ali terminava, no momento em que o Tiago se tinha convertido no habitual desprezível, no momento em que os seus amigos palermas chegavam para confirmar o facto. Queria ter-me tornado invisível, queria esgueirar-me dali e evitar a previsível humilhação, mas o gelado amarrava-me ao meu destino, como uma pesada grilheta de ferro.

O João saudou-o com uma ruidosa palmada nas costas.

- Então, espanhol! Já te esqueceste dos teus amigos?

- Os amigos são para as ocasiões.

O Luís soltou uma gargalhada ruidosa.

- As piadas deste gajo são sempre tão secas.

- Devem ser piadas espanholas – disse o Pedro. – Os espanhóis não sabem fazer humor.

- Mas segundo as críticas, sou excelente nisso – replicou o Tiago.

- Nisso, o quê?.

- A fazer amor!

- Eu disse... humor.

- Às vezes, não vos entendo... portugueses.

- Ui... Que bicho é que te mordeu hoje, espanhol?

Então, se ele começasse a falar em japonês, pensei, é que a festa seria completa. Nenhum deles saberia desse pormenor, que o Tiago tinha nascido no Japão.

O João mostrou-me aquela careta horrorizada que fazia sempre que olhava para mim, como se visse uma leprosa:

- Que gaja é esta? Já não a vi antes?

- Não é ninguém.

O Tiago interpôs-se entre mim e o João.

- Ah, bom... Esta gaja não faz o teu estilo.

Das duas, uma. Ou protegia-me do desdém do João, ou estava a desprezar-me e a concordar com o amigo palerma. O rei dos palermas, já agora. O Pedro olhava para mim e mostrou um sorriso enviesado. Devia ter-se lembrado da Patrícia, apostava. Tinha sabido pela irmã que a noite do fim-de-semana passado tinha sido tórrida para a minha amiga Patrícia, mas que nem por isso conseguira ficar mais perto do Miguel. As prioridades já se tinham baralhado naquela cabecinha de vento da Patrícia, sabia-o, e agora o palerma número três devia ser o foco das suas atenções. Aguardava o telefonema dela a confirmar-me isso. Haveria de me telefonar para sairmos naquela noite de sábado.

- Espanhol, tens planos para mais logo?

- Não, João.

- 'Bora para Albufeira – propôs o Luís.

- , espanhol – acrescentou o João. – Ontem abriu um bar novo que tem umas gajas muita boas a servir às mesas. Está lá uma loiraça que tem umas pernas até ao cú que estão mesmo a pedir para serem abertas.

- E és tu quem as vai abrir?

- Hoje vais conhecer os meus truques, espanhol.

- A Manuela vai estar em Albufeira – disse o Luís.

- Qual Manuela?

O Luís atirou a cabeça para trás, numa gargalhada.

- São tantas que ele já nem se lembra delas!

- A Manuela do Porto – explicou o João. – Aquela que te apresentei, na noutra noite, no "Académico".

- Ah, já me lembro.

- Tens aí o teu carro? – Perguntou o Luís.

- Achas que o gajo vinha a pé para Faro? – Observou o João. – Ele mora em Gambelas.

- Podia vir a voar.

A tirada arrancou mais gargalhadas ao Luís.

- Hoje, estamos inspirados. Hum, espanhol?

O Tiago não lhe respondeu.

- 'Bora lá – insistiu o João. - Jantamos por lá, o que é que acham? O espanhol paga as pizzas, que está cheio de papel e precisa de dar ar às notas.

- E o que é que fazemos até à noite?

- Damos um mergulho na praia.

- Tens fato de banho?

- Compra-se lá. Tens aí o teu cartão de crédito, espanhol?

- Nunca saio sem ele.

- Viram, um gajo prático.

Senti uma lesma gelada escorregar-me pelos dedos. O gelado, que eu abandonara, derretia-se lentamente, pingando lágrimas doces, desfazendo-se numa papa leitosa, assim como eu me desfazia numa papa leitosa, tão desiludida que todo o corpo me doía.

O Tiago ia deixar-me ali, trocava-me sem qualquer hesitação pelos seus amigos palermas.

- Sabes se a tua amiga vai estar hoje, em Albufeira?

Olhei para o Pedro.

- Não sei. Ela ainda não me telefonou hoje.

- Bem, eu vou estar por lá... Diz-lhe isso.

Resmunguei:

- Se me apetecer.

Atirei o que sobrava do gelado no primeiro caixote de lixo que encontrei. O Tiago descia a rua na direção da doca, com o João pendurado no pescoço como um macaco, chiando como um macaco, orgulhoso daquela amizade que o fazia sentir o rei do mundo, seguidos pelo Luís e pelo Pedro.

Quando cheguei ao carro, que deixara estacionado no parque da Pontinha, agarrei-me ao volante e gritei:

- És desprezível e eu odeio-te!

Provavelmente existiam defeitos que eram tão grandes que não podiam nunca ser corrigidos e eu era uma parva por acreditar que conseguiria corrigir os defeitos do Tiago, só porque ele acedia em falar comigo em japonês e era capaz, quando não tinha os amigos por perto, de me oferecer gelados e de agarrar-me na mão.

Não queria chorar, mas não pude suster uma lágrima que me escorreu pela face, a deixar um sulco molhado na pele, a deixar um sulco amargo no coração.

Apesar do erro monumental que era insistir naquela obsessão, não extraí o Tiago da cabeça.

E porquê?

Fim de entrada.


III.6. Limite

A discoteca estava cheia, a abarrotar. As pessoas comprimiam-se em todos os cantos, em qualquer espaço livre, quer fosse nas passagens, na pista, junto aos bares. A música imprimia ao ambiente um ritmo contagiante. Os corpos ondulavam, cabeças para cima e para baixo, braços no ar, rostos brilhantes e sombrios agitavam-se no espaço dançante.

Os copos de álcool vertiam-se na garganta, um atrás do outro. Quantos tinham sido, já tinha perdido a conta, mas tinham sido muitos. Provavelmente demais, até para ele que aguentava a bebida. Deixou mais um copo em cima do balcão do bar do piso inferior da "Kadoc". Pediu outro vodka com limão. Trunks fechou os olhos e sentiu que estava a ser levado na crista de uma onda.

Havia mais de uma semana que não punha os pés em casa. A mãe devia estar preocupada. O pai devia estar furioso. Mas não tinha vindo à procura dele, estava a falhar. Talvez estivesse cansado do jogo e desistira de o perseguir.

- Ora, Vegeta. Assim não tem piada – suspirou, abrindo os olhos.

Agarrou no segundo copo de vodka com limão e saiu da confusão do bar. Era quem mais conseguia acotovelar o outro para conseguir a miséria de uma imperial.

A música era sempre igual e dava-lhe sono. Bebeu de um trago quase metade do vodka. Procurou pelo João. Onde estaria metido aquele gajo?

Um braço passou pela sua cintura. Voltou-se e descobriu o sorriso lascivo da Manuela daquela cidade do norte do país que ainda não tinha conseguido decorar.

- Tiago, andas a fugir de mim?

- Não, nena. Fui buscar... combustível.

Ela colou o seu escultural corpo moreno ao dele, esfregando-se descaradamente. Beijaram-se e enquanto sentia a língua dela enrolar-se na dele, teve aquela sensação de vitória a inflar-lhe o espírito. Tinha-a conquistado, a Manuela era dele. Sempre fora dele, desde a primeira noite em que se tinham conhecido no "Académico".

O aroma do corpo dela entrou-lhe pelo nariz. Cheirava a especiarias e a praia, a verão. Também a Candy cheirava assim, a beldade dos olhos azuis e do cabelo preto que era da turma de Son Goten e que ele, um dia, tinha convidado para sair, quando deixara o Bob a dormir no passeio de cimento.

- Son Goten...

A música abafou-lhe as palavras. Estremeceu.

- O que foi que disseste?

Empurrou a Manuela com brusquidão. Ela ficou espantada.

- Mas o que foi que te deu, filho da pu...?

Afastou-se, com a cabeça zonza, a tropeçar nas próprias pernas, fugindo do fantasma que o assombrava, da verdade dolorosa que lhe furava o coração. E porque estúpida razão se lembrara do amigo, quando beijava a Manuela? Era raro pensar nele na Dimensão Real.

O som da música prolongava-se para o infinito. Duas raparigas passaram por ele e olharam-no dos pés à cabeça. Trunks sorriu-lhes, elas gostaram. Bebeu o vodka até ao fim, deixou o copo vazio numa das mesas de pé alto. Estava cada vez mais embriagado e não lhe parecia suficiente. Naquela noite iria beber até ficar inconsciente para se esquecer de tudo o que havia para esquecer. Dirigiu-se ao bar. Pelo caminho deu um encontrão num rapaz. Levantou os braços, desculpando-se de forma desajeitada.

A vista nublava-se. As pessoas e os objetos que via tomavam contornos redondos. O seu pensamento também estava redondo. Apontou para o bar, iria a descair até ao balcão, como um avião sem motores a planar até à pista, quando sentiu uma mão no ombro. Voltou-se e sentiu uma tontura tão forte que quase o atirou ao chão.

- Maron?

Ela ficou parada a olhar para ele.

O barulho era demasiado para que pudessem conversar em condições. Agarrou na mão dela e levou-a até um dos pátios exteriores que os frequentadores da discoteca usavam para se refrescar com o ar da noite, juntamente com uma bebida bem fornecida de gelo.

Tentou parecer sóbrio, mas tinha realmente bebido demasiado. As palavras encalharam nos dentes e a pergunta saiu aos soluços:

- O que é que fazes aqui?

- O mesmo que tu.

- Não devias estar aqui.

- Nem tu.

Uma aragem fresca agitou os cabelos loiros dela. A Maron estava muito bonita naquela noite. Goten soubera escolher a rapariga que queria para sua parceira. Trunks sacudiu a cabeça. Outra vez Goten. Amaldiçoou-se em silêncio por insistir em pensar no amigo que abandonara do outro lado da porta dos mundos. Teve de se apoiar na parede para não cair.

- O teu estado é lamentável.

- Porque é que dizes isso. Só bebi uns copos...

- Bebeste mais do que uns copos. Não te quero ao pé de mim, Trunks.

- Chamo-me... Tiago, nena.

Maron torceu o nariz.

- Não me venhas com essas tretas que aprendeste na Dimensão Real.

- Quais tretas?

- Eu conheço-te. Não tentes ser comigo o idiota que gostas de ser com esses teus amigos desta dimensão.

- E qual foi o nome que a minha mãe arranjou para ti?

- Não precisas de me chamar por esse nome horroroso.

- Já me lembro! Tu és a Madalena.

- Detesto esse nome, para que saibas. Não me chames isso ou arriscas-te...

Ele animava-se com as reações dela. Gostava de raparigas que se voltavam com as unhas afiadas, porque depois acabava por domá-las, pequenas leoas que caíam sob o seu domínio, suspirando com os beijos dele, amolecendo, recolhendo as unhas. O álcool corria-lhe nas veias, misturando-se perigosamente com o seu sangue saiya-jin.

- Arrisco-me a quê?

- Arriscas-te a levar na cara!

A gargalhada que deu foi tão espalhafatosa que quem estava no pátio olhou para eles. A voz saiu-lhe entaramelada:

- Continuas... com o mesmo espírito, Maron-san!

Ela estendeu um braço, abriu os dedos da mão. Trunks colocou-se instintivamente em posição defensiva, como se ela fosse disparar um ataque energético.

- Não me sigas – avisou ela, com um sorriso, percebendo que, por segundos, o assustara. – Vou divertir-me, esta noite. E não quero um bêbado atrás de mim, a vigiar-me como se eu não soubesse cuidar-me.

- Não te... metas com rapazes.

- Não tens nada a ver com isso.

- Os rapazes não prestam.

Ela encolheu os ombros, desdenhosa, outro dos trejeitos herdados da mãe. Deixou o pátio, entrou na confusão da discoteca, perdeu-se no escuro e na música.

Trunks sentiu-se tonto. Não podia deixá-la ir assim, teria mesmo que segui-la, apesar do aviso, evitar que ela fizesse alguma asneira. O Luís interpelou-o:

- Estás aqui? O João anda à tua procura.

- Sim?

Retornou ao interior. As luzes coloridas piscavam com a música, alternando escuridão com rasgos brancos, vermelhos, azuis, verdes, amarelos. Como já não havia mais espaço na pista, havia quem dançasse nos corredores e assim aumentava a confusão, porque entravavam aqueles que queriam passar. Trunks esgueirou-se entre um grupo de rapazes, houve alguém que o conheceu, mas ele não soube quem era. O rapaz tinha um pequeno comprimido redondo entre os dedos. Trunks abriu a boca e o outro atirou o comprimido lá para dentro. Estendeu-lhe uma garrafa de água, Trunks bebeu-a até ao fim. Precisava de mais combustível. Encontrou o João a caminho do bar.

Ao princípio, não percebeu nada do que lhe dizia o João. A discoteca estava a dissolver-se em cores e em sons, numa massa borbulhante e fervente, a papa primordial do início dos tempos, lentamente, como se a velocidade ainda não tivesse sido inventada. Depois, aos poucos, a boca do João começou a mover-se normalmente e ele percebeu a frase gritada:

- A Manuela está muito zangada contigo.

- Ah... Essa. Viste a Maron?

- Quem?

- Esquece. Vai lá acalmar a Manuela por mim.

- O que é isso, espanhol? A gaja quer-te é a ti!

- Faz-me esse favor.

A cara do João tinha uma expressão engraçada, como se ele tivesse acabado de enlouquecer. Precisava de outro comprimido daqueles, gostara do pontapé que levara no cérebro. Voltou-se, à procura do rapaz. Fê-lo tão de repente, que encalhou num gigante musculado, derrubando-lhe a imperial, molhando-o com a bebida de cevada. Com uma mão enorme, o gigante agarrou-o pela t-shirt.

- Estás morto!

Trunks riu-se.

- Já te vou tirar a vontade de rir, lindinho.

O João tinha-se evaporado. O gigante tinha dois amigos iguais, gigantes como ele, que se juntavam à festa. Tinham pinta de porteiros de bares de alterne. Uma cara feia, cabelo rapado, gestos deselegantes, uma presença imponente.

- Vamos lá para fora!

Alguém apareceu ao pé dele assim que o gigante lhe largou a t-shirt.

- Precisas de ajuda?

- Maron?!

Tentou endireitar-se, tomar o comando da situação, mas estava demasiado bêbado, tonto e dopado para ser convincente.

- Vai-te embora daqui – pediu. – Isto não te diz respeito.

- Não vais conseguir desembaraçar-te deles, nesse estado.

- Consigo desembaraçar-me deles a dormir. Não preciso de ti.

- Mas eu quero participar.

O primeiro gigante soltou uma gargalhada.

- Olhem, o lindinho trouxe a namoradinha para defendê-lo.

Saíram para o parque de estacionamento. Trunks deu por si no chão. Estava tão aturdido pelo álcool que não se aguentou nas pernas. Talvez a Maron tivesse razão e ele precisasse de ajuda. Era um sítio escuro, longe da entrada principal. Deviam ter saído por alguma porta lateral, daquelas escondidas, para as emergências. Ele não se lembrava como é que tinha saído da discoteca.

Os três gigantes postaram-se diante dele. Levantou-se. A Maron ocupou o seu lugar, ao lado dele. Tentou focar os olhos, pareciam-lhe mais do que três gigantes, uma multidão de gigantes, cópias borradas uns dos outros enchendo o parque de estacionamento.

Mas que fossem três, ou mil, não o conseguiriam parar naquele estado de excitação, um único pensamento em mente: destruir tudo. Estava disposto a dar espetáculo, uma grande exibição do filho do príncipe dos saiya-jin!

O primeiro gigante avançou.

- Vou começar com a gaja – disse, a fazer estalar os nós dos dedos.

- Vê lá. Não a deixes demasiado partida. Pode servir para que a gente se divirta com ela.

- Está caladinho, Dinis! Quero bater-lhe, não a quero comer.

- Se me conseguires acertar – desafiou Maron.

Trunks perguntou-lhe:

- Tens a certeza que te aguentas? Este corpo é diferente daquele que temos na Dimensão Z.

Não recebeu uma resposta. Ela foi rápida e precisa. Pelos vistos, não lhe apetecia brincar. Atingiu o gigante com um soco no estômago. Este nem gritou. Revirou os olhos e caiu desmaiado, com um baque seco.

Houve um gigante que ainda hesitou, ao ver a forma fulminante como Maron despachara o amigo. Mas avançou, não estava sozinho e sentiu-se confiante. Socou Trunks com toda a força. Ele perdeu o equilíbrio e estatelou-se no chão, de costas. Levou a mão aos queixos, a analisar mentalmente a potência daquele soco. Fraco.

Uma mão agarrou-o pela t-shirt, a outra mão esmurrou-o. O nariz explodiu em sangue e em dor. Deitou a cabeça na terra. Os dois gigantes ladearam-no. Ele gostou de estar deitado, a mente a rodopiar sem fim. Ficaria ali se não tivesse recebido um pontapé nas costelas que o despertou. Outro pontapé e mais outro.

Abriu os olhos, reagiu. Rasteirou os dois gigantes, varrendo-as com as pernas, transformando o corpo numa ventoinha. Levantou-se, pouco seguro, a vista nublada, os ouvidos surdos.

Os gigantes também se levantaram. Um deles alçou o braço, dentes cerrados. Não havia tempo, nem vontade, para mais brincadeiras. Trunks gritou. Debaixo dele, a terra tremeu.

Maron quedou-se admirada.

Trunks estava dourado. Os seus cabelos eram agora loiros, os seus olhos verdes, emitia calor e energia. Tinha-se transformado em super saiya-jin!

Os gigantes estacaram petrificados, como se estivessem a observar um fenómeno do outro mundo. Não era propriamente do outro mundo, mas de outra dimensão.

- Mas o que estás a fazer, baka? – Zangou-se Maron.

- Estou a divertir-me.

- O que é isto? – Gaguejou um dos gigantes.

- Não sei – gaguejou o outro.

A rapidez dos golpes foi estonteante, até Maron teve dificuldade em vê-los. Trunks moveu-se como um raio entre os gigantes, derrubando-os, deixando-os inconscientes com um par de murros certeiros.

Voltou ao seu estado normal e riu-se. Maron olhou-o séria.

- Apesar dessa demonstração, continuas bêbado.

- Nunca se deve subestimar um super saiya-jin bêbado.

E conseguiu que ela se risse. Trunks fez alguns alongamentos, respirando fundo.

- Soube-me bem acabar com eles. Estava a ficar enferrujado.

- Não lhes bateste com muita força, pois não?

- Só lhes encostei um dedo.

- O que será que irão contar amanhã?

- Que foram atacados por um extraterrestre que brilhava.

- Ou um demónio!

- Não estavam à espera de uma tareia destas.

- Se Goten estivesse aqui connosco, seria perfeito. Três contra três!

Trunks engasgou-se. Sentiu-se triste e pesado quando olhou para Maron.

- Por que é que falaste nele? Não sabes que não podes falar nele?

Ela pediu-lhe, numa voz doce e calma, tentando confortá-lo:

- Não sintas essa culpa, Trunks.

Mas ele não queria conforto.

- Porque não, se sou culpado?

E desatou a correr, deixando-a a gritar pelo seu nome, chamando-o por cima das vagas que o engoliam, no naufrágio eterno da sua alma depois daquele dia no Templo da Lua.

Entrou no Toyota vermelho com um salto, ligou o motor. Agarrou no volante, carregou furiosamente o pé no acelerador. Os pneus chiaram, o carro derrapou, entrou na estrada.

Fugia. Para longe. Para o fim do mundo. Quis desaparecer, transformar-se em ar e deixar simplesmente de existir. Dentro dele não havia ninguém. Dentro dele não havia nada.

O carro deslizava no asfalto negro. O ponteiro do velocímetro ia galgando números, a chegar depressa ao fim do mostrador. O asfalto, tão negro como o que ele entendia dentro dele. Ninguém. Nada.

As árvores passavam rapidamente pelo carro. As casas, os postes de eletricidade, os carros na faixa contrária. Mais velocidade! Trunks pressionava o acelerador com ganas, até sentir que não podia pressionar mais, chegado ao fundo. Dentes apertados, ouvia o coração bater na cabeça que girava como um pião.

Porque tinha ele entrado no jogo maldito de Zephir? Porque tinha ele sido tão descuidado ao ponto de se ter deixado enfeitiçar? Piccolo-san bem o tinha avisado.

Nunca mais iria ver o seu amigo. Nunca mais... As saudades eram insuportáveis porque se misturavam com os remorsos. Sabia que nunca mais regressariam à Dimensão Z e que não iriam procurar pelas bolas de dragão e que Goten não voltaria à vida. Não... nunca mais.

Goten estava no Outro Mundo. Será que o via, desde o Outro Mundo, mesmo ele estando naquela dimensão?

O seu maior desejo era pedir-lhe perdão.

- Perdoa-me, Goten-kun. Perdoa-me.

Trunks tinha de falar com ele, cara a cara, para lhe dizer... Para saber...

Encostou-se ao banco do automóvel, as mãos escorregaram do volante, fechou os olhos. Os pés resvalaram dos pedais. O corpo amoleceu, descontraído e inerte. Apelou ao sono, um sono forçado e fingido, louco, desejado. O mundo deu uma pirueta. Onde era chão era céu, onde era céu era chão.

A estrada desapareceu. O Toyota vermelho voava pelo mundo, a desafiar todas as leis da física. Trunks sorriu. Quase, quase... Sentia a velocidade, o inevitável, a mão gelada que o puxava.

As árvores, as casas, os postes de eletricidade dissolveram-se numa mancha negra. Corriam sem parar nos vidros da janela do carro e depois...

Estrondo. Dor. E nada.

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