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Capítulo I


I.1. O primeiro encontro

Entrada no meu diário, data: agosto 1996

Era uma noite abafada de mais uma sexta-feira do quente verão de 1996. As ruas da baixa da cidade, onde se situavam os bares e os locais de diversão noturna, obrigatórios naquela estação do calor e das loucuras, estavam pejadas de gente bronzeada, vestida de roupa reduzida e justa. Juntavam-se em grupos faladores e risonhos junto às portas escancaradas, ocupando as mesas das esplanadas. Bebia-se imperial, vodka-laranja, whisky-cola. Música alta saía de cada bar e misturava-se com as gargalhadas e as conversas numa cacofonia indistinta que caracterizava aquele sítio da cidade, numa típica noite de férias.

Só que eu não estava de férias e andava pela rua a tentar partilhar a alegria da noite, a afugentar o sono que me fez, inesperadamente, bocejar. Tinha sido uma semana cansativa de trabalho e, quando o sol se deitara no horizonte, vestira o pijama, estendera-me no sofá e agarrara no controlo remoto, disposta a vegetar em frente à televisão até amolecer e ir, finalmente, viajar para o vale dos lençóis. Mas o telefone tocara e eu cometera o erro de atender. Era a Patrícia, amiga e colega de escola dos tempos do secundário. Tinha regressado da sua viagem a Torremolinos, em Espanha, naquela tarde. A minha amiga podia dar-se ao luxo de ainda não ter começado a trabalhar, o papá pagava-lhe as férias grandes depois de ter terminado, havia um par de meses, o seu curso superior. Não tinha pressas, contava começar a procurar emprego lá para outubro ou novembro, contara-me uma vez. Eu não. Trabalhava havia quase dois anos e aquela era uma noite de sexta-feira para descomprimir de uma semana fatigante.

Num tom descontraído, a Patrícia convidava-me para sair, naquela noite. Pelos vistos, o Miguel também estava no Algarve e tinha trazido com ele uns amigos da capital, Lisboa - era uma ocasião a não desperdiçar. Eu olhara para o relógio, olhara para a janela onde o céu estava escuro. Olhara para a televisão onde começava um programa de variedades, música e entrevistas, o típico programa amorfo para quem desejava vegetar.

- Eu não sei... – respondera.

- Não sabes o quê? Vá, despacha-te! Passo aí dentro de meia hora.

As meias horas da Patrícia significavam duas horas. Dentro de duas horas estaria a dormir.

- Hoje vou ficar em casa – tentei.

- Ana Isabel! Nem penses nisso!

- E porque não?

- Ora, porque é sexta-feira e este dia é sagrado.

- Estou cansada.

- Vá lá, quando estiveres na baixa, passa-te logo o cansaço. Quando vires os amigos do Miguel!... São uns borrachos.

- Eu já conheço os amigos do Miguel.

Do tipo presunçoso, vaidoso e irritante. Não estava interessada em nenhum desses rapazinhos, com ar na cabeça em vez de cérebro, exibindo roupas de marca e sapatinhos de vela. Torci a cara numa careta.

- Ainda estás aí, ou morreste? – Perguntou-me.

- Ainda estou aqui...

- Meia hora, ouviste? E não te atrases ou perdemos o grupo do Miguel. Até já.

- Bem... até já.

Mas a Patrícia já tinha desligado e não ouvira a minha resposta. Não tive outro remédio senão largar o comando remoto da televisão e abandonar o pijama.

Passado uma hora e meia, o que até foi um tempo razoável tendo em conta a tradição, já estava na rua dos bares, com a Patrícia à frente, a abrir caminho. A Carla, a irmã, estava ao meu lado.

- Onde é que vamos hoje? - Perguntou.

- Vamos ao "Académico" – respondeu-lhe a Patrícia, olhando para trás. – O Miguel disse que estava lá.

O bar era dos mais concorridos naquele verão e estava a abarrotar de gente. Era uma missão quase impossível conseguir passar a porta, atravessar o corredor e alcançar o balcão onde se podia pedir uma bebida, mas eu tentei a proeza. Agarrei no cartão da casa que o porteiro distribuía de forma automática, onde se inscreviam as bebidas consumidas com um carimbo desbotado, e forcei a entrada, esgueirando-me pela massa de corpos. A Patrícia, entretanto, munindo-se da sua estatura baixa e da sua agilidade, tinha desaparecido.

- Para onde foi a tua irmã? – Perguntei impaciente.

O calor era insuportável dentro do bar. A Carla pôs-se em bicos de pés, esticou o pescoço e depois respondeu, enquanto furava pelo meio de um grupo de raparigas muito morenas:

- Está ali, a falar com o Miguel. Já o encontrou. Anda!

Resolvi segui-la, atravessando o mesmo grupo de raparigas, suspirando pela minha querida televisão, mais o seu programa de variedades.

A Patrícia falava muito animada com o Miguel, que tinha ao lado dele um rapaz de cabelos escuros encaracolados que se chamava Hugo. Já mo tinham apresentado antes, mas eu fingi que não o conhecia, para ter outra apresentação e mais dois beijinhos da praxe. Quando o Hugo se inclinou para mim, fiquei deliciada, porque ele era realmente muito bonito. Um dos borrachos e tive de dar a mão à palmatória e concordar com a Patrícia, naquele momento pequenino em que o Hugo me beijava a cara, dos dois lados, que realmente sair numa sexta-feira à noite era sagrado.

Apresentaram-me, de seguida, mais borrachos. Um Carlos, um Paulo, um Luís. A Patrícia perguntou pelo Pedro e o Miguel apontou para o fundo do bar.

- Está ali, com o Tiago.

- Quem é o Tiago? Não conheço...

O Miguel voltou-se e levantou a mão que segurava no copo de imperial. A Patrícia aproveitou para me confidenciar:

- O Pedro é muita giro! Já vais ver. Com aquele era para toda a vida, Ana. Para toda a vida!

Não devia ser mais bonito que o Hugo, de certeza, pensei. Se conseguisse, ao menos, um pouco da atenção desse moreno que tinha uma maneira engraçada de sorrir, que lhe fazia covinhas junto à boca. Podia até ser hoje, naquela sexta-feira improvável.

A Patrícia exclamou:

- Olha, está ali a Susana! – Deixou-me enquanto dizia: – Aguenta aí o Pedro por mim. Só vou ali dizer olá à Susana e já venho.

Nem tive tempo para uma resposta, pois o Miguel acabava de trazer o Pedro para o exíguo espaço onde estávamos.

- Ana, não sei se já conheces o Pedro...

- Não, não o conheço.

E voltei-me para encarar esse Pedro que era para toda a vida.

O meu corpo foi sacudido por um calafrio. Os sons vazaram para um buraco negro e todo o movimento parou, como se tivessem tirado uma fotografia à cena. Eu também não me conseguia mexer, enredada numa malha apertada que me estrangulava todos os vasos sanguíneos, até me secar por completo.

Com o braço pelos ombros do Pedro para toda a vida estava o rapaz mais deslumbrante que eu havia visto.

Uma rapariga puxou pela manga do Miguel e este voltou-nos costas. Cumprimentou-a e ficou a falar com ela, que vinha com a Carla. O Miguel abraçou a irmã da Patrícia e brincou com ela, dizendo que estava muito bonita. Ouvi a gargalhada da Carla.

- Chamas-te Ana, não é? – Perguntou o Pedro. – És amiga da Patrícia?

- Sim. – Fiz um esforço enorme para não me engasgar, nem gaguejar. – Sou amiga da Patrícia... e da Carla.

O encanto do Hugo perdeu todo o brilho ao pé daquele rapaz que estava com o Pedro.

- Eu sou o Pedro. – Apresentou-se com o devido par de beijinhos, arrastando o amigo. – E este é o Tiago.

Sorri como uma pateta. Ele inclinou-se, sempre abraçado ao Pedro, e muito lentamente fez roçar os seus lábios na minha cara, numa carícia quente.

Devia estar a enlouquecer!

Ou a apaixonar-me...

O Tiago era lindo! A definição cabal de borracho e ponto final. Uns enormes olhos azuis, um sorriso ensopado de ternura e, a emoldurar aquele rosto divino, duas madeixas compridas e rebeldes de cabelo claro, que não consegui definir se era loiro ou prateado ou ligeiramente púrpura, que se desprendiam do curto rabo-de-cavalo que usava sobre a nuca. E escondia debaixo da roupa um perfeito e magnífico corpo atlético.

- Estou encantado por te conhecer... nena – disse em castelhano.

A sua voz era música!

Definitivamente estava a enlouquecer.

Estranhei e perguntei:

- És espanhol?

- Não.

Na verdade, o nome Tiago não me soara nada a espanhol...

- Então, porque é que falaste em espanhol... Tiago?

Chamara-o só para saber se o nome dele soava bem se eu o pronunciasse. Repetia-o em pensamentos... Tiago. Tiago. Tiago e era como o refrão de uma música bonita.

- Também não me chamo Tiago.

Deixei de sorrir.

- Se não te chamas Tiago, como é que te chamas?

O Pedro desatou a rir.

- Não ligues. Está bêbado. E quando está bêbado diz sempre que não se chama Tiago.

A desilusão calou a música bonita dentro da minha cabeça.

O Tiago disse, a olhar para mim:

- Tenho muitos segredos. Sei de coisas que vocês nem sonham que existem e que se ligam ao vosso destino. E também ao meu, felizmente, o que é uma sorte, porque estimo muito a minha carcaça. Se revelar o que sei, posso colocar o mundo em perigo e, com o mundo, a minha carcaça estimada.

Era um idiota.

- Então, como é que te chamas? – Insisti.

Inclinou-se e murmurou-me ao ouvido e pude sentir-lhe o hálito a álcool:

- Se te disser, tenho de te matar a seguir.

Um perfeito, redondo e inegável idiota!

Outro dos amigos do Miguel, o João, apareceu de repente e introduziu-se naquele espaço minúsculo, tão minúsculo que empurrou o Tiago e este veio para a frente, para cima de mim. Inclinei a cabeça para trás para evitar uma cabeçada. Aquele olhar azul deslumbrante ligou-se ao meu com uma faísca e eu senti uma descarga elétrica em todas as articulações.

- Espanhol, traidor de merda! – Exclamou o João, puxando pelo Tiago e afastando-o de mim. – Andava à tua procura e tu aqui?

- Não é difícil dar comigo.

- Tinhas dito que te encontravas comigo no "Seu Café".

- Encontrei o Pedro primeiro.

O João olhou para mim, franzindo o nariz.

- Estás com esta?

- Não.

Corei indignada. Quem pensava aquele João que era para me classificar como uma "esta"?

- Ah... Ainda bem, porque tenho uma muito melhor para ti. Mais ao teu estilo, espanhol.

A indignação aumentava.

- Onde está ela?

- Está para ali, ao fundo. Chama-se Dora.

- Dora?

Mas será que eu me tinha tornado, de repente, invisível? À minha direita, o Miguel tinha-se evaporado, levando a Carla e a amiga com ele. O mar de corpos dentro do bar movimentava-se devagar, imitando as marés, criando ondas e correntes que mudavam o aspeto geral da fabricada extensão marítima. E agora sentia-me perdida e deslocada naquele mar abafado, ao lado do trio de idiotas. Tinha de me escapar dali.

O João farejou o hálito do Tiago, tão próximo que parecia que o iria beijar na boca. Fiz uma careta, ligeiramente enojada.

- O que é que andaste a beber, espanhol?

- O mesmo de sempre.

- Hum... Começaste outra vez sem mim.

- Tenho de dar um avanço, não aguentas a minha pedalada.

- O mesmo convencido de sempre. É com a bebida, é com as gajas...

- Prova o contrário. – Estendeu-lhe o cartão das bebidas, dizendo: - Vai lá buscar dois whisky-cola e para ti pede o que quiseres.

- Ah, espanhol! Vá lá que para além de convencido, és porreiro.

O João agarrou no cartão e dirigiu-se para o balcão, atirando um qualquer piropo estúpido a uma rapariga que estava tão longe dali que teve de gritar. Decididamente, um rapazinho para ignorar. Não gostei do João.

Estava na altura de sair dali, apanhar uma nova onda e encontrar uma maré mais simpática. O Pedro acenava a um par de raparigas loiras, provocantes nos seus vestidos negros minúsculos. Descobri o Tiago a olhar para mim. Acho que estremeci e acho que ele notou.

- Não queiras saber todos os meus segredos na primeira noite, nena.

- O meu nome é Ana.

Se não fossem aqueles olhos azuis incríveis, teria desprezado o rapaz para toda a eternidade. Mas o Tiago espanhol tinha mais qualquer coisa para além da falta de maneiras, de ser um bêbado com cara de anjo. Talvez fosse o mistério dos tais segredos que não se podiam revelar...

O Pedro puxou o Tiago e apresentou-o a uma das raparigas loiras, a tal Dora. Ao mesmo tempo aparecia a Carla com a Susana, à procura da irmã. A minha onda chegava.

Vagueei algum tempo pelo "Académico" com a Carla e com a Susana, até encontrarmos um sítio que não estava tão cheio e aí ficámos a beber uma cola, observando o ambiente, trocando frases – porque realmente não se conseguia conversar muito com a música tão alta. A Patrícia aparecia de vez em quando, geralmente com o Miguel e outras raparigas, amigas que tinham vindo de Lisboa para passar o fim-de-semana no Algarve. Eu ficava agarrada ao meu copo, o meu olhar perdia-se pelos cantos, varrendo o mar de gente. Apesar de nunca o admitir, sabia que procurava por ele. Encontrava-o sempre, para mal dos meus pecados.

O Tiago divertia-se com o Pedro e com as duas raparigas loiras perto do balcão, emborcando copos inteiros em três goles, o que me fazia alguma impressão. Agarrava-se à Dora, contava-lhe segredos, mexia-lhe no cabelo, fazia-lhe cócegas. Ela ria-se e eu odiava-a. Mas ela não tinha culpa. Quem é que conseguia resistir a um anjo daqueles?

Mas era um anjo sem miolos e essa ideia consolava-me. Hoje era a Dora, amanhã seria uma Maria qualquer.

***

Ao fim de um par de horas no "Académico" e quando a noite avançava, combinou-se ir até à "Kadoc", em Vilamoura. Contaram-se as pessoas e os carros, distribuíram-se as boleias e lá fui eu no carro da Patrícia, que não conseguiu convencer o Pedro a ir com ela, o que a dececionou tanto que fez a viagem toda calada, em contraste com a irmã que se ria às gargalhadas com a Susana, comentando as novidades que tinha sabido naquela noite.

A discoteca estava lotada. As paredes vibravam com o ritmo repetitivo da música rave, raparigas mais ousadas dançavam em cima das colunas, a pista de dança era um mar de cabeças e de corpos a ondular ao sabor do som controlado pelos disk jockey de serviço, todos os cantinhos literalmente inundados por jovens alegres, para desespero dos empregados que passavam entre a multidão aos ziguezagues, equilibrando bandejas de plástico cheias de copos vazios, a fazer números complicados de equilibrismo.

O meu grupo entrou e foi atirado para o meio da confusão. A Patrícia tentou não perder ninguém, mas era impossível porque éramos muitos. Por isso, ficou com o Miguel e com a Susana, deixando a mim a tarefa de cuidar da irmã e de ir para onde a Carla quisesse ir. Já estava habituada a esse papel e não me importei.

O Tiago passou por nós, agarrado à Dora. Tinha o Pedro a segui-lo, com a outra rapariga loira, mais o João e ainda o Luís. E para baralhar mais as coisas, senti um toque no ombro e era o Hugo que me dizia ao ouvido para irmos para a pista, pois a Carla já ia mais adiante, aos saltinhos, antecipando a dança. Lembrei-me que o moreno dos cabelos escuros encaracolados era o meu favorito e que não devia desperdiçar as suas atenções, ainda que fossem totalmente desprovidas de qualquer sentido romântico – mas seria um princípio.

Dancei um pouco, mas depressa me cansei. A semana de trabalho continuava teimosamente a pesar-me no físico. Saí da pista e encaminhei-me para um dos bares, onde piscavam luzes vermelhas e amarelas, emergindo as empregadas que serviam as bebidas numa obscuridade intervalada com disparos de luz intensa. O calor era insuportável. Pedi uma cola e fiquei a bebê-la devagar, chupando o gelo para me refrescar. Descobri o grupo do Tiago no mesmo bar e procurei outro lugar para saborear a minha bebida. Queria distância daquele bando de desmiolados, mais a Dora.

Passados uns minutos, a Carla apareceu, suada de tanto dançar e puxou-me para a pista. Fui, com copo e tudo. A música mudava para sonoridades que já eram mais do meu agrado. A voz rouca de Bryan Adams inundou-me os ouvidos no seu "Summer of '69" e eu pus-me a cantar com a Carla e com o Hugo.

Fechei os olhos e deixei-me ir. Tinha saído de casa, iria divertir-me. Mas, ao fechar os olhos, sem que verdadeiramente o quisesse, pensei no Tiago a sorrir para mim.

***

Quase no final da noite, conseguimos alcançar uma mesa e um par de bancos redondos, no patamar superior, junto à pista mais pequena, para descansar as pernas. Era sempre assim. Os lugares para sentar só apareciam perto da hora de saída. Apesar disso, não desdenhei a sorte e escolhi imediatamente um banco para mim. Pronto, rendia-me! Tinha dançado, bebido, dado uma volta pela discoteca e pelos jardins – estava tudo dito por aquela noite.

Estava com sono e fechei os olhos. Já estava com sono no início daquela noite, agora acumulava-se, camada sobre camada, no alongar da madrugada. A Patrícia pousou um copo vazio na mesa.

- É muita querido, não é?

- Quem? – Perguntei.

- O Tiago, o amigo do Pedro.

Numa mesa dos fundos, mas terrivelmente próxima da nossa, o Tiago agarrava-se à Dora e beijava-lhe o pescoço. Desviei o olhar, sentindo uma pontada esquisita no peito. Devia ser do sono, estava a baralhar-me as sensações.

- Só é pena não ter nada naquela cabecinha – sentenciou e com isso terminou a conversa sobre o Tiago.

Ela tinha toda a razão.

- Patrícia, quando é que vamos embora? – Perguntei, a fingir mais cansaço do que aquele que realmente sentia.

- Porquê?

- Quero ir para casa – expliquei. – Estou cansada.

Ela respondeu muito depressa:

- Estamos quase a ir embora.

Depois virou costas e sumiu-se na escuridão.

A discoteca já estava mais vazia, mas o calor continuava. Acomodei-me no banco, a pensar se deveria ir buscar outra bebida. Pelo menos ajudava a distrair e a passar o tempo. Com a Patrícia o "quase a ir embora" significava, à vontade, mais uma hora.

Mas ao contrário do previsto, quinze minutos depois, a Patrícia tornou a aparecer e trazia o Pedro, abraçado à amiga da Dora.

- Olha Ana, o meu carro está cheio. Vou levar o Miguel, pois ele perdeu a boleia. Assim, fico com o carro cheio. Como queres ir já embora, estive a falar com o Pedro e ele diz que não se importa de te levar no carro dele, pois também vai para Faro. Vais com o Pedro, está bem?

Não gostei, mas esforcei-me por continuar com a minha cara simpática de sono.

- Com o Pedro?

Olhei para o rapaz que não me pareceu nas melhores condições para conduzir. A Patrícia percebeu a minha preocupação.

- Sim, mas não é ele que vai a conduzir. O carro até nem é dele. Vais com ele, está bem? Não te importas?

- Não...

Mas importava-me. Acabava de me passar uma rasteira e fiquei aborrecida, mas a Patrícia nem se apercebeu, nem eu reagi de maneira a que se apercebesse e ficou tudo resolvido. Eu iria com o Pedro para casa... Contando que a viagem se fizesse sem sobressaltos, pois ainda tinha vinte quilómetros que me separavam da minha cama.

Levantei-me e segui o Pedro e a amiga da Dora, enquanto procurava o cartão da discoteca e o dinheiro para pagar. O João juntou-se ao Pedro e, atrás dele, vinha o Tiago, cambaleando, a cara a escorrer suor. Logo a seguir apareceu o Luís que saltou para cima do Tiago, que o levou até às caixas às cavalitas.

Quando alcançámos o parque de estacionamento, reparei que a Dora não vinha connosco. Contei quantos éramos para um único carro: seis. E se a namoradinha do Tiago resolvesse aparecer, seríamos sete. Lindo! Adivinhava uma aventura até Faro.

O Pedro parou junto a um Toyota vermelho. Puxou a loira para si e começou a beijá-la. Envergonhada, estaquei e virei a cara. Os outros três chegaram em grande algazarra, tão bêbados que pareciam arrastar na gritaria uma nuvem de álcool por cima das cabeças. O João saltou para apanhar as chaves que o Tiago lhe atirava, mas o João parecia menos sóbrio que o Pedro. Fiquei aflita.

- É o João que vai conduzir? – Perguntei ao Pedro.

Como tinha interrompido um caloroso beijo, olhou-me contrariado.

- Sim. Porquê?

- Porque ele não está em condições de levar o carro.

- Mas eu também estou bêbado.

- Então, será melhor eu levar o carro. Tenho carta e não bebi nada.

- O carro é do Tiago e é ele quem decide.

Ia retomar o beijo, mas eu puxei-lhe pela t-shirt.

- Diz ao João para me dar as chaves.

- Ouve lá! – E foi tão brusco que dei um passo para trás. – O João trouxe-nos e vai levar-nos de volta. Está habituado a conduzir bêbado. Estás com medo de quê?

- É uma grande responsabilidade – gaguejei.

- Se não apanharmos a bófia, está tudo bem. Agora, desaparece!

Senti um par de mãos a empurrar-me e fui para o automóvel, como se subisse para o cadafalso. Os berros do Luís zuniram-me nos ouvidos. Quando entrei no carro, ouvi a voz do Tiago:

- Olá! A Ana também vai connosco?

Acomodei-me no banco traseiro, entalada entre o Pedro e a loira, que não paravam de se beijar, e o Luís. O João lançou um comentário ordinário e eu só queria desaparecer dali. Fiz as contas: provavelmente aquele pesadelo não levaria mais do que quinze minutos. Assim que chegássemos à entrada de Faro, pediria que me deixassem sair. Iria a pé para casa. Era preferível atravessar as ruas desertas da cidade, a continuar com aquela companhia.

Fecharam-se as portas. O João ligou o motor com as mudanças engatadas e o automóvel deu um solavanco. Gritei, mas o meu grito diluiu-se no meio das gargalhadas.

Arrancou, muito devagarinho. Era preciso ter cuidado com os outros automóveis estacionados. O Tiago ligou o rádio e meteu o volume no máximo. Fiquei surda com aquele som infernal, que não parecia pertencer a uma música normal, apenas ruído arranhado de uma guitarra elétrica. Fechei os olhos no momento em que o João levou o Toyota para o asfalto. Quando os tornei a abrir, o Tiago olhava para mim. Estava sério e algo dentro de mim estalou e o meu coração bateu com força.

- Eh, espanhol! – Chamou o João eufórico. – Agarra aqui no volante.

O Luís incitou-o:

- Vá lá, espanhol! Não vês que o rapaz não está em condições de conduzir? Vai já para o lugar dele!

O Tiago desapertou o cinto. O João fez o mesmo.

- Mas vocês perderam o juízo? – Disse, mas ninguém me fez caso.

Ao meu lado esquerdo, a rapariga loira soltou um gemido. O Pedro tinha uma das mãos dentro do vestido dela e apalpava qualquer ponto escabroso. Corei escandalizada.

O Toyota deu uma guinada e ficou no meio da estrada. Rolava a uma velocidade considerável, engolindo os traços brancos da estrada uns atrás dos outros. O Tiago tentava alcançar o volante e o João passava por cima dele a rastejar para o outro banco. Enquanto faziam aquele espetáculo de contorcionismo em pleno andamento, riam-se às gargalhadas, engasgando-se e soluçando, como dois bêbados estúpidos sem juízo. O Luís ajudava à festa, puxando pelo João e empurrando o Tiago.

- Cuidado! – Gritei desesperada.

Mais uma vez, ninguém me fez caso.

A Patrícia ia ouvir-me amanhã, se saísse dali inteira!

O Tiago chegou ao volante, esticou as pernas e ajeitou os pés nos pedais. O Toyota guinou para a direita, ocupando a faixa na estrada que lhe pertencia. Suspirei, relativamente aliviada. O João tentava sentar-se no banco, rindo de encontro ao tecido, enchendo-o de baba. O Luís ria-se como um macaco e começava a irritar-me seriamente.

- Eu queria chegar a casa ainda hoje – exigi.

Como das outras vezes, ninguém me fez caso.

A loira estava quase despida e gemia debaixo do Pedro. E o automóvel voava na estrada, a engolir voraz traços brancos. Tentei perceber o caminho que estávamos a levar, mas o Luís tapava-me a visão, pulando por cima de mim, metendo-se com o casal apaixonado, despenteando o Pedro, pedindo que se acalmasse. O João tentava encontrar a extremidade do cinto para prendê-lo, balbuciando que tinha de pôr o cinto, pois não queria ser multado.

Nisto, uma travagem brusca. Os pneus derraparam e, para piorar, o João puxou o travão de mão. O Toyota rodopiou e eu julguei que nunca mais iria parar. O Pedro e a loira vieram para cima de mim e eu fui para cima do Luís. O João engasgou-se de tanto rir. O Tiago gritava.

- Quero sair daqui – pedi em pânico, a empurrar o Luís para a porta.

Nas minhas costas sentia as mãos do Pedro que apalpavam desenfreadamente a loira que arfava como se estivesse com asma.

O automóvel parou. O João tentou levantar-se, assentou o cotovelo no volante e tocou na buzina, desatando a rir como um louco por estar a fazer estardalhaço àquela hora tardia. A loira gemeu alto e estiquei o braço, para tentar abrir a porta, mas o Luís estava no meu caminho.

- Luís, 'bora dar um mergulho – convidou o João, enquanto pateava a porta, como se fosse possível abri-la com os pés enfiados nos sapatos.

- 'Bora – aceitou o Luís, procurando pelo puxador.

- Mergulho? – Murmurei admirada.

O Tiago saiu do automóvel. O João lá encontrou a maneira de abrir a porta com uma das mãos. Ao sair tropeçou e ficou com as pernas em cima do banco e a cara do lado de fora, enfiada na areia.

- Então, João? O mergulho é na água – disse o Luís agarrado à porta meio aberta.

Empurrei o Luís para que saísse mais depressa, porque o Pedro tinha acabado de arrancar o vestido à loira e eu já não suportava estar a levar com o peso dos dois apaixonados.

A brisa marítima bateu-me na cara e tentei focar o olhar na escuridão para me situar. Ouvia ao fundo o barulho do mar e reparei que estava em cima de areia da praia. Uma sensação de impotência assaltou-me e tremi de medo.

- Onde... Onde é que nós estamos?

O João e o Luís desataram a correr em direção ao mar, guinchando como pavões. O Tiago espreitou para dentro do automóvel, desligou o motor, guardou as chaves. Sorriu ao verificar que o amigo Pedro estava bastante entretido com a loira e ainda sorria quando olhou para mim. Inesperadamente, estendeu-me uma mão.

- Anda nadar... Tiramos as roupas e mergulhamos todos nus no mar. Já alguma vez nadaste nua?

O convite era inacreditável. Provavelmente noutra ocasião, menos angustiante, seria irrecusável, mas eu não estava bem sintonizada e não me apercebi do momento que me era oferecido. Recusei irritada:

- Eu não quero ir nadar, quero ir para casa!

- Não gostas de nadar?

- Quero ir para casa – insisti. – O que faço eu aqui? Eu nem vos conheço!

O Tiago enfiou as mãos nos bolsos das calças. Aproximou-se de mim.

- Não podemos ir... Temos de esperar que eles acabem.

O Toyota abanava docemente ao sabor da paixão do Pedro e a loira gemia por cada abanão. Senti as faces a escaldar, de vergonha por aquilo estar a acontecer ali, tão perto de mim e afastei-me. O Tiago veio atrás de mim.

- Sempre é melhor estarmos na praia e deixá-los à vontade, do que estarmos dentro do carro, com eles, enquanto te levava a casa. Não achas?

Não lhe respondi, não tinha resposta para aquela pergunta. E o que eu achava tinha algum peso, naquele bando de idiotas?

- Tu não gostas de mim, pois não?

Olhei-o. Encolhi os ombros. Sinceramente, não me apetecia conversar com ele, mas o Tiago prosseguiu:

- O que é excelente, no meu caso... Preciso que me odeies.

- O quê? – Murmurei.

- Porque eu mereço o teu ódio. Não passo de um palerma. Devia ter-te protegido e levado a casa. Em vez disso, trouxe-te para a praia com um grupo de outros palermas bêbados como uma adega, enquanto outro palerma come uma gaja qualquer dentro do meu carro. Que tal? Parece-te um motivo razoável para me odiares?

- Mas fazes as coisas para que sejas odiado? Esse João e os outros parecem gostar de ti por fazeres, precisamente, essas figuras lamentáveis. Beber até cair... Engatar miúdas...

- Isso incomoda-te?

- Incomodar-me com o que tu fazes? Não, nem um bocadinho... O que é que eu tenho a ver contigo?

Mas o Tiago notou que eu importava-me.

- Ah... Odeias-me. Eu sabia.

- Cala-te, estás bêbado.

Inclinou-se para mim, com aquele sorriso angelical, uns olhos brilhando como se duas estrelas tivessem caído do céu e ido alojar-se naquele rosto divino.

- Não estou tão bêbado como pensas...

- Finges muito mal.

- Estás zangada comigo.

- Estou! Podes ter a certeza que estou. Estou zangada com vocês todos!

- Tu também finges muito mal.

Perguntei-lhe indignada:

- Porque é que dizes isso?

- Estás zangada com todos, menos comigo.

- Ah! Convencido!

- Porque estou aqui contigo e faço-te companhia. Podia estar a nadar no mar, com os meus amigos.

Ouviam-se gritos e chapinhar na água, à mistura com o som inconfundível da rebentação das ondas.

- O que é curioso... Odeias-me e não estás zangada. De alguma maneira, estou a confundir-te.

- Estás bêbado – tornei e afastei-me dele, que me estava a ler com tanta clareza que me assustava.

- Pensas que te estou a engatar?

- Se tenho que jogar o teu jogo para ir no teu carro para casa...

- Sim, nena?

- Prefiro ir a pé!

Ele desatou a rir. Mas ficou muito sério e disse de rajada:

- Sou um criminoso, sabes?

Estaquei, admirada com a confissão.

- Toda a gente bebe... e conduz – disse, como se pretendesse consolá-lo, apagar-lhe a mancha daquela súbita e inusitada culpa.

- Os criminosos são pessoas desprezíveis, não concordas?

- Talvez...

- Dá-me uma resposta sincera.

- Sim – afirmei, pouco convicta. – Os criminosos são pessoas desprezíveis.

- Muito bem. É isso mesmo que quero ser: um desprezível!

E disse aquilo com orgulho, cruzando os braços, os gestos dissimulando um encanto nobre que desesperadamente escondia atrás de fingimento, ou de álcool, ou de uma atitude que não se encaixava inteiramente na sua personalidade, porque o Tiago não era quem aparentava ser.

Franzi o sobrolho. Ele encarava o mar, na escuridão do horizonte.

Uma rajada de vento morno varreu o local. Mexeu-me com os cabelos e causou-me arrepios. Estranho, se o vento até nem era frio... Um silvo passou-me por cima da cabeça e olhei instintivamente para o céu. Não vi nada de diferente. As mesmas estrelas e a mesma lua brilhante continuavam pregadas no firmamento. Nisto, ouvi uns passos atrás de mim, junto ao carro.

- Otousan!

A voz do Tiago fez-me reagir. À frente dele estava um homem, ligeiramente mais baixo, cabelo negro esquisito, espetado para cima, uma expressão ameaçadora no rosto. Sermos atacados no meio de nenhures era só que faltava para acabar a noite em glória. Olhei para todos os lados. Mas como tinha o homem aparecido ali? Era como se tivesse vindo do nada.

- Encontrei-te, finalmente – disse o homem, em castelhano. E aquelas palavras ressoaram nos meus ouvidos, familiares...

O Tiago não respondeu.

- Há horas que procuro por ti. Julgavas que me escapavas esta noite? De mim, não foges. Conheço-te demasiado bem e sei como encontrar-te. Para a próxima, esconde-te melhor!

E desferiu um soco nos queixos do Tiago, tão potente que este voou alguns metros e acabou por cair a meus pés.

- Tiago! - Gritei.

Ajoelhei-me e tentei amparar-lhe a cabeça, mas ele foi mais rápido e soergueu-se, apoiado nos cotovelos. Um fio de sangue escorria-lhe do lábio inferior. Cerrou os dentes e os olhos brilharam de raiva.

O homem que nos atacava aproximou-se. Enchi-me de coragem, pus-me à frente do Tiago, abri os braços e disse, a disparar as palavras como se a minha boca fosse uma metralhadora:

- Quem é você? Você não tem o direito de bater assim nas pessoas! Mas o que é isso? Aparece vindo do nada e começa a distribuir pancada, assim sem mais, nem menos? Olhe que isso é uma ofensa grave e eu posso chamar a polícia e você vai dentro.

- Sai da minha frente! – Berrou o homem.

Eu tremia toda, mas defender o Tiago parecia-me a coisa mais acertada a fazer.

- Não saio nada da frente – ripostei.

- Ana, espera...

- Sai da minha frente! - Insistiu o homem e mostrou-me um punho.

Não me mexi. Acho que não era capaz de me mexer, mesmo que precisasse. O pavor tinha congelado os meus movimentos e aquilo que parecia uma coragem louvável, não passava agora de uma consequência parva de um momento de loucura.

- Não me ouviste? – Tornou o homem, furioso.

Guardei o ar nos pulmões. Iria até ao fim daquilo!

- Ouvi, mas não saio. Mas você conhece-nos de onde? Vá-se embora. Deixe-nos em paz!

- Ana, ele é o meu pai.

Olhei espantada para trás.

- O teu pai?

O Tiago confirmou, mais calmo:

- Sim.

O pai do Tiago ordenou autoritário:

- A festa acabou. Vamos para casa!

Ajudei o Tiago a levantar-se, ou assim julguei, porque ele aceitou a minha mão e pareceu apoiar-se em mim para se pôr de pé. O pai dele dirigiu-se ao automóvel.

- Estás bem?

O Tiago não me respondeu.

Era a minha oportunidade de fechar aquela noite. Pedi:

- Achas que o teu pai me pode levar a casa?

- Claro.

O pai do Tiago abriu a porta traseira do Toyota e puxou os dois apaixonados com brusquidão, fazendo-os rebolar na areia. Virei a cara para não presenciar aquela cena embaraçosa. O Pedro protestou, a loira gritou, mas o pai do Tiago, imperturbável, ocupou o lugar ao volante.

O Tiago não falou mais.

O silêncio dentro do automóvel incomodava, mas não me atrevi a pedir que ligassem o rádio, para disfarçar o ambiente pesado com uma música, nem que fosse num volume baixo. O Tiago parecia-me zangado com o pai e vice-versa. Não ousei interferir mais, porque já tinha interferido que baste, quando me intrometera entre os dois. Mas eu não fazia ideia que aquele homenzinho ameaçador era o pai dele! E se o soubesse, repetiria a proeza? Sorri. Sim, defender o Tiago era uma ação que eu não sabia explicar totalmente.

Olhei pelo vidro da janela e assustei-me. Agarrei-me ao banco. O carro voava literalmente na estrada. Os candeeiros, as árvores, os rails metálicos de proteção, os sinais de trânsito, as casas, os outros carros, passavam por nós numa velocidade impossível. Fechei os olhos e comecei a contar baixinho, muito devagar, para me distrair.

À entrada da cidade dei indicações breves de como chegar até à rua onde morava, mas o Tiago continuou mudo. Quando finalmente cheguei à porta de casa, dizia que era mentira. Não sabia se tinha sido por sorte ou por perícia do condutor, mas a viagem decorrera sem incidentes. Saltei do carro, agradeci a boleia e despedi-me do Tiago, que nem se dignou em esforçar um sorriso.

- Vamos, vai para casa – ordenou o pai dele com secura.

Sem olhar para trás, corri para a porta do prédio, abri-a e entrei apressada. Vi o Toyota vermelho afastar-se e pensei naquilo que o Tiago queria ser: desprezível!

Para mim não o era. Nem depois daquela noite...

Fim de entrada.


I.2. Pai contra filho

Bulma contava as estrelas para ver se o tempo passava mais depressa. Vegeta tinha saído havia uma eternidade atrás de Trunks e ainda não voltara. Deitara Bra e depois colara-se ao vidro da janela da sala-de-estar à espera de ver aparecer o Toyota vermelho.

Estava tudo a correr mal! Bulma apertou os punhos furiosa, deixou as unhas cravadas na palma das mãos. A máquina das dimensões estava atrasada, Vegeta andava implicativo e mal-humorado, Bra estava a ficar inquieta e rebelde.

E havia Trunks...

Pois, Trunks era o principal problema.

O filho mudara muito desde que tinham entrado naquela dimensão. Nos primeiros dois meses, levara uma vida de eremita. Raramente saía do quarto, não comia, não queria ver ninguém. Nem mesmo Maron que aparecera algumas vezes, mas que tinha deixado de vir ao ver o afastamento dele.

Depois, Trunks resolvera embarcar por um caminho perigoso de revolta e de contestação. Perigoso para ele e perigoso para todos, já que naquela embrulhada estavam todos ligados. O que um pudesse fazer, afetaria os demais. Trunks passara a sair de casa, de dia e de noite, conhecera um sem fim de gente, fizera amizades com rapazes nada agradáveis. No início, Vegeta entrara em pânico, porque ninguém sabia o que significava interagir e interagir era assunto proibido. Para cúmulo, Trunks fartava-se de anunciar que queria ficar ali para sempre, o que irritava seriamente o pai. Quando o assunto da máquina das dimensões vinha à baila, comentava que lhe era indiferente se a máquina ficasse concluída ou não. Para ele, no fim dos doze meses, a Dimensão Z seria apenas um sonho de uma outra vida.

Trunks queria ferir porque se sentia ferido.

Bulma recordou como tinha começado aquela noite.

A seguir ao jantar, Trunks agarrara nas chaves do automóvel. Vegeta aparecera atrás dele, braços cruzados e perguntara-lhe:

- Onde pensas que vais?

- Vou interagir.

Vegeta zangara-se.

- Isso não é resposta que se dê!

- Isso não é pergunta que se faça.

Bulma aparecera na sala, adivinhando uma nova discussão. Era sempre assim quando Trunks saía de casa.

- Tu precisas de uma boa lição, miúdo – dissera o príncipe com a voz afetada.

- Então porque é que não me dás essa lição que te fartas de prometer?

- Se estás tão ansioso, vamos já lá para fora.

- Vegeta! – Chamara Bulma.

- O que foi?

- Deixa-o ir embora.

- Nem pensar! Ele vai outra vez ter com os imbecis dos amigos dele desta dimensão.

- E depois?

Trunks olhara para ela com uma expressão cómica no rosto. Devia achar piada ver a mãe defendê-lo, quando lhe dizia que o comportamento dele era irracional, despropositado e infantil.

- Nós não podemos interagir com ninguém da Dimensão Real – respondera Vegeta agitado.

- Conviver com as pessoas da Dimensão Real não é interagir. Já descobrimos isso.

- Nós não sabemos o que é interagir.

- Precisamente.

- Como é que sabes que ele ainda não interagiu com algum deles? Neste momento, o feiticeiro poderá já ser um deus, imortal e invencível. E esse maldito será o dono do Universo e irá dar cabo de nós por causa deste palerma.

- Se Trunks tivesse interagido com alguém da Dimensão Real, nós não estaríamos aqui, mas na Dimensão Z.

Trunks bocejara, indiferente. A discussão perdera a emoção que prometia ter quando o pai desistira da luta. Era um frouxo, nas mãos da mãe. Dirigia-se para a porta quando Vegeta dissera:

- Foi por causa dele que nós viemos parar à Dimensão Real e será por causa dele que iremos ser derrotados pelo feiticeiro.

Trunks parara. Bulma sentira o coração disparar.

- Nani?

Vegeta mostrara um dos seus sorrisos vingativos.

- Não sabias? Nunca ninguém te disse que estamos na Dimensão Real por causa de ti?

- Não... Que parvoíce é essa? Foi Zephir que nos enviou para a Dimensão Real com um feitiço.

- E com um feitiço sobre quê?

Trunks ficara atrapalhado. Vegeta explicara:

- Não sabes? Com um feitiço sobre sangue de amizade. Sobre o sangue de Goten que tu derramaste.

- Não... Não é verdade.

- É verdade, sim. Pergunta a qualquer um dos que estiveram lá. Pergunta a Kakaroto, a Piccolo ou a Gohan. Pergunta-lhes e eles dir-te-ão isto: Zephir enviou-nos para a Dimensão Real ao enfeitiçar um tubo de ensaio cheio do sangue de Son Goten, obtido da ferida mortal que tu lhe fizeste.

Bulma vira como o rosto do filho se contorcera enjoado. Mas quando tentara dizer alguma coisa que amenizasse os estragos feitos, já ele tinha saído porta fora. Vegeta afastara-se a comentar:

- Ele estava a pedi-las...

A seguir, Bulma correra atrás de Vegeta a gritar-lhe se não tinha vergonha de atiçar ainda mais a fogueira, quando também ele se poderia queimar nela. Vegeta batera-lhe com a porta do quarto na cara. Bulma esmurrara e pontapeara a porta irritada com ele, com Trunks, com o mundo. Irritada com aquela situação ingrata e desesperante, onde não se via uma luz ao fundo do túnel. Quando se apercebera, Bra estava a olhar para ela, no cimo das escadas.

Refugiara-se na cozinha e aí vertera as suas lágrimas. Passado um tempo sem fim, ouvira Vegeta sair. Tinha ido atrás de Trunks. Não soubera então se deveria sentir-se aliviada, se preocupada. Sabia, isso sim, que se sentia infeliz.

***

Ouviu o roncar do motor de um automóvel a cortar o silêncio da noite. Colou a cara ao vidro da janela e descobriu o Toyota vermelho. Chegavam.

A porta da rua abriu-se. Vegeta empurrou Trunks que entrou em casa aos tropeções e a rir como um demente.

- Calma, 'tousan! Calma...

Vegeta bateu com a porta. Cruzou os braços e observou irritado o teatro que o filho fazia, simulando um andar cambaleante e uma alegria despropositada.

- Trunks, estás bem? – Perguntou ela ao reparar no sangue que o filho tinha no lábio inferior.

Trunks fez o "V" de vitória com os dedos.

- Tudo fixe!

- Fixe?

- Já chega! – Interrompeu Vegeta com brusquidão. – Vai para o quarto.

- Mas eu não tenho sono, 'tousan! E... Oh, ainda não te contei o que aconteceu hoje.

- Não me interessa! Para o...

- Hoje conheci uma loiraça muita boa chamada Dora e conheci a Ana, que não gosta nada de mim. Ah, mas tu conheces a Ana... Foi aquela que se meteu na tua frente, na praia. Ahn? O que me dizes àquilo? A gaja é doida para meter-se à tua frente. Não achas, saiya-jin?

A linguagem vulgar do filho chocou Bulma.

- Trunks!

Vegeta acercou-se ameaçador. Trunks largou uma gargalhada estridente e elevou os punhos.

- Queres lutar? Vamos lutar, 'tousan.

- Baka! Nem mereces o meu esforço – respondeu, medindo o filho da cabeça aos pés.

- Luta comigo, 'tousan. Vá! Parece-me que te devo um soco.

- Não. Deves-me dois socos.

- Dois?

Trunks apanhou com o punho do pai em cheio na boca. Perdeu o equilíbrio e estatelou-se no chão.

- Tens razão, 'tousan. São dois!

Levantou-se, chamou Vegeta com um aceno provocador.

- Vamos, 'tousan! Ataca... Agora já estou preparado

Bulma tentou interpor-se entre pai e filho.

- Não, espera...

Mas não foi a tempo. Vegeta investiu. Primeiro, uma cotovelada no estômago deixou Trunks sem ar. Depois derrubou-o com outro soco na cara, fazendo-o embater numa estante que caiu, espalhando livros e peças de decoração.

Vegeta ia continuar a bater em Trunks se Bulma não fosse mais rápida e lhe alcançasse um braço. Puxou-o.

- Não! Não vês que ele está a sofrer?

- Bah! Ele já apanhou com golpes muito piores do que estes e levantou-se sem nenhum problema. Ele é um saiya-jin!

- Por dentro, Vegeta – explicou Bulma triste. – Por dentro...

Trunks limpou o sangue que corria do nariz, levantou-se apoiando-se nas costas do sofá. Bulma quis abraçá-lo, dizer-lhe para soltar o sofrimento, pois só assim libertaria a alma e a lavava da culpa atroz que a carcomia. Mas Trunks ainda não estava preparado para a catarse, nem mesmo depois dos socos de Vegeta. Por isso, mandou-o embora.

- Vai-te deitar. Estás... Pareces cansado.

Quis parecer divertido, cobrindo a mágoa com a máscara que usava naquela dimensão. Trunks fez uma continência desajeitada, o corpo inseguro por causa do álcool e da sova.

- Hai, okaasan! Às tuas ordens!

Só quando ouviu a porta do quarto do filho fechar-se, no piso de cima, é que Bulma soltou o braço de Vegeta. Ele olhou-a irritado.

- Acaba o raio da máquina, Bulma! Acaba-a, senão enlouqueço!


I.3. Adaptação

Era verão. A estação dos dias soalheiros, das noites agradáveis.

Son Goku sempre gostara muito do verão e agora via-o como era noutra dimensão. Não era assim tão diferente. O calor, a cor macilenta das paisagens, os céus muito azuis, o hálito quente do vento a bater nos rostos, a preguiça contagiante da natureza.

Observava calado o mundo que a janela da casa que habitava deixava ver. Era uma casa velha, feita de madeira pintada de cores vivas que os ares fortes do mar tinham desbotado, pequena e nada cómoda, com apenas duas divisões parcamente mobiladas, situada numa ilhota de areia muito clara e fina. Perto da casa tinha o mar e o marulhar das ondas distraía-o e punha-se a pensar.

Algum dia iriam regressar à Dimensão Z?

Queria crer que sim. Não desgostava inteiramente da Dimensão Real, mas saber que ao fim de doze meses naquela dimensão perderia todos os poderes que tinha como guerreiro angustiavam-no.

O aviso de Zephir cirandava constantemente na sua mente.

"Se ficarem na Dimensão Real mais do que doze meses, ficarão nesse lugar para sempre. Eu venço. Se quiserem sair da Dimensão Real, terão de interagir com alguém dessa dimensão e eu transformo-me num deus. Mais uma vez, eu venço".

Bom, pelo menos tinham Bulma a trabalhar na máquina das dimensões e ainda podiam dar-se ao luxo de alimentar alguma esperança. Mas já se tinham passado seis meses e os progressos eram lentos ou, segundo o que Kuririn lhe contava, quase nulos. Suspirou. Zephir estava, de facto, a vencer e ele ali, sem poder fazer nada.

Teria de forçosamente esperar, mas a paciência nunca fora o seu forte. Não adiantava zangar-se, gastaria energias inutilmente. Iria aproveitar a estadia na Dimensão Real, conhecer melhor aqueles sítios e prosseguir os treinos de Ubo.

No entanto, a sua relação com Ubo mudara. Tornara-se pesada, perdera a naturalidade. Agora, sempre que falava com o seu pupilo, quando o treinava, todos os momentos que passavam juntos, tinham um toque de artificial.

Há seis meses atrás, saíra da casa de Bulma usando a Shunkan Idou e encontrara Ubo naquela casa. Os dois tinham-se entreolhado, calados. O rapaz não dissera nada e ele também não quisera entrar em discussões. Estava triste porque tinha acabado de deixar Chi-Chi a chorar desconsolada no abraço de Gohan por causa da morte de Goten. Bem que tentara sossegá-la, mas ela enxotara-o e ele tinha ido embora. Depois, vira-se diante de Ubo. Sem forças para aguentar mais emoções, com o corpo a ressentir-se dos ferimentos, dissera que o melhor que faziam era dormir, porque estava cansado. Ubo nem refilara e também se deitara. E, apesar da fadiga, Goku não conseguira pregar olho nessa noite.

No dia seguinte, explicara a Ubo onde estavam e apenas isso. Não lhe mencionara o nome de Zephir, pois não o podia fazer, essas tinham sido as ordens de Dende, nem lhe contara sobre os combates.

Ubo não lhe perguntara nada, limitara-se a escutá-lo e abrira-se dessa forma um abismo entre os dois, onde por vezes se estendiam pontes que possibilitavam o diálogo e os treinos.

A porta da rua abriu-se com a habitual chiadeira. Ubo apareceu.

- Sensei, trouxe-lhe uma surpresa.

Goku esqueceu a janela e os seus pensamentos.

- Uma surpresa para mim?

A reconciliação era aparente, contudo.

- Hai. Olhe!

Ubo levantou o braço e Goku viu quatro magníficos robalos, com as escamas a brilhar, ainda a saltitar de vida.

Se havia uma coisa que o fazia deixar para trás todas as preocupações era comida. Os olhos de Goku brilharam.

- Hum! Onde arranjaste isso, Ubo-kun?

- Foi um dos pescadores que mos deu. Estive a ajudá-lo a pintar o barco.

- Hai... Muito bem!

Goku esfregou as mãos de contente.

- Vamos fazer um banquete!

- Vamos assá-los, sensei?

- Claro que sim!

Saiu de casa e começou a encher o fogareiro de carvão para preparar o banquete anunciado. Ubo veio depois com uma vasilha onde colocara os quatro peixes. Com cuidado tirou-lhes os anzóis. Um pescador que passava por ali no seu barco acenou-lhes um cumprimento entusiasta. Goku acenou-lhe de volta.

Apesar de tudo, a Dimensão Real tinha o seu quê de simpatia. Goku pensou que talvez mais tarde iria sentir saudades daquele sítio, daquela gente, daquele céu. Levantou a cabeça e respirou fundo. E daquele cheiro fresco a maresia.


I.4. Um caso perdido

Entrada no meu diário, data: agosto 1996

A tarde estava agradável e fui dar um passeio até à Rua de Santo António, na baixa da cidade, depois do trabalho. Passei pelo quiosque para levantar mais um fascículo de uma coleção que andava a fazer sobre o mundo antigo, dei uma espreitadela na montra de uma livraria, vi quais eram as últimas modas em algumas lojas de roupas.

Era terça-feira e as tropelias do fim-de-semana pareciam incrivelmente longe. No sábado, não conseguira zangar-me com a Patrícia quando me ligara a contar-me que já estava quase a acertar as coisas com o Miguel. Mais uma noite e ficaria tudo resolvido, mas quando me disse que ia buscar-me para mais uma saída, recusei energicamente o convite. Queria descansar. O que fiz durante um longo domingo modorrento e sem história.

Comecei a descer a rua em direção à doca da cidade, para ir apanhar o carro que tinha deixado estacionado junto ao Hotel Eva. Passei pela esplanada do café "Aliança" e olhei de relance para as mesas. Reconheci-o e o coração quis saltar-me pela boca. Chamei, sem pensar realmente no que estava a fazer:

- Tiago!

Abri um grande sorriso quando se voltou para mim. Tinha acabado de chegar e escolhia um lugar para se sentar. Tentei moderar a alegria para não parecer uma idiota.

Naquele fim-de-semana tinha pensado muito nele, preocupada com o que acontecera a seguir com o pai. E o que teria havido antes para o homem aparecer de repente, numa praia do fim do mundo, e ter-lhe batido daquela maneira.

- Olá, Ana.

Uma receção fria, demasiado trivial que ajudou a acalmar o meu entusiasmo.

- Está tudo bem contigo?

- Sim – respondeu-me.

O interesse dele por mim era nulo.

- Ficou tudo bem com o teu pai?

- Ahn?

Olhou-me como se tivesse falado com ele em chinês. Repeti devagar, no melhor castelhano que consegui:

- Ficou tudo bem... com o teu pai?

Sorriu-me com uma sinceridade tão crua, que senti as pernas transformarem-se em esparguete acabadinho de cozer.

- Nada que um bom par de murros não resolva.

A resposta escandalizou-me.

- O teu pai voltou a bater em ti?

- Descansa, que às vezes também consigo bater nele. Naqueles dias bons...

- O quê?

Não conseguia visualizar a cena corretamente. Pestanejei. E enquanto tentava perceber, deixámos de estar os dois sozinhos, o João aparecia.

- Eh... espanhol. Já chegaste? Vieste a horas hoje...

- O teu relógio está atrasado.

Percebi que o tempo precioso que os deuses me tinham concedido com o lindo rapaz dos olhos azuis se tinha esgotado. O João fez um esgar ao reparar em mim e perguntou:

- Andas a comer esta?

- Não.

- Uf! Que alívio! Por momentos pensei que tivesses perdido o gosto.

Pestanejei, novamente, pasmada com aquela breve troca de palavras entre os dois. O Tiago olhou-me a imitar o mesmo esgar.

- Realmente, tenho uma reputação a defender.

O João puxou-o, afastando o amigo de mim, como se fosse importante mantê-lo longe da minha influência.

- A Dora anda à tua procura – disse.

- E devo preocupar-me?

- Deixaste a gaja pendurada na "Kadoc", na outra sexta-feira.

- Ela é que fugiu de mim.

- Não é isso que ela conta...

- Quando ela quiser, sabe onde me encontrar.

- Acho que quando ela te encontrar, vai-te ao focinho... - O João riu-se e então notou que eu não me tinha ido embora. – Oi... Ainda aqui estás?

- Não te lembras dela? Foi connosco para a praia.

- Ah, é essa?

- Eu tenho nome, sabiam?

Parecia que tinha cola na sola dos sapatos. Tentei levantar um pé para o descolar da calçada e terminar com a humilhação, mas o olhar profundamente azul do Tiago era um íman que me mantinha ali presa.

O Luís também aparecia.

- Ora... Temos outra gaja, espanhol?

A conversa decompunha-se rapidamente, como um cadáver exposto à intensa radiação do sol do deserto.

- Esta não é a minha gaja – respondeu o Tiago.

- Mas vê-se que quer molho – observou o João trocista. – Ouve lá, de certeza que não a comeste?

- Já te disse que não.

- Então, o que é que está aqui a fazer? – Perguntou o Luís com desdém.

Estava na altura de acabar com aquilo. O Tiago voltava a desiludir-me. Deixei a esplanada do "Aliança" sentindo-me suja. Mas a culpa era toda minha, porque tinha ficado e insistia na teimosia de querer encetar amizade com aquele anjo de alma negra. Mas o rapazinho até tinha sido sincero: ele queria que eu o odiasse, queria ser desprezível.

Pois tinha-o conseguido e com medalha de ouro!

Nunca mais lhe iria dirigir a palavra. Acabara-se o Tiago naquela tarde.

Quando cheguei ao carro, suspirei de tristeza. Não me conformava.

- Porque é que ele é tão estúpido?

Fim de entrada.

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