6: A Trip to The Moon
Uma das coisas que eu e Romeu sempre adoramos fazer, era, justamente, buscar coisas para fazer.
Juntos, éramos capazes de montar um foguete com papel e fita crepe que consegue rodopiar o cosmos inteiro na velocidade da luz, regressar ao século dezenove para as gravações do primeiro filme do mundo e, em um preto em branco desbotado, viajar até a lua no tiro de canhão de Georges Méliès em A Trip to The Moon, ou discutir sobre a arte e seus efeitos nos solstícios da Terra tomando um chá com Vincent Van Gogh debaixo da sua Noite Estrelada.
A questão era nunca cair na inércia da existência.
Essa era a explicação lógica para o meu melhor amigo ter um laço gigante amarrado na cabeça naquela tarde de sexta-feira, enquanto empunhava uma caixa colorida sobre as pernas cruzadas, com uma expressão de tédio mortal mesclada a pretensões de assassinato direcionada a mim.
Eu me escondia parcialmente atrás do meu caderno de esboços, riscando seus traços na superfície pálida do papel com uma concentração vidrada que já estava fazendo meus olhos fumegarem.
— Parece que eu tô embalado para presente. — ele falou, pela milésima vez nos últimos cinco minutos.
Mordi um sorriso.
— Essa é a intenção. Fica quieto.
— É impossível ficar quieto com um gato de saia me olhando, Julieta. Eu tô ficando com medo. — Desespero fingido converteu seu tom, o rosto se inclinando na direção da Toscana.
Minha felina tinha sentado há tempos sobre o tapete do meu quarto com sua roupinha fofa que eu comorara há uns meses, ao lado de onde Romeu estava, para ficar nos observando com ar de reprovação. Era como se estivesse pensando sobre como éramos dois desocupados que deveriam estar fazendo algo de útil, ao invés de ficar colecionando idiotices.
Suspirei após um minuto ou dois, deixando o caderno com o esboço pronto e o lápis descansarem ao lado da minha coxa, e me joguei contra o chão. Em instantes, Romeu se encaixou ao meu lado, seu braço imprimindo minúsculas faíscas contra o meu, enquanto nossas respirações se mesclavam à ópera que reverberava da vitrola de Romeu sobre a minha escrivaninha.
Nunca tínhamos escutado ópera por livre e espontânea vontade, mas meu amigo teve a ideia de colocar “Ouvir um novo estilo de música” na lista de coisas para fazer que estávamos montando desde quando as aulas do segundo ano do Ensino Médio tinham dado adeus para nós dois, restando apenas o mar infinito de tédio dos novembros.
— Acho que dá para riscar da lista o tópico “fazer um retrato inusitado”. — comentei, inclinando a cabeça para fitá-lo.
Ele me observou de volta, o laço cor de rosa ainda pendendo no topo da sua cabeça. Estiquei a mão e puxei a fita, desenrolando-a das suas ondas escuras para, depois, arremessá-la rumo a algum lugar do cômodo.
Seu nariz se torceu em uma careta, repuxando os minúsculos sinais que polvilhavam suas bochechas.
— Eu sou uma piada para você, Julieta Belmonte? — A pergunta foi risonha.
— De laço, você é.
Seus olhos rolaram, um sorriso tremulando para sair. Ele beliscou de leve minha cintura, espalhando um comichão sob o tecido da camisa que me fez rir de forma automática.
Seus lábios se curvaram em sugestão, e o ato me fez temer pela minha vida diante do que poderia significar.
— Não ouse.. — Mal terminei a frase, porque um ataque de riso explodiu na minha garganta diante da torrente de cócegas que seus dedos frenéticos infiltraram na minha pele, o braço passando ao redor do meu tronco para alcançar mais de mim com o toque hilariante.
A questão é que, apesar de não parecer, Romeu também sentia cócegas. Porém, eram em partes muito específicas do seu corpo, que precisei de bastante tempo para descobrir onde ficavam e usar isso contra ele nas nossas batalhas épicas de cosquinha.
Sem fôlego, inclinei-me na sua direção e escorreguei minhas digitais pela lateral das suas costelas, pintando uma trilha descompassada até o seu ombro, que parecia, da forma mais esquisita possível, ser um dos botões para acionar risadas eufóricas nele.
O garoto se contorceu levemente, preenchendo o ar com sua gargalhada única no mundo, que fazia nuvens macias de calor abraçarem meu coração sempre que a ouvia.
Sua mão se afrouxou na lateral da minha cintura, conforme nossos risos mesclados eram engolidos gradativamente pela música feita de acordes harmônicos ao fundo, em contraste com o retumbar em disritmia do meu coração.
O ar lhe escapava em sopros curtos por entre os lábios semiabertos, desmanchando seu calor contra meus poros enquanto o verde salpicado de castanho das íris derramava sua dissonância sobre mim.
Ele sorriu, resvalando a palma rumo à minha coluna para me puxar até que nossos quadris se esbarrassem, e sua perna passou por cima das minhas em um aperto firme que nos fez parecer uma espécie de casulo humano.
— Prendi você, tipo um polvo.
Meu riso ecoou abafado contra sua camisa, enquanto me sentia sufocar com o amontoado de calor que pesava junto ao aroma cítrico da colônia impregnada no tecido.
— Isso é abusivo, sabia? — brinquei.
Sua garganta vibrou com uma risada.
Por um momento, apenas ficamos ali, respirando um ao outro debaixo dos tímidos feixes de luz desbotada que adentravam pela minha janela aberta, cuja ventania fresca que preludiava o fim da tarde sacudia suas finas cortinas em uma dança suave.
Os volteios do mar ao longe eram baixos, mas perceptíveis, misturando-se à música de Bahr que ecoava em meio aos giros orbitais do vinil com todo o seu barroco clássico. Sentia-me transbordando dentro de mim mesma em proporções marítimas sob a percepção do quanto fazia sentido estar ali, com o sol, as ondas e Romeu.
Sempre fez, de um jeito único em todo o universo.
— Minha tia perguntou das minhas paqueras hoje. — murmurei, sem conter um riso baixo.
Romeu me libertou do seu aperto, imprimindo uma pequena distância entre nós para me fitar.
— Ela não sabe do seu plano de não-paixão? — Seu tom foi descontraído.
— Claro que não. — Ri. — Os únicos que sabem são você e a Laura.
Sua boca se curvou rapidamente, antes de voltar a traçar uma linha reta. Ele me observou por um instante, e novamente pareceu que estava pensando em falar algo, mas não possuía certeza se deveria fazê-lo.
— Você ainda meio que sente algo pelo Jader? — A pergunta soou ligeiramente receosa, embora seu sacudir de ombros denunciasse esforço em fazer com que parecesse casual. — É que tipo, ele é tão alto, engraçado, surpreendente e essas coisas. Não ficaria surpreso se ainda mexe com você e tal.
Ergui as sobrancelhas em ceticismo.
— Ele é o meu primo, Romeu. — Ultraje inundou as sílabas. — Eu era meio caidinha por ele até, sei lá, meus dez anos. Depois disso, desencanei de verdade.
— Ah, sim. Tudo bem. Só fiquei curioso.
Meus lábios se curvaram em um sorriso sugestivo.
— Sentiu ciúmes do Jader?
Seus olhos se arregalaram tanto que, por um momento, pareceu que iam saltar das órbitas.
— O quê? Não! Não, mesmo. Eu não sou ciumento, você me conhece. — entoou, com uma convicção frenética.
Soprei um riso, impulsionando o tronco para me levantar do tapete. Meus dedinhos do pé roçaram em sua maciez, cobertos por um par de meias até os meus joelhos que visavam imitar patos, com duas listras cor de mostarda até a metade dos pés para os bicos e orbes pretas próximas aos meus calcanhares. A rótula do meu joelho direito possuía um curativo recém colocado para esconder o ralado imenso que ganhei fazendo manobras de patins sem equipamento de proteção.
— Certo. Não tá mais aqui quem sugeriu esse absurdo. — Estiquei os braços, alongando minha coluna sob a camiseta do Nirvana que chegava até o fim das minhas coxas. — Quinta é dia de filme de quê, mesmo? — questionei, referindo-me ao tópico da lista sobre assistirmos um ou dois gêneros diferentes de filme para cada dia da semana, exceto pornô, por motivos óbvios.
Romeu bocejou ruidosamente, e, já de pé ao meu lado, começou a caminhar para fora do quarto.
— Comédia romântica.— respondeu, ganhando o corredor.
Fui atrás dele, acompanhando seus passos rumo ao andar de baixo. Assim que terminamos de descer os degraus, as vistas do cachorro deitado no sofá pousaram sobre nós e, de imediato, Salsicha levantou e se posicionou atrás de mim, formando um pequeno trem até a cozinha de dois humanos e um espécime canino.
Encostei-me na bancada ao lado da pia e o cão saltou na minha perna, colocando a língua para fora na esperança de receber um afago.
Escorreguei os dedos na pelagem caramelo por entre suas orelhas, e um sorriso involuntário riscou minhas bochechas ao ver a felicidade do animal.
Desviei a atenção para Romeu, observando-o encher um copo de água no filtro suspenso. Sua palma pressionava de leve o recipiente, evidenciando as poucas veias saltadas que riscavam a pele abaixo dos nós das suas mãos, escorregando até os antebraços em uma trilha semelhante aos caminhos bonitos de um mapa.
— Algum título de comédia romântica em mente, ou a gente vai ter que pesquisar? — inquiri, erguendo as sobrancelhas.
Ele levou a borda de vidro aos lábios, entornando o líquido. Seu pomo-de-Adão escorregou para cima, retornando ao ponto de origem quando engoliu, e o movimento se repetiu mais duas vezes até finalmente esvaziar o recipiente.
— Eu pedi uma sugestão para a Lia, e ela recomendou “Amizade Colorida”. Muito engraçadinha. — Foi sarcástico, enquanto descansava o copo contra o mármore da pia.
Sacudi os ombros, sem ver nada demais em assistir um filme com aquela temática, especialmente um sugerido por Cordélia. A irmã de Romeu tinha um excelente gosto para praticamente tudo, excetuando-se caras e esmaltes de unha.
— Pode ser esse. Tô com preguiça de procurar outro.
Seu riso ecoou, infestando o ar com as notas ritmadas do som.
— Certo, jujuba.
Meia hora depois, já estávamos vendo Mila Kunis e Justin Timberlake contracenando como o casal de melhores amigos que, de súbito, tem a ideia de azeitona de começarem a ficar sem compromisso.
Enquanto assistia, enfiando a mão no balde de pipoca caramelizada que contrastava seu açúcar com o sal da quantidade generosa de bacon que eu enfiara lá dentro, só conseguia pensar no quanto esse tipo de situação era absurda de um jeito hilário.
Minha cabeça estava sobre uma almofada no colo de Romeu, enquanto pelo menos cinco outras se posicionavam ao meu redor, em um projeto de fortaleza ultra resistente e confortável.
— Eu acho que essa pipoca ficaria melhor mergulhada em sorvete. — Ergui os lábios, analisando um dos pálidos grãos estourados preso entre meu polegar e indicador como um cientista diante da sua mais nova criação.
Romeu baixou o olhar para meu rosto, apertando as sobrancelhas em estranheza. E, então, começou a rir, seu corpo se sacudindo em ondas frenéticas que fizeram minha cabeça balançar como se estivesse flutuando no meio de um oceano.
— Ai, meu cerebelo, cacete! É a área responsável pelos movimentos do corpo! — resmunguei.
Um sorriso provocativo se esboçou no seu rosto, e, no instante seguinte, começou a sacudir as pernas propositadamente, bombardeando meu crânio sobre a almofada com os movimentos repetitivos das coxas, até eu impulsionar o tronco para frente e a fisgar do seu colo.
Posicionei o retângulo macio ao lado do corpo, lançando-lhe um olhar de advertência assassina.
— Vou te fazer engolir essa almofada inteirinha, Romeu!
Mais uma vez, ele riu.
— Desculpa. — Não parecia de fato arrependido, enquanto gargalhava freneticamente em meio ao vermelho-tomate do seu rosto.
Depois do filme, disparamos até o banheiro para tirar os resquícios de milho de pipoca dos dentes. Romeu estacionou ao meu lado em frente à pia, observando-me despejar a pasta nas cerdas enquanto fazia o mesmo na escova reserva que eu comprei destinada à ele, levando-a à boca quase no mesmo instante que eu.
O espelho refletia seus fios ligeiramente desgrenhados que caíam em ondas rumo ao ombro coberto pela camisa em um tom desbotado de preto, cujo tecido roçava na manga da blusa que eu usava, graças ao fato de compartilharmos os mesmos quase um e oitenta de altura.
Meus cachos azulados escorriam do topo da cabeça, repletos de frizz em alguns pontos e precisando urgentemente retocar o tom. Havia alguns pedaços de pipoca presos nos fios, que provavelmente caíram enquanto Romeu comia.
Ele deu petelecos nos resquícios brancos, fazendo-os voarem como flocos de neve rumo ao chão.
— Você acha que esse tipo de coisa do filme dá certo? — Sua voz saiu embolada graças à escovação. — Tipo, uma amizade colorida, sem sentimento no meio.
Virei o rosto para fitá-lo, enquanto os movimentos da escova enchiam gradativamente minha língua de espuma.
— Acho muito difícil. — Quase engasguei com as palavras.
— Mas não impossível... — testou.
— É, acho que poucas coisas são impossíveis no mundo. Talvez isso seja tipo um porco nascer com asas: É muito difícil, mas talvez alguns malucos encontrem um jeito de fazer um supremo porco voador em algum momento.
— Bacon alado. — Estalou os dedos, empolgado, e um filete de pasta escorregou rumo ao seu queixo.
Dei risada, e, para não engasgar, cuspi a mistura esbranquiçada na pia. Romeu se inclinou e fez o mesmo, acertando seu arremesso de saliva em cima do meu.
— Cesta! — exclamei, erguendo a mão para acertar a sua.
Nossas palmas estalaram uma contra a outra, mesclando-se ao ecoar dos nossos risos sincronizados.
Saudações novamente, terráqueos!
Hoje eu devo terminar de postar o Primeiro Ato do livro (falta só mais um capítulo para ele ser finalizado).
E aí, o que estão achando?
O Romeu falou sobre amizade colorida com a Julieta por acaso, ou nem?
Ficaram surpresos em saber que o Jader é primo da Julieta?
Qualquer semelhança entre os dois não é mera coincidência.
Espero que estejam curtindo! Beijos de nuvem para vocês.
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