Capítulo II
II.1. O sabor amargo da derrota
O sol punha-se no horizonte e pintava todas as vivendas da urbanização das Gambelas de laranja. Tinha sido um dia invulgarmente quente. Os termómetros dispararam e, segundo as notícias que se ouviam de hora a hora no rádio, aquele tinha sido o dia mais quente do ano.
Apesar de tantos elogios ao magnífico dia de verão, Bulma não cedera à tentação de tirar uma folga. Fechada na garagem, o ar condicionado ligado no máximo do frio, debatia-se entre ferramentas e peças soltas, componentes eletrónicos e cabos coloridos. Diante dela erguia-se o corpo metálico negro, amarelo e azul de uma máquina grande e esquisita. Na parte da frente, à altura dos olhos, abria-se uma portinhola para o interior do complicado mecanismo que estava a ser construído.
A inacabada, a infindável, a desastrosa máquina das dimensões. No fim-de-semana passado Vegeta tinha-lhe dito que enlouquecia se ela não terminasse a maldita máquina. Mas seria ela quem perderia o juízo se os resultados continuassem a ser tão escassos como tinham sido até ali.
Na primeira noite naquela dimensão, ela estava confiante. Alimentava a esperança que tudo se resolveria em três ou quatro meses, o tempo que projetara para construir a máquina e enviá-los a todos de volta à Dimensão Z.
Só que enganara-se... Não contara com a tecnologia da Dimensão Real que era muito diferente da tecnologia à qual estava habituada. Para começar, perdera dois meses a reunir os materiais que precisava. Quatro meses depois conseguira erguer o esqueleto da máquina, mas quando parecia ter as coisas encarrilhadas, sofria um revés monumental. Refizera os cálculos um milhar de vezes, tivera de encolher o habitáculo, substituíra componentes que se tinham esgotado, rebentara com meia dúzia de computadores, chorara e gritara.
No entanto, hoje sentia-se mais motivada. Julgava ter acertado o software do processador central, trocara alguns fios da placa principal, substituíra outras peças. Com mãos conhecedoras e hábeis, apertou os últimos parafusos do painel eletrónico no interior da caixa protegida pela portinhola. A seguir, ligou o computador portátil ao painel, colocou-o no colo e fez correr o programa informático. Testava a capacidade da máquina para reconhecer dimensões.
Olhou fixamente para o monitor. O cursor piscava no canto superior esquerdo. Ouviu o zumbido elétrico que a máquina fazia quando se ligava. Uma luz branca acendeu-se por cima da portinhola. A máquina tremeu ligeiramente. Ela esperava. O cursor continuava a piscar. Tudo ia bem, pensou. Enquanto piscasse, estava tudo bem. Deitou uma breve olhadela ao painel eletrónico.
Um instante depois e o coração caiu-lhe aos pés. Ao tornar a olhar para o monitor já não encontrou o cursor a piscar no canto superior esquerdo. O zumbido da máquina cessou, a luz branca apagou-se. E leu desolada:
- "Error"!
A palavra aparecia intermitente a vermelho, em letras bem gordas, a preencher o monitor. O painel eletrónico não conseguira ligação com o computador e não correra o software, pelo que não reconhecera as dimensões inseridas e descritas na aplicação. A máquina não reagira. Mais um teste e mais uma derrota.
Furiosa, arrancou o cabo que ligava o computador portátil à máquina das dimensões. O computador apitou, a máquina rangeu como se fosse desintegrar-se. Só não desatou aos pontapés com aquela maldita sucata inútil porque já tinha perdido muito tempo enfiada naquela garagem para meter aquela coisa de pé.
Para cúmulo, como se não bastasse a máquina das dimensões, tudo o resto também estava a correr mal. Trunks persistia num caminho de autodestruição e de confronto por causa da culpa que sentia pela morte de Son Goten. Vegeta perseguia o filho e vivia obcecado com o feiticeiro, que se ria deles do outro lado do espelho. Andava implicativo e mal-humorado, desocupado, já não se treinava como antes, a Câmara da Gravidade não tinha vindo para aquela dimensão e ele não conseguia descarregar a frustração e a ira convenientemente. Deixara de ligar à filha e Bra ressentira-se da indiferença repentina do pai. No entanto, não se queixava e suportava os dias vazios e monótonos com um estoicismo que lhe fazia impressão. Se detestava ver o filho tresmalhado, ver a tristeza da filha partia-lhe o coração.
O cursor regressou ao monitor do computador, desta vez à frente da pergunta "Continue?". Respondeu que não. Deixou o computador no chão, agarrou na chave-de-fendas e dispôs-se a recomeçar.
O portão da garagem abriu-se com timidez. Surgiu a voz de Kuririn.
- Posso entrar?
- Entra – respondeu, agarrada à máquina.
Kuririn fechou o portão da garagem atrás de si a dizer:
- Está fresco aqui dentro. Nem sabes o calor que fez hoje. Pensei que não te apanhava em casa.
- Hoje não saí daqui.
Ele olhou para o corpo metálico inacabado que se erguia quase até ao teto.
- Estiveste a trabalhar na máquina das dimensões?
- Estive...
Bulma colocou os parafusos dentro da caixa de ferramentas e tornou à portinhola, onde desligava vários fios coloridos. Kuririn observou-a no seu trabalho minucioso.
- Como é que está a máquina?
- Está mal! – Respondeu ela com brusquidão e Kuririn encolheu-se.
Arriscou a terceira pergunta, ainda encolhido:
- Muito mal?
- Falhou mais um teste. Respondi à tua pergunta?
- Respondeste.
Era o único que vinha visitá-la amiúde e que se interessava pelos progressos daquele projeto impossível, achou que talvez tivesse sido brusca demais. Espreitou o velho amigo e confessou com um suspiro:
- Estou a ficar farta desta máquina.
Kuririn olhou-a escandalizado.
- Mas tu não podes ficar farta. Contamos todos contigo.
- Eu sei. Mas isto nunca mais se resolve.
Virou-se para ele, chave-de-fendas na mão.
- Sabes há quanto tempo ando com o problema do software? Dois meses!
- E isso é grave?
- Claro que é grave! A máquina precisa reconhecer as várias dimensões. Pelo menos a dimensão temporal e a dimensão espacial. Mas não consigo fazer com que o software que programei seja compatível com o processador central da máquina e não há reconhecimento de dimensões para ninguém. E para que serve uma máquina das dimensões se não reconhece, precisamente, as dimensões?
- Acredito que vais conseguir resolver esse problema.
- Eu também sei que o vou resolver – concordou, baixando a chave-de-fendas. – Mas em quanto tempo? Só nos faltam cinco meses...
- E nesses cinco meses vais encontrar a solução.
Bulma voltou-se para a máquina, contemplando-a desolada, ombros descaídos.
- Se ao menos tivesse umas peças especiais... Mas já procurei e não existem nesta dimensão.
- Terás de fazer a máquina com outras peças.
- E o que é que julgas que estou a fazer?
- Sabes o que é que eu acho? Que vais terminar a máquina num fim-de-semana qualquer e nem sequer vais dar por isso. Fica terminada e pronto. Podemos regressar a casa.
Kuririn sorria-lhe, mãos enfiadas nos bolsos e ela devolveu-lhe o sorriso.
Estava a perder tempo, cada minuto era precioso, empertigou-se e pediu:
- Passa-me o alicate, Kuririn.
Ele obedeceu sem pestanejar. Assim que recebeu a ferramenta, Bulma perguntou-lhe:
- Como é que tens passado?
- Vamos indo... A Maron não se tem importado muito de passar os dias enfiada em casa. Sempre pensei que para ela fosse mais difícil. Já sabes como são as raparigas com dezasseis anos.
A lembrança de como ela tinha sido com essa idade, fez Bulma rir. Com dezasseis anos construíra o radar do dragão e partira nas férias de verão em busca das bolas de dragão. Ela era um génio e haveria de conseguir terminar aquela amaldiçoada máquina das dimensões.
- Mas a tua casa está virada do avesso, não está?
A pergunta de Kuririn esfriou-lhe o estômago.
- O que é que tens ouvido?
- Nós sabemos das aventuras de Trunks...
Quando Bulma o encarou, de sobrolho franzido, ele adiantou:
- Eu percebo. Está a passar por um momento difícil. Afinal, matou o melhor amigo.
- O momento difícil dura há seis meses, Kuririn. Não consigo falar com o meu filho e isso é o que mais me custa. Já lhe tentei explicar que não precisa deixar-se abater assim. Quando voltarmos à Dimensão Z, iremos reunir as sete bolas de dragão e devolveremos a vida a Son Goten com a ajuda de Shenron. Mas ele não me quer ouvir. Umas vezes diz-me que nunca mais veremos a Dimensão Z. Outras vezes diz-me que vai ser ele que nos vai salvar, porque vai interagir com alguém desta dimensão. Vegeta não suporta ouvi-lo dizer estas coisas.
- A propósito... Onde está Vegeta?
- Sei lá. Saiu. Está tão vadio quanto o filho. Mal lhe ponho a vista em cima. E quando aparece, é para discutir comigo por causa de Trunks. Ou por causa da máquina.
E apesar de se ter controlado anteriormente, não refreou a raiva daquela vez e desferiu um pontapé na carcaça metálica. Da parte inferior saiu uma chapa escura com fios entrelaçados e peças minúsculas soldadas. Kuririn exclamou:
- Cuidado, Bulma! Caiu uma coisa...
Ela agachou-se, agarrou na placa metálica.
- Não é nada... Isto não estava ligado e, mesmo que estivesse, não funcionaria.
Atirou com a placa para o fundo da garagem.
- O nosso destino está traçado, Kuririn.
- O que é que estás para aí a dizer?
- Acredito que, mais cedo, ou mais tarde, Trunks vai interagir com alguém da Dimensão Real e fica tudo resolvido. Estamos em casa.
- E Zephir transforma-se num deus. Tu não queres isso.
- Já nem sei o que quero.
- Queres terminar a máquina.
- Quero?... Devo terminar, o que é bastante diferente.
Devolveu o alicate à caixa de ferramentas, atirando-o. Hoje apetecia-lhe atirar coisas. Se tivesse uma metralhadora enchia a máquina de balas. Por momentos, considerou a possibilidade.
O rádio continuava ligado. No silêncio escutou-se a voz jovial do locutor anunciar uma canção que era o êxito do momento. A melodia encheu a garagem de alegria e de ritmo. Chegava a altura de se começar a falar de outras coisas para desanuviar o ambiente.
- Sabes com quem estive a falar ontem ao telefone? – Começou Kuririn.
Bulma contemplava a máquina.
- Com quem?
- Com Mutenroshi.
- Mutenroshi? Nem me lembrava mais dele. Claro, ele veio connosco... Afinal, está mais do que ligado a Son Goku... Onde é que está?
- Numa ilha de um arquipélago chamado Açores. Conheces?
- Conheço. – Agachou-se e pôs-se a remexer na caixa de ferramentas, retomando o trabalho. – Essas ilhas também fazem parte do país que se chama Portugal, onde estamos nós. Estive a estudar o mapa desta Terra poucos dias depois de entrarmos nesta dimensão. – Fez uma pequena pausa, agarrou numa chave-de-fendas. – Só agora é que Mutenroshi te telefonou?
- Hai. Deve ter encontrado o meu número de telefone... Contou-me que ficou muito aflito quando se viu na Dimensão Real. Ele, Oolong e a tartaruga.
- Oolong também?
- Sim. Mutenroshi achou que estava num sítio muito confuso e tentou orientar-se. Pensou logo em vir falar com algum de nós... Comigo, ou contigo, ou com Goku... Mas depois descobriu que não tinha cápsulas hoi-poi e que não podia sair da ilha, porque não tinha nenhum meio de transporte.
- Não me fales das cápsulas hoi-poi! – Exclamou Bulma agastada. – Se elas tivessem vindo, tinha os componentes necessários para a máquina e mais outras peças importantes! – E praguejou baixinho.
Kuririn continuou:
- De qualquer maneira, Mutenroshi gostou da ilha onde estava. Não é o único habitante, mas diz que os vizinhos são muito simpáticos. Até há um deles que tem uma filha de dezoito anos que costuma ir lá a casa oferecer-lhe leite e queijos...
- Velho tarado! – Comentou ela, voltando-se mais decidida para a portinhola. – Não vai mudar nunca.
Kuririn esqueceu a história da rapariga.
- Mutenroshi esperou que alguém se lembrasse dele e que lhe fosse contar o que acontecera. Como nunca mais vinha ninguém, acabou por descobrir uma agenda com os nossos números de telefone desta dimensão. Imagina só... Quando me ligou contei-lhe sobre Zephir e sobre os cuidados que devíamos ter nesta dimensão. Entre eles, que era proibido interagir com alguém da Dimensão Real.
- Ele que nem pense em interagir com a vizinha de dezoito anos!
O comentário de Bulma foi tão espontâneo que Kuririn não conseguiu evitar uma breve risada.
- Não, Bulma. Que ideia!
- Com Mutenroshi pode-se esperar de tudo.
- Ele sabe que não pode interagir. Como conviver não faz mal...
- Faz mal um velho tarado conviver com uma rapariga de dezoito anos!
Ele encolheu-se com aquele berro. Bulma dirigiu-se a uma mesa onde repousavam diversas placas metálicas negras.
- E Oolong? Ele não deve ser visto nesta dimensão. Afinal, não passa de um leitão que fala... Deve ser esquisito vê-lo a andar por aí.
- Oolong teve alguns problemas por causa disso.
- Ah, sim?
Bulma levou duas placas na mão e foi até à traseira da máquina.
- Agora vive fechado em casa depois de uma experiência desagradável que teve nos primeiros dias – contou ele. – Mutenroshi disse-me que Oolong saiu para dar uma voltinha pela ilha e conhecer o lugar. A primeira pessoa que encontrou foi uma velhota que caiu redonda no chão assim que ele a cumprimentou. O neto da velhota viu a avó cair desmaiada e correu para ver o que se tinha passado. E dá de caras com Oolong que se tinha aproximado da velhota e tentava reanimá-la. O rapaz também ia desmaiando. Em vez de lhe dar também um ataque, correu para casa, foi buscar uma espingarda caçadeira e desatou aos tiros com Oolong, a persegui-lo pela ilha, a gritar que era obra do demónio ou coisa parecida. Oolong conseguiu escapar por uma unha negra. Esteve escondido durante o dia inteiro e só quando a noite caiu é que conseguiu regressar à casa de Mutenroshi. Vinha a tremer e a jurar que nunca mais saía de casa naquela ilha de loucos. A história do porco que falava foi o assunto principal da ilha durante, pelo menos, dois meses.
As gargalhadas de Bulma ecoaram por toda a garagem e contagiaram Kuririn que desatou também a rir.
- Essa foi a melhor história que já ouvi até hoje! – Exclamou ela a esfregar as lágrimas dos olhos.
- É boa, não é? Mutenroshi esforçava-se para não rir enquanto ma contava. Acho que Oolong devia estar ao pé dele.
- Bom, já sabemos de outra coisa que não é interagir!
- Qual?
- Ser perseguido por alguém da Dimensão Real armado com uma espingarda caçadeira!
Mais gargalhadas.
Mudando de assunto, Kuririn confessou:
- Sabes que gosto de ver a lua? Nesta dimensão, a lua existe. Por vezes, dou comigo completamente embasbacado a olhar para o céu, à noite, a observar a lua. Já não a via há tanto tempo... Deve ser por causa do Templo da Lua do feiticeiro.
A palavra ressoou no interior de Bulma, como um badalo dentro de um sino, num único rebate, o eco a vibrar numa imensa planície.
- Feiticeiro... – murmurou.
- Deixa-me intrigado. Como é que pode haver um templo dedicado a uma coisa que não existe há mais de vinte anos? Na Dimensão Z, quero dizer.
Bulma apareceu ao pé de Kuririn, com uma expressão pensativa no rosto. Ele calou-se com os seus devaneios sobre a lua.
- O que foi, Bulma?
- De repente, lembrei-me de uma coisa.
- Que coisa?
Os olhos dela tornaram-se mais nítidos.
- Nunca mais tinha pensado nisso. Julguei que não fosse importante... Uma conversa que me assustou na altura, mas que depois esqueci. Afinal, pode muito bem ter a ver connosco e com Zephir.
- Que conversa?
- Uma conversa que tive com Yamucha, na Capsule Corporation. Contou-me, na altura, que quando fora visitar Ten Shin Han, nas montanhas, tinham salvado um rapaz que estava muito ferido.
- Um rapaz?
- Hai. Yamucha contou-me ainda que o rapaz estava muito queimado e que as suas feridas eram tão horríveis que pareciam feitas por magia. Agora, pensa comigo... Magia, feiticeiros, Zephir! Achas que esse rapaz terá alguma coisa a ver com Zephir?
Kuririn coçou o queixo.
- Não sei. Possivelmente.
- Pois eu acho que tem. E sabes como o podemos comprovar? Indo falar com Ten Shin Han. Sabes onde se esconde?
- Sei.
- Então, vens comigo. Vamos visitar o Ten e saber que rapaz é esse. O que foi? Que cara é essa?
Kuririn confessou:
- É que essas coisas de magia assustam-me, Bulma.
- Para quê esse medo agora? Nós estamos metidos no meio de um feitiço! – Atirou com presunção: – Estamos na Dimensão Real, Kuririn!
- Não significa que me sinta à vontade.
- Descansa, o rapaz não deve estar com Ten Shin Han. Só vieram para esta dimensão aqueles que estão ou que estiveram unidos a Son-kun. E depois, é só um rapaz e tu sabes lutar.
- Não quero lutar contra um feiticeiro.
- Estamos a fazê-lo, neste momento! – Retorquiu ela brandindo a chave-de-fendas.
Pelo menos, parecia mais animada e Kuririn achou que a sua visita já teria valido a pena. Olhou para a máquina, ainda sem o aspeto digno que deveria ter, já que era suposto ter capacidades fantásticas. Naquele momento, não passava de um esqueleto metálico, parcamente preenchido por chapa colorida, fios e placas.
- Não devias estar a apertar qualquer parafuso ali?
- Hai... E estou a apertar.
E Bulma regressou ao seu trabalho. Passados alguns minutos, Kuririn foi-se embora. Ficara um pouco desiludido por ver que os avanços na máquina das dimensões tinham sido praticamente nulos desde a última vez que tinha ido visitar a amiga, há uma semana.
II.2. Dúvidas
Alguém bateu à porta. Videl ficou intrigada. Parou no meio das escadas, a ouvir os toques insistentes na campainha, as pancadas nervosas na porta. Pensou em não abrir, pois não esperava visitas. Ninguém que ela conhecia tinha-lhe dito que passaria pela sua casa para uma breve conversa e não abria a porta a qualquer um. Poderia ser alguém da Dimensão Real. Não fazia mal conversar com as pessoas daquela dimensão, mas evitava ao máximo conviver com elas. Não sabia bem porquê, mas sentia-se mais segura assim.
Uma pancada mais forte na porta sobressaltou-a e desceu alguns degraus, hesitante. Quem quer que estivesse do outro lado não iria desistir enquanto não lhe abrissem a porta, por isso tomou fôlego e agarrou na maçaneta. Abriu uma nesga, espreitou para o exterior a medo e admirou-se.
- Papa!
Mr. Satan estava no alpendre da vivenda, a cara muito vermelha, os olhos abertos como se tivesse acabado de ver um fantasma, todo ele tremia.
- Posso entrar?
- Estás sozinho? – Perguntou, procurando por Mr. Bu.
- H-hai...
Assim que se viu dentro de casa, Mr. Satan lançou um lamento assustado:
- Videl! Fiz uma coisa terrível!
Ela sentiu um calafrio. Levou-o para a sala e sentaram-se no sofá.
- Papa, que coisa terrível é essa que fizeste?
- Estamos todos perdidos!
- Calma, papa. Olha para ti!... Não paras de tremer.
- Não fiz por mal, foi sem querer. Não o consegui evitar. Ele... Ele não me largava. Mr. Bu viu tudo desde a janela do quarto. Espero que me perdoem... Não fiz por mal. Eu... É terrível!...
- Papa! Estás a deixar-me nervosa também!
Mr. Satan engoliu em seco. E desabafou:
- Eu interagi com alguém da Dimensão Real.
Aquela novidade deixou-a sem ar.
- Na-nani?
O pai baixou os olhos envergonhado, repetindo:
- Eu interagi com alguém da Dimensão Real.
Videl olhou para as mãos, para as pernas, para o corpo. Continuavam com aquele aspeto macilento. Olhou em volta, para a casa, que estava igual. Até o pai continuava igual, bizarro e envelhecido.
Depois, tudo fez sentido – era mais uma cena do pai, que tinha a mania de exagerar os acontecimentos que o rodeavam, pois a vida de um grande campeão devia ser uma sucessão de emoções. Franziu a testa desconfiada e perguntou:
- Papa, o que foi que fizeste?
- Bem – começou, enrolando as mãos uma na outra –, estava no jardim, a observar as minhas flores... Não, Videl, não me podes censurar por estar no jardim, está muito calor dentro de casa e não estou habituado a ficar tanto tempo fechado. Isto de não podermos sair nesta dimensão está a complicar-me com os nervos.
- Papa, estás a desviar-te do principal. Estavas no jardim...
- Pois, estava metido com os meus pensamentos, quando oiço alguém cumprimentar-me. Levanto a cabeça e dou com um homem da Dimensão Real a olhar para mim. E ele insistia: "Olá, vizinho. Nunca o tinha visto por estas bandas". Fiquei de todas as cores. Tentei fugir, mas se calhar era pior se fugisse, por isso continuei ali, especado, a olhar para o homem. Começou a fazer-me perguntas sobre as minhas plantas e eu, sem dar por isso, comecei a responder.
A voz dele tornou-se esganiçada:
- Eu falei com o homem, Videl! Uns bons vinte minutos... Que desgraça! Consegui desfazer-me dele com a desculpa que me doía a barriga e que tenho uns intestinos nervosos... Até é verdade, tenho mesmo uns intestinos nervosos... Assim que vi que o homem desapareceu, corri para cá. Ai, que grande desgraça!
- Papa! – Cortou Videl num grito para o fazer parar a enxurrada de palavras.
- Filha?
- Tu não interagiste com ninguém.
Mr. Satan piscou os olhos, atónito com a resposta dela.
- Ah, não?
- Apenas falaste com alguém da Dimensão Real. Isso não é interagir.
- De certeza?
- Certeza absoluta.
Um suspiro de alívio saiu do peito de Mr. Satan. Deixou-se escorregar pelo sofá, completamente exausto. Mas também aliviado.
- Ainda bem – murmurou.
- Se acontecer algum de nós interagir com alguém da Dimensão Real regressaremos à Dimensão Z e penso que isso acontecerá instantaneamente, com a mesma rapidez com que fomos enviados para esta dimensão. Como vês, ainda estamos neste lugar e com este aspeto.
Terminou a frase com uma careta. Odiava a imagem que via refletida no espelho e passara a evitá-los, como se o reflexo lhe devolvesse um monstro impossível de contemplar. O campeão limpou o suor da testa com as costas da mão, a soltar novo suspiro.
Como o pai lhe parecia menos agitado, ofereceu-lhe uma bebida, que ele aceitou. Videl regressou da cozinha com um par de cervejas frescas enlatadas.
- Não te podes enfiar em casa, como um eremita – disse-lhe a estender a lata. – Acabas por apanhar sustos desnecessários e assustas-me a mim também. Podemos passear, trocar cumprimentos com as pessoas da Dimensão Real, falar com elas. Podes também falar com a tua filha, de vez em quando.
Mr. Satan cruzou a perna, saboreando a cerveja.
- Aproveito o meu tempo dentro de casa. Tenho andado ocupado.
- Ocupado?
- Hai. Enquanto Bulma-san constrói a máquina das dimensões, tenho andado a tratar da minha biografia.
- Fazes muito bem.
Pelo menos, tinha encontrado uma distração válida, ao contrário dela, que não tinha nada para fazer e que se aborrecia a ver os dias passar monótonos e intermináveis.
- E arranjei um novo problema, por causa da biografia.
- Que problema?
- Não sei se deva incluir este episódio do feiticeiro, ou não.
- Nem penses! – Zangou-se ela.
- E porque não? – Indignou-se ele.
- Isto é um assunto de Goku-san, não teu.
- Mas Cell e Majin Bu também eram assunto de Goku-san – balbuciou.
- Papa, para todos os efeitos, Zephir nunca existiu.
- Como?
- Tu ouviste-me bem. O que Goku-san pretende é eliminar Zephir rapidamente e sem fazer muito alarido, logo que regresse à Dimensão Z. Assim, será como se o feiticeiro nunca tivesse existido.
- Mas Zephir existe! Afinal, enviou-nos para este lugar horrível, não estamos onde pertencemos e alguém deve dar pela nossa falta.
- Só se passaram seis, quase sete dias na Dimensão Z.
- Alguém deve dar pela minha falta!
- E depois? Dizes que foste fazer uma viagem ou coisa parecida.
- Videl, não me parece certo – alegou contrariado. – Isso não vai corresponder ao que realmente aconteceu.
- Ah, essa é boa! Agora estás preocupado com o que realmente aconteceu! E o que é a tua biografia senão uma série de histórias inventadas?
- Videl!
Ela bebeu um grande gole de cerveja, olhando o pai de través. Porque é que ele tinha de ser tão vaidoso? Goku-san tinha realizado muitos mais feitos heroicos ao longo da vida e não se punha a escrever livros e a relatar os factos aos quatro ventos. Por vezes, sentia-se incomodada por conhecer a verdade e saber que esta nunca seria conhecida. Ela, que quando era adolescente, sempre amara e combatera pela justiça.
Mr. Satan concordou com relutância e um toque de presunção:
- Está bem... Não irei mencionar o feiticeiro... Afinal, é só um feiticeiro. Não é um adversário digno do lendário campeão.
Mas, no fim, Videl acabou por sorrir. Não havia nada que pudesse fazer para mudar aquele velho espalhafatoso. Era tarde demais para corrigir vícios antigos. E porque se importava ela com a verdade se Goku-san não se importava? Pois devia fazer o mesmo. Até porque Mr. Satan era o seu pai e ela gostava muito dele.
II.3. Perigo
Entrada no meu diário, data: agosto 1996
O "Académico" estava mais cheio naquele sábado à noite do que no fim-de-semana anterior. Havia mais pessoas de férias e a rua dos bares parecia uma feira. O calor roçava o insuportável dentro do bar mais popular da cidade, naquele verão. De vez em quando ouvia-se alguém gritar para ter cuidado e para não empurrar.
A Patrícia, como sempre, avançou à nossa frente e desapareceu por entre um grupo de raparigas que tapava a circulação junto ao balcão.
- Já perdi a tua irmã - disse eu esticando o pescoço para tentar descobri-la por entre a multidão.
- Ela está ali à frente – retorquiu a Carla apontando. - Vá, fura por aí para podermos passar.
Fiz o que ela me pediu, forcei a passagem e conseguimos alcançar a Patrícia que falava com o Hugo. Cumprimentou-me com dois beijos, que, curiosamente, não tiveram qualquer efeito em mim. Estranhei, pois até achava o rapaz bonito. Mas era compreensível, porque havia outro rapaz mais bonito do que o Hugo. Apesar de ter jurado esquecer-me dele, não tinha cumprido a jura e, em momentos de franqueza, que eu amaldiçoava no momento seguinte, lembrava-me daquele olhar azul intenso que era capaz de queimar a alma.
- Olha quem está ali. O Tiago! – Disse a Patrícia, acenando para o fundo do bar, junto às mesas de matraquilhos.
O meu coração disparou e corei.
- Quem?
- O Tiago. Aquele amigo do Pedro muita querido. Está a rir para cá.
A Patrícia fez-lhe adeus, ele levantou o copo de imperial e devolveu o cumprimento com um piscar de olho. Olhou para mim e deixou-se ficar. Um, dois, dez segundos. Mais do que dez segundos e a Patrícia dizia sempre que, ultrapassado esse tempo, era crítico, que havia química e faísca.
A música e a algazarra do "Académico" diluíram-se e só ficaram eu, o Tiago e a eternidade do nosso olhar trocado.
Uma mancha escura passou por mim e saltei assustada. O Miguel aparecia. Cumprimentou-me, cumprimentou a Patrícia e começou a falar com a Carla. Tínhamos vindo à procura dele, dissera-me a Patrícia, mas o rapaz, apesar de no fim-de-semana passado ter havido qualquer coisa entre ele e a minha amiga, não parecia interessado numa repetição e ignorava-a de propósito. A Patrícia ficou furiosa. Deu meia-volta e foi até ao bar buscar alguma coisa para beber.
O Miguel tapava agora o meu campo de visão, mas ainda consegui espreitar por uma fresta, por cima do ombro dele, e vi o Tiago receber um copo das mãos de uma rapariga morena muito alta que vinha com o João. Bem, estava acompanhado pelo palerma do amigo e desviei a cara. Ali estava a razão para esquecê-lo definitivamente e manter a minha jura.
O Pedro aproximou-se de nós. Fingiu não me conhecer, a Carla nem se apercebeu que ele não gostou quando apontou para mim a dizer:
- Conheces? É a Ana, amiga da minha irmã.
E obrigou-o a dar-me dois beijos, como se nos estivéssemos a apresentar pela primeira vez. Achei a cena hilariante. O Pedro evitava-me, porque eu conhecia o segredo dele com a loira, na praia, arrancados indecentemente do banco traseiro de um Toyota vermelho por um homem zangado. E já agora com muita força, para conseguir puxar pelos dois sem ter feito um grande esforço.
A Patrícia voltou e encetou uma conversa muito animada com o Pedro. Afinal, seria para toda a vida, segundo as palavras dela...
Pulando ao ritmo da música, a Carla trouxe-me uma cola, gingando com uma alegria contagiante. Era o aquecimento para a discoteca, dizia-me ela. O "Académico" emulava uma fornalha e bebi metade da cola de um trago para refrescar-me. Reparei num olhar fugidio que me lançara o Tiago.
O Tiago olhava outra vez para mim?
Voltei costas ao sítio onde ele estava com o palerma do João, mais a amiga morena. Assim, não caía em tentações de passar a noite toda a marcar os gestos do Tiago.
A voz rouca de Cher irrompeu pelo bar adentro, por cima de todas as outras vozes que se atropelavam umas às outras, a cantar "The Shoop Shoop Song". Eu e a Carla adorávamos aquela música, um remake de um tema antigo que fazia parte da banda sonora de um filme que estivera anos atrás nas salas de cinema. A Carla virou-se para mim e repetiu comigo os versos iniciais da canção:
"Does he love me? I wanna know.
How can I tell if he loves me so?"
Cantámos e dançámos, fizemos do pouco espaço que tínhamos uma autêntica pista de dança. O suor molhava-me a testa e a nuca, sentia-me feliz. Não resisti e olhei para o Tiago. De copo encostado ao queixo, olhava para mim. Mas como tudo não passava de uma ilusão, ele não estava encantado comigo como me parecia, tornei a voltar-lhe costas.
Para fazer ciúmes ao Miguel, a Patrícia namoriscava com o Pedro. Não gostei de ver a minha amiga atirar-se com tanto descaramento para cima dele. O Pedro fazia parte do grupo do Tiago, padecia da mesma falta de escrúpulos e não seria muito recomendável. Não lhe tinha contado a cena no carro com a loira, na praia do fim do mundo. Por um segundo, considerei contar-lhe, para ver se acabava com aquele namorico, que iria descambar numa escandalosa curtição no final da noite, pois o Pedro não merecia a Patrícia. Mas ela não me iria escutar... Estava apostada em captar a atenção do Miguel com aquele expediente e mesmo que parecesse aceitar o meu conselho, haveria de fazer pior assim que eu não estivesse presente. Bebi a cola, revirando os olhos.
Ainda troquei mais um olhar com o Tiago, mas foi uma situação esquisita. Olhava para mim quando a rapariga morena lhe falava ao ouvido. Sorria e eu não podia precisar se era para mim, se era devido ao que ela lhe estava a segredar. Foi o momento que encerrou a minha noite, dei-me por satisfeita, apesar de, em retrospetiva, ter sido tão pouco. Passado uns minutos, quando voltei a procurar por ele, já tinha saído e levara o João e a morena. O "Académico" perdeu toda a piada e eu arrefeci.
A Patrícia organizava a próxima saída, para a inevitável discoteca "Kadoc", como sempre fazia, distribuindo pessoas pelos carros existentes. Dava a mão ao Pedro que se deixava guiar por ela, com um ar melado. O Miguel dava mostras de não se importar e a Patrícia apertava mais a mão ao Pedro. Olhei para o relógio, faltava um quarto para as duas da manhã. Disse à Carla que não iria com eles. Acrescentei que estava cansada. A verdade era que não estava com paciência para aturar sítios escuros, com luzes coloridas às voltas, com música aos altos berros, mais os caprichos da Patrícia que só via o Pedro, as boleias malucas que ela poderia arranjar para mim. O plano já estava delineado desde o início, a minha noite terminava na rua dos bares e por isso até tinha trazido o meu carro. Despedi-me e a Carla fez-me prometer que lhe telefonava no dia seguinte.
A rua onde tinha deixado o carro era escura e silenciosa. Não me senti confortável ao andar por ali sozinha, os meus passos ecoavam nas paredes daquele lugar deserto. Agarrei nervosamente no porta-chaves, preparei-me para abrir a porta e meter-me depressa dentro do carro, trancando-me de seguida.
Sem querer, lembrei-me do Tiago. Ele hoje estava mais bonito do que na noite em que o conhecera. Suspirei enlevada na lembrança dele, naquele encanto a derramar-se e a atingir-me, a luz intensa, bela, mas mortal, de uma supernova a explodir no Universo. Abanei a cabeça, rindo-me da minha fraqueza. Escolhi a chave certa, de entre o conjunto de chaves que segurava, apontei-a para a fechadura da porta do carro. Estava disposta a esquecer que ele era desprezível se me concedesse a graça de uma troca de olhares, como tinha acontecido no "Académico". Mas como podia ser tão ingénua? Agora, detestava-me por estar a ceder tão facilmente ao jogo de sedução do Tiago.
- Não me queres dar uma boleia?
Assustei-me com a pergunta, feita junto ao meu ouvido direito. Saltei, gritei e larguei o porta-chaves que caiu no asfalto fazendo um barulho ensurdecedor no meio daquele silêncio.
Um vulto tinha surgido das sombras e colava-se a mim. Olhei para as chaves no chão e depois para o homem. Usava barba num rosto imundo, tinha a roupa numa lástima, exalava um cheiro nauseabundo, escondia as mãos dentro dos bolsos de um casaco puído e descosido nas mangas. Tentei manter a calma, embora adivinhasse as intenções dele.
- Eu... não vou sair de Faro.
- Não faz mal.
A minha garganta secara e comecei a suar. Tornei a olhar para o chão. O homem percebeu e fez um esgar impaciente.
- Apanha lá a merda das chaves.
Não me mexi.
- Ouviste, ou não?
- Ouvi...
- Então, apanha a merda das chaves.
Decidi obedecer. Agachei-me e agarrei no porta-chaves. Tive de fazer um esforço imenso, como se carregasse um pedregulho nos ombros, para me levantar. As minhas mãos tremiam tanto que eu não tinha qualquer sensibilidade nos dedos, era como se não segurasse nada. O homem apontou para o porta-chaves.
- Abre o carro.
Fiquei outra vez imóvel.
Foi nessa altura que o homem perdeu a paciência. Tirou a mão direita do bolso e apontou-me a lâmina afiada de um canivete de ponta-e-mola. Chegou-se a mim, deu-me um encosto.
- Abre a merda do carro ou ficas já aqui, sua cabra!
A ameaça ficou a zunir nos meus ouvidos, longínqua e distorcida. Depois as palavras escoaram-se e ouvi apenas o zunido persistente que me ensurdecia e me confundia. Ainda pensei, como que para me distrair daquela situação inacreditável, que estava assim por causa da música alta do "Académico". Era mais do que certo, pois claro, a música estava realmente alta...
Um segundo encosto fez-me reagir. Mas eu estava uma pilha de nervos e as minhas mãos pareciam gelatina e não acertava com a fechadura. O homem rugiu.
- Calma... – murmurei.
Não tinha muito mais tempo. Forcei a mão, a chave entrou e nem sei por que milagre dei com a porta aberta. Recuei para lhe dar espaço. Ele que levasse o carro, que levasse a mala, que levasse tudo o que quisesse, mas que me deixasse em paz. Já não suportava mais aquilo. Iria fugir dali, assim que tivesse espaço suficiente e distância daquela lâmina.
Mas o homem virou-se subitamente.
- Eh!... Tu vens comigo!
Gritei:
- Não!
- Cala-te, cabra!
Senti um puxão nos cabelos. O instinto fez-me tentar correr. A mão porca do homem enredou-se na minha cabeleira. Puxou outra vez, com tanta força, que parecia querer arrancar-me o escalpe. Gritei com a dor. A mesma mão e nem soube como o fez, apanhou-me o pescoço. Fiquei petrificada, à espera de sentir a lâmina cravar-se em qualquer parte do corpo. Fechei os olhos e esperei. O tempo parara.
Um som seco cortou o ar. Senti a pressão aliviar-se do pescoço e deixei-me cair para a frente, joelhos no asfalto. Escutei um urro abafado e outro som seco, como um soco. De olhos fechados, encostei-me ao carro, tentei respirar. O zunido voltava e barrou os demais ruídos, isolando-me num casulo invisível e regressei ao "Académico" onde estava a salvo, rodeada de amigos.
Repentinamente fui devolvida à realidade, o silêncio da rua, a falta de eco e a ausência de claridade amedrontaram-me. Pisquei os olhos, num transe de terror. O que vi na penumbra deixou-me abismada.
O homem que me assaltava estava inconsciente, caído aos pés de um jovem que o olhava com desprezo. Naquela posição de ataque, jurava conhecê-lo. As pernas afastadas, o torso direito, os punhos cerrados, os braços dobrados pelos cotovelos, o cabelo comprido apanhado num rabo-de-cavalo. Cheio de carisma e poder. Só lhe faltava a jaqueta azul, as calças pretas e as botas amarelas.
- Trunks? – Balbuciei.
Ele voltou-se para mim. Deixei-me ficar encolhida, assustada, encostada ao carro, as unhas a raspar o asfalto.
- Ana estás bem?
O meu coração parou.
- Tiago? És tu, Tiago?
- Sim, sou eu. Estás bem?
Sustive a respiração, a acreditar que sonhava. Olhei para o homem. Nem sequer gemia, estava totalmente apagado e haveria de se levantar só de manhã, se ninguém desse por aquela coisa ali estendida e o levasse para onde pertencia, um asilo ou a prisão.
O toque do Tiago surpreendeu-me e gritei. A mão dele, quente e forte, estava sobre o meu ombro.
- Calma. Anda, eu ajudo-te.
Levantei-me. As minhas pernas estavam feitas em papa e continuei encostada ao carro, que me ajudava a manter de pé. Percebeu a minha confusão e disse:
- Sim, fui eu que o derrubei. Estava por perto, vi o que estava a acontecer e achei que seria melhor intervir.
- Fizeste bem...
Os meus olhos encheram-se de lágrimas. De repente, o que me tinha acontecido naquela rua escura desabou numa avalancha e comecei a fungar para não desatar a chorar com o Tiago a olhar para mim. Senti-me tão estupidamente vulnerável, tão incrivelmente indefesa, tão massivamente esmagada que só queria enrolar-me e gritar e chorar até ficar seca e expurgar o terror daquela experiência. O Tiago sorria-me, como eu nunca o tinha visto sorrir.
- Então? Já acabou... Eu estou aqui e aquele infeliz já não te vai fazer mal.
Respirei fundo, a engolir os soluços e as lágrimas.
- Pois... Tens razão...
- Dá-me as chaves.
Olhei-o como se me estivesse a assaltar, como o outro. Continuava com o mesmo sorriso.
- Não estás em condições de conduzir – explicou condescendente. – Eu levo-te a casa.
Estendi-lhe o porta-chaves, que chocalhava porque as minhas mãos ainda tremiam. Passei pelo homem com repulsa, deitando-lhe uma última olhadela. Sentei-me no lugar do pendura e o Tiago ocupou o lugar do condutor. Fechámos as portas do automóvel quase ao mesmo tempo.
- Conseguiste desfazer-te dele facilmente – disse.
O comentário fora uma constatação minha, eu falando com os meus botões, tentando reorganizar as ideias e recuperar o sangue-frio, percebendo o que tinha acabado de acontecer, mas o Tiago entendeu que eu estava a falar com ele e replicou:
- Sei algumas habilidades.
Resolvi aproveitar a oportunidade de uma conversa.
- Sabes usar os punhos?
O automóvel arrancou suavemente, os braços dele giraram o volante com segurança. Piscou-me o olho e eu corei.
- Sei – respondeu-me.
- Onde é que aprendeste... a lutar?
- Com o meu pai.
Novamente aquela imagem descabida do Tiago à pancada com o pai e apaguei-a imediatamente do pensamento.
- Ele luta bem? O teu pai...?
- É um grande lutador.
- Ah... E luta porquê? Entra em competições ou coisas do género?
- Porque é que me estás a fazer tantas perguntas?
- Não queres que te faça perguntas?
- Lembras-te dos meus segredos?
- Sim. Matas-me se mos revelares.
- Precisamente, nena.
- Não é que te esteja a perguntar pelo teu verdadeiro nome.
Ele calou-se e virou a cara para a janela que abrira. O ar fresco da noite agitou as madeixas de cabelo que lhe caíam compridas sobre a testa.
A conversa tinha secado.
O cansaço e a emoção daquela noite juntavam-se numa mistura que drenava rapidamente as minhas derradeiras reservas de energia. Encostei a cabeça no banco e deixei-me embalar pela condução dele. Perguntei-lhe, e essa pergunta teria mesmo de a fazer, se sabia para onde ia, se ainda se lembrava onde eu morava. Respondeu-me com um simples sim e não disse nem mais uma palavra.
O automóvel estacionou no pequeno parque que ficava nas traseiras do prédio onde eu morava. O Tiago entregou-me o porta-chaves e levou-me até à porta de casa.
- Agora, vais a pé.
- Não te preocupes. Sei usar os punhos, lembras-te?
Fez-me rir.
E chegava o momento de nos separarmos, eu sem saber como dizer-lhe adeus, até outro dia ou coisa parecida e ele parado, a olhar para mim, com a mesma intensidade que me dispensara no "Académico". Não podia aguentar mais aquilo e resolvi fazer alguma coisa. Comecei por agradecer-lhe:
- Obrigada por me teres ajudado.
- Como te disse... – Enfiou as mãos nos bolsos, baixou a cabeça e completou num quase murmúrio: – Estava por perto.
O Tiago tivera, subitamente, um ataque de timidez. Senti, pela primeira vez, que a alma dele necessitava desesperadamente de ser alcançada. Mas fiquei atrapalhada por sabê-lo indefeso. Desatei a falar:
- Nem sei o que me poderia ter acontecido se não tivesses aparecido. O homem queria levar-me, não lhe bastava roubar-me o carro... Mas aprendi a lição. Para a próxima, estaciono num sítio mais iluminado e com gente a passar, mesmo a estas horas da madrugada. Mas estacionar na baixa é tão difícil, nunca há lugares. Por isso, tive de deixar o carro naquela rua escura. Ainda bem que estavas por perto. Foi a minha sorte. Obrigada... Mais uma vez, obrigada.
Olhou-me atravessado e eu calei-me. Tinha realmente chegado a hora das despedidas, mas eu, sinceramente, não me queria despedir. Era capaz de passar o resto da noite a conversar com o Tiago na porta do prédio.
- Não é preciso agradecer. Fiz o que devia.
- Ah... Pois.
- Djá ná. – Traduziu rapidamente: - Até à vista.
- Sabes falar japonês?
Quedou-se estático, a vacilar entre a dúvida gigantesca que o dividia em duas partes antagónicas, o anjo e o demónio. Decidia-se se finalmente iria revelar-me os seus preciosos segredos. Oscilou nos calcanhares, como um miúdo de dez anos a antecipar a travessura que o expulsaria da escola. Abriu um meio sorriso e respondeu-me:
- Hai.
- Mas...?
- Eu nasci no Japão.
- No Japão?
- Pode-se dizer...
- Eh... Não me pareces japonês.
Agora, foi a vez dele se rir.
- Nem toda a gente que nasce no Japão tem de parecer japonês. Não achas?
- Sim... - Corei por ter sido apanhada numa asneirada tremenda. – Tens razão. – Acrescentei para que ele não se arrependesse: - O teu nome é japonês?
- O meu nome? Tu queres mesmo saber como me chamo.
- Eh... Quero.
- Porquê?
Encolhi os ombros. E havia uma razão objetiva, válida e inegável, a não ser pelo facto de o conseguir chamar corretamente em sonhos? Pus-me com rodeios:
- Não gostas do teu nome? Porque é que sendo japonês, queres que te chamem por um nome português e falas espanhol?
Inesperadamente, o Tiago corou.
- Estou a aprender português. Já sei... Algumas palavras.
Eu gaguejei, surpreendida com a reação dele.
- Sim? Que palavras?
- Mas não gostas do nome Tiago?
- Não tenho nada contra.
Recuperou a segurança que lhe era típica, endireitou as costas, continuava com as mãos nos bolsos.
- Então, estamos em sintonia. Djá ná, Ana-san – provocou, coroando a frase com uma piscadela de olho que me deixou a tremer.
Disparei, porque ele afastava-se do pequeno patamar da entrada do prédio onde conversávamos:
- Gostaria muito de aprender japonês.
Conseguira mais uns segundos da atenção dele. Perguntou admirado:
- Porquê?
- Tenho as minhas razões.
- Hum... Conheço alguém que poderá ajudar-te.
Esmoreci. Contava que fosse ele a ensinar-me, apanhá-lo a sós, sem a companhia dos palermas dos amigos, porque assim ficava mais civilizado.
- Alguém? Um amigo teu? – Perguntei desiludida.
- Hai.
Era engraçado como, de repente, tinha começado a falar comigo atirando algumas palavras em japonês. Também era engraçado porque tinha a impressão que o timbre da sua voz mudava ligeiramente sempre que falava nessa língua.
- Ele é professor. Chama-se Go... - Hesitou. - Chama-se Gomano. Dá aulas de matemática na Universidade do Algarve.
- Na Universidade do Algarve? Eu trabalho na Universidade, na secção administrativa do departamento de Engenharia Mecânica, na Escola Superior de Tecnologia. Mas acho que não conheço o teu amigo... Dá aulas de matemática? Deve ser em Gambelas...
- Hai. Ele dá aulas na Universidade, em Gambelas.
- Deve ser professor nas "Exatas e Humanas".
- Procura por ele. Pergunta-lhe se não se importa de te ensinar japonês.
- Achas que ele vai aceitar?
- Diz-lhe que vais da minha parte.
- Está bem. Farei isso.
Ouve um curto silêncio e ele disse:
- Está a fazer-se tarde. Devo ir. Já me demorei muito por aqui.
O meu coração apertou-se. Ele queria voltar para a companhia dos amigos palermas, possivelmente da morena que lhe contava segredinhos ao ouvido e que se encostava tanto a ele. O sonho terminava.
- Até amanhã, Tiago – arrisquei.
- Até amanhã, nena.
Voltei costas, agarrei no porta-chaves, ia abrir a porta, fechar aquele capítulo definitivamente, matutar nele até adormecer, mas ele interrompeu-me o gesto.
- Há pouco, na rua, quando te salvei do assaltante...
- Sim?
- Chamaste-me por um nome.
Sustive a respiração. Ele tinha ouvido aquele disparate? Fora uma alucinação, uma improbabilidade.
- Ah...
- Que nome foi?
- Estava escuro... Naquela posição, a silhueta, o cabelo, fizeste-me lembrar alguém. Alguém que não existe... - Revelei cheia de vergonha: - Chamei-te Trunks.
Ele também susteve a respiração.
- Trunks? Porquê?
- Já te disse, estava escuro. – Mas acrescentei - Conheces o Trunks?
- Sim... Não – respondeu nervoso.
- Conheces "Dragon Ball"?
- Não – cortou.
Acenou-me uma despedida e começou a ir embora, desta vez, definitivamente. Fiquei aborrecida, o Tiago não estava minimamente interessado em conhecer "Dragon Ball".
Entrei em casa, corri para a janela do meu quarto. Consegui ainda vê-lo a dobrar a esquina e a desaparecer. Mesmo já não o vendo, fiquei à janela, a imaginá-lo a andar, mãos nos bolsos, comigo no pensamento, assim como eu pensava nele. Aquela noite seria longa, não iria dormir porque iria sonhar de olhos abertos com um autêntico príncipe encantado, estrangulando a almofada, pedindo aos deuses outro encontro daqueles, em que ele se tinha esquecido de ser desprezível.
Fim de entrada.
II.4. Consciência
Com muito cuidado, para não fazer barulho, Trunks esgueirou-se para dentro do quarto através da janela, que deixou aberta. Deslizou como uma sombra e foi estender-se silenciosamente na cama.
Estava cansado. Não um cansaço físico, era algo que vinha de dentro e que lhe roía a alma com persistência. As forças faltavam-lhe, estava farto, insatisfeito, mas não conseguia parar de fugir. Sabia agora que embarcara numa viagem alucinante sem retorno e que era tarde demais para voltar atrás.
Falhara redondamente. Deixara-se abater, desistira do combate. Ele, Trunks, o legítimo herdeiro da Casa Real dos saiya-jin, filho do grande príncipe Vegeta, descendente dos maiores guerreiros do Universo, não passava agora de um vulgar rapaz sem futuro, sem rumo e sem valor. Perdera, pura e simplesmente, a alegria de viver desde o tal dia amaldiçoado.
Contorceu-se incomodado com a lembrança. Queria esquecer! Conseguia-o quando vestia a pele do Tiago e incarnava esse personagem que todos adoravam nos bares, nas discotecas e em todos os antros noturnos da região. O deboche era a máscara definitiva, a espiral destrutiva que o conduziria ao Inferno que ele buscava, porque sabia ser meritório de um lugar assim, onde o sofrimento era eterno, onde as trevas eram perpétuas.
Devia ter regressado para junto do João e da morena que vinha de uma cidade do norte, que não conseguira fixar, e que se chamava Manuela, mas não lhe apetecia mais colocar a máscara naquela noite depois de ter ido atrás da Ana.
O que a Ana lhe fazia, confundia-o. Gostara de a ver dançar e cantar do outro lado do bar, era como o antídoto que o poderia resgatar, se ao menos ele tivesse a coragem de se entregar. Ela seria uma boa aposta para descobrir o que era interagir, mas ele não conseguiria usá-la e descartá-la, como fazia com as outras. Perseguia a condenação final, mas haveria de se danar sozinho, a Ana não merecia ir para o Inferno com ele. Apesar de ter a sensação de que ela haveria de o seguir, porque, de algum modo dúbio, ela sentia qualquer coisa por ele.
E conhecia-o. Conhecia-os a todos. Uma excelente aposta!
Lembrava-se dela e o coração de pedra estalava por breves segundos. Se lhe perguntassem, não saberia explicar convenientemente porque sentira que ela estava em perigo e porque correra a salvá-la. Não queria ele ser desprezível?
Depois, a frieza realojou-se no peito e achou uma explicação razoável. Fora atrás da Ana e salvara-a porque ela também o tinha salvado da fúria de Vegeta, na praia, no passado fim-de-semana, e assim ficaram quites. Era importante não deixar dívidas, porque o caminho que percorria não pressupunha inflexões.
De repente, a luz da culpa acendeu-se no cérebro.
Acontecia, de vez em quando, a lembrança mais dolorosa de todas materializava-se, acomodava-se no seu interior e esgravatava-o sem piedade.
- Goten – murmurou.
A frase de Vegeta entrou-lhe pelos ouvidos com uma violência inesperada. "Zephir enviou-nos para a Dimensão Real ao enfeitiçar um tubo de ensaio cheio do sangue de Son Goten".
Estavam na Dimensão Real por causa dele. Cobriu os olhos com os braços, gemendo porque sentiu aquela dor que queria abafar na louca existência como um rapaz qualquer da Dimensão Real. Mas acabou por sorrir. Era disso que fugia, da verdade... Do que tinha acontecido naquele dia no Templo da Lua.
Fugir loucamente apenas numa direção. Para a frente, para o abismo.
Uma brisa fresca entrou pela janela. Levantou-se da cama e encostou-se ao parapeito para ver as estrelas. Gostou de vê-las. Gostou também do vento que o embalara naquela noite de verão enquanto voara para casa, coisa que deixara de fazer desde que chegara àquela dimensão. Desistira de voar porque não suportava fazê-lo sozinho. Tinha a horrível tendência de olhar para o lado e procurar pelo amigo.
Esmurrou o parapeito, a reter as lágrimas. Não iria chorar, porque os saiya-jin não choram. Suportaria o amargo daquela derrota pessoal embriagado com a falsa sensação de que pertencia àquele corpo e àquele nome.
Zephir, entretanto, triunfava algures, num sítio demasiado longe, que ele não queria reencontrar. Ele não queria voltar para o seu fracasso. A mãe tentara convencê-lo de que ainda havia esperança e que poderiam ressuscitar Goten com as bolas de dragão, mas ele perdera a fé e não queria que lha devolvessem, nem queria que o reconfortassem, nem queria que o despertassem. Zephir vencia e Trunks não se importava.
Preferiu sentir a dor, em vez de acreditar no futuro em que eles sairiam vitoriosos. Confuso, meneou a cabeça e murmurou tristemente para as estrelas que observava:
- Queria que me perdoasses... Son Goten! É que eu não consigo perdoar-me.
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