4: O Apocalipse é Cor de Cobre
Agorafobia, nos termos genéricos de uma pesquisa mais rasa do que uma poça de água seria na atmosfera de Mercúrio, se refere ao medo de lugares e situações que possam desencadear pânico, impotência ou constrangimento.
Foi a caixa que o meu psiquiatra utilizou para colocar os relatos que eu vomitava em seu consultório, há quase dois anos. Não era uma caixa pequena, embora muitas vezes parecesse para mim, sempre que ela encolhia ao ponto de quase arrebentar meus ossos debaixo de olhares, lugares fechados demais ou aqueles que faziam uma fuga parecer impossível.
Porém, era somente como um recipiente dentro de outro muito maior, feito um aquário submerso em um mar que se expande até o limite do mundo, e, se este fosse plano, desaguaria na borda rumo ao vácuo dilacerante do espaço.
Começou pouco depois do divórcio dos meus pais, aos doze anos, mas não acredito que essa tenha sido a causa de forma direta. O doutor Luiz sugeriu, pouco antes de parar de me consultar com ele, que poderia ter sido as mudanças que isso desencadeou; a exemplo do abismo que o meu pai começou a construir de tudo o que dizia respeito à minha mãe e o que vinha em seu encalço, a exemplo da piora dela.
Minha genitora, que sempre teve uma preocupação exagerada sobre o mundo, começou a perder seu compasso com coisas simples, como pequenos grãos de poeira sobre a estante, uma notícia ruim que via no noticiário e uma mínima mancha de mofo na parede da sala, que a fez pintá-la de novo por inteiro certa vez.
Ela só percebeu o quanto seus parafusos tinham se afrouxado quando foi demitida de um dos colégios que trabalhava por não estar conseguindo prestar um serviço minimamente eficiente. Então, buscou ajuda profissional e novos hábitos de vida, que a fizeram melhorar consideravelmente dentro de todos esses anos.
Não me recordo o momento exato em que as coisas começaram a desandar para mim. Só me lembro dos tremores que se iniciaram nos ônibus e nos furacões no estômago, que, por várias vezes, me fizeram descer antes do meu ponto para voltar a respirar e continuar o percurso a pé pelas ruas mais desertas possíveis, até optar por simplesmente acordar mais cedo e caminhar o caminho inteiro até o colégio.
Às vezes, o mal estar acontecia na sala de aula. O simples pensamento de levantar da cadeira e me posicionar em frente a todos aqueles pares de olhos semelhantes aos discos de acreção ao redor de buracos negros me fazia sacolejar por dentro.
Porém, ainda assim, eu tentava. Porque pior do que ter um mar de tinta preta extravasando do meu peito em uma tentativa de me engolfar por completo, era que isso se tornasse evidente para as outras pessoas e um holofote de luz cegante caísse sobre mim.
Gostava de ficar sozinho no meu próprio cosmos. Talvez fosse por isso que sempre fui amante de filmes sobre o apocalipse. Sentir-me uma espécie de último sobrevivente esquecido no meio do fim do mundo soava reconfortante. A ideia de não existir mais nada além de ferrugem e pôr do sol em cobre derretendo em um horizonte solitário não me era desesperadora como pode parecer para muitos; na verdade, soava como algum tipo de paraíso sem precisar morrer.
A questão maior era que o meu corpo parecia constantemente rejeitar a si mesmo, atacando minhas próprias células como se eu fosse portador de alguma doença autoimune que só existia para mim. Precisava fazer um esforço diário para não cair dentro de uma bolha de aço, impulsionando meus músculos e epitélios a executarem as tarefas que, para a maioria das pessoas, costumam ser corriqueiras. Como trabalhar.
Pouco antes das férias começarem, decidi que precisava buscar alguma coisa mais agitada para fazer no meu tempo livre, além de mergulhar nas letras fluorescentes de cada livro velho que conseguia pegar no sebo da cidade e das minhas aulas de teatro. Então, a tia de Julieta me ofereceu um emprego de meio período na sua lanchonete, no turno da manhã, em que eu não estudava.
Não precisei sequer pisar no estabelecimento para entrar em pane. Portanto, dá para imaginar que o meu primeiro dia foi mais horrível do que tentar comer de cabeça para baixo. Sempre que as mesas começavam a ficar cheias demais, eu precisava ir para a cozinha para conseguir respirar e retomar o controle.
Com o passar dos dias, as coisas ficaram mais mornas. Congelava quando alguém me chamava, mas conseguia rachar a cobertura de gelo ao obrigar minhas pernas a caminharem até lá e agir da forma mais natural que o palpitar incessante do meu coração permitia.
Tornou-se menos difícil, embora não exatamente simples.
Naquela amanhã após a invasão de Julieta, o baque seco das duas metades da porta de vidro se chocando me fez despertar do estado de devaneio que se apossara de mim desde o início do turno na lanchonete.
Escorreguei os dedos ao longo do queixo, sorvendo a textura áspera dos pelos que insistiam em crescer, enquanto observava a cliente que acabara de sair se afastar do estabelecimento.
O sol irradiava nas mesas cobertas pela lona vermelha de plástico, sobre as quais havia pequenas cestas em que descansavam os guardanapos, sal e palitos de dente. Na porta translúcida, as promoções do dia estavam escritas com piloto preto, rodeadas de alguns desenhos de estrelas que a garota sentada ao meu lado tinha feito com o mesmo objeto.
— Você tá mais distraído que o normal, garoto. — Léa comentou. — Caiu da cama, tropeçou em público, transou com alguém sem camisinha e tá com medo de virar pai...?
Virei o rosto, fitando a garota sentada da forma mais desleixada possível na cadeira próxima à minha, sua coluna pressionando o encosto inclinado contra a parede enquanto se mantinha imersa na tarefa de lixar as próprias unhas embebidas de preto.
Seu cabelo escorria em um cortina de fios cor de petróleo pelas laterais da face, convertendo-se em um roxo quase imperceptível nas pontas que beijavam os montes dos seios sobre a camisa da loja. Um pingente de couro trançado caía ao longo do tecido vermelho, com sua âncora se encaixando no pequeno vão central do sutiã.
Portadora de um estilo selvagem que lhe caía muito bem, dentre amontoados de anéis, pulseiras e correntes, Léa chamava atenção de boa parte dos mais diversos clientes que surgiam, não apenas pela forma como se vestia, mas também por ser bonita de um jeito quase magnético.
Assim como eu, ela não se sentia bem trabalhando naquele lugar, embora fosse por um motivo diferente. Só fazia isso porque tinha acabado de se formar no Ensino Médio e, disposta a não ouvir qualquer tipo de pressão por parte dos pais acerca de ser alguém na vida, optou por buscar um emprego de imediato, independente de qual fosse.
— Pareço distraído? — indaguei, apertando os cílios em dúvida.
Seu olhar caiu sobre mim e as sobrancelhas negras se ergueram.
— Eu atendi os dois últimos clientes, porque você estava olhando para uma mancha na parede e sequer notou a existência deles. — Uma acusação descontraída se refugiou no seu tom. — Vai atender os próximos quatro que chegarem, só por causa disso.
— O quê? — entoei, em meio a um riso cético que carregava notas de desespero. — Pensei que estivéssemos revezando.
Ela sacudiu os ombros.
— Estávamos, antes de você não atender a última garota. Agora, me encontro ocupada lixando minhas unhas, para ficar ainda mais bonita do que já sou. — Cinismo banhou as sílabas, sua atenção se voltando novamente para o esmalte.
Não contive uma risada, balançando a cabeça em negação.
— Eu atendo os próximos dois. — Tentei negociar.
Ela torceu os lábios, falseando uma expressão reflexiva.
— Tá bom, Shakespeare. — Enfatizou o apelido que tinha me dado, com ar risonho. — Mas não me falou até agora o que está te deixando tão avoado.
Nem eu sabia, exatamente. Quer dizer, talvez eu tenha mergulhado sem notar em uma espiral de pensamentos acerca do que Cordélia comentara mais cedo, relacionado ao fato de eu tomar uma atitude com relação à Julieta, como se a única coisa que impedisse de algo rolar entre nós fosse a minha inércia.
Apesar de saber que isso não era verdade, ainda assim comecei a devanear um pouco sobre suas invasões noturnas ao meu quarto, e o fato de não ter explicado até aquele momento o porquê de fazê-las, sempre desviando o foco desse assunto com uma mestria invejável.
— Você tem um melhor amigo? — questionei à Lea, ao invés de respondê-la.
Seus cílios se apertaram em ligeira confusão.
— Acho que todo mundo têm. Por quê?
Dei de ombros, tentando perpassar casualidade.
— Hipoteticamente falando, quais os possíveis motivos que te fariam invadir o quarto dele na madrugada, tipo, para dormir com ele?
Léa me encarou como se eu tivesse acabado de perguntar qual era o melhor modo de esconder o corpo de alguém que acabei de matar.
— Primeiro, vamos considerar que esse amigo é como um irmão para mim, então me deu um pouco de nojo imaginar nós dois acordando de conchinha e essas merdas românticas que tem nos filmes. — pontuou, com um desgosto transbordante. — Eu só passaria a noite com ele se acontecesse alguma coisa bem ruim na minha casa e eu não queira ficar lá. Mas nem ferrando dormiria na mesma cama. Quer dizer, vocês garotos são empolgados demais, eu não daria cinco segundos para ter o pau duro dele encostando na minha bunda, e pensar nisso agora me deu mais nojo ainda.
Seu nariz se torceu em uma careta que atestava a veracidade da afirmação. Um riso breve me escapou e seu foco se perdeu no meu rosto por um instante, os olhos cerrando em uma análise muda.
— Não vai me dizer que a Julieta está dormindo com você, sem transarem. — especulou, com ar descrente.
Rolei os olhos.
— Por que acham isso tão absurdo? Quer dizer, não é como se duas pessoas em uma mesma cama seja necessariamente sinônimo de transar. — Deixei escapar, e só vim perceber que tinha dado um tiro no meu pé quando os lábios da garota se curvaram em malícia.
— Muita gente acha isso, meu querido Romeu. Especialmente os garotos da sua idade, que costumam querer foder qualquer coisa que veem pela frente, incluindo objetos inanimados. Coitados, nem podem se defender... — Fingiu indignação, enfiando os cotovelos no balcão para cruzar as mãos em frente ao rosto.
Eu não poderia dizer que era uma mentira absurda, porque desde quando os banhos começaram a ficar mais longos para mim e precisei checar cada meia antes de usar para não ter nenhum tipo de surpresa pegajosa, minha cabeça tinha virado um receptáculo para esse tipo de pensamento.
— As coisas são diferentes com ela. Quer dizer, óbvio que são, ela é a minha melhor amiga. Se tivesse essa parte meio física da coisa, ela seria tipo a minha... namorada? Ou ficante, sei lá. — murmurei, meus ombros pendendo ligeiramente para baixo.
Não é como se eu nunca tivesse me imaginado em situações que ultrapassavam a barreira invisível da amizade com Julieta. Por mais que lutasse contra o máximo possível, não ficar minimamente afetado com a existência da minha amiga no mundo era tão impossível de controlar quanto as rotações da Terra em torno do sol. Especialmente, nos momentos em que ficava tão perto de mim que o cheiro característico do seu xampu mesclado ao cheiro afrodisíaco do creme de pele que usava infiltravam-se como um vírus no meu sistema.
— Talvez, seja por isso que a Julieta dorme contigo. Você não é bizarro com ela. — Léa sugeriu. — Se sente segura, entende? Em algum tipo de casa, sem estar em casa. Só estando com você. E, cacete, não acredito que falei isso. Foi mais nojento do que me imaginar transando com o meu melhor amigo. — Ergueu os lábios em uma expressão nauseada.
Um riso me escapou.
Nunca tinha pensado por aquele lado. Sempre imaginei que as visitas na madrugada eram um tipo de diversão para Julieta; sem possuírem algo muito sentimental no meio, apenas como mais uma das aventuras que a garota costumava inventar.
Meu peito fervilhou diante dessa outra hipótese, como se meu coração estivesse entrando em uma pseudo-combustão-quase-espontânea bem esquisita. Entretanto, um cara adentrou pelas portas da lanchonete, fazendo cair aos meus pés os pássaros invisíveis daqueles pensamentos errantes que circundavam minha cabeça.
Depois de anotar seu pedido e avisar sobre ele na cozinha, voltei a me acomodar ao lado de Léa, fitando a mesma mancha na parede de minutos atrás enquanto me perdia no meu mar de pensamentos abstratos, cheios de palavras que se misturavam em um turbilhão até não fazerem mais sentido.
— Acho que nunca perguntei se você namora. — Teci o comentário, após constatar que Léa nunca havia mencionado qualquer pessoa nas nossas conversas além do seu irmão, o namorado dele e, naquele dia, seu melhor amigo.
— Não tenho, mas isso não significa que você pode dar em cima de mim. — Sua entonação firme não abria espaço para objeções. — Tenho idade para ser sua tia, garoto.
Levantei as sobrancelhas.
— Eu não perguntei nessa intenção. E você só tem dezenove. — apontei.
Ela deu de ombros.
— Eu tenho uma tia que é dois anos mais velha que eu.
Pouco depois de entregar o pedido, senti o celular vibrar no meu bolso e fisguei o aparelho, desbloqueando a tela. Deparei-me com a tradicional enxurrada de mensagens que Julieta costumava me mandar, como se o universo estivesse a todo momento prestes a entrar em colapso.
Olha essa joaninha, era o que estava escrito antes do registro fotográfico do inseto em questão, enviado há alguns minutos, que descansava na ponta do seu dedo. O nome dela é Chapéu Vermelho, dizia a última mensagem, de segundos atrás.
Apertei os lábios para conter um riso.
Não mantenha ela em cárcere privado, Julieta.
Ela acabou de fugir. Bicho chato, respondeu.
Bicho com instinto de sobrevivência, corrigi, em uma provocação notável.
Sua risada encheu um balão de conversa, e o próximo veio em seguida: Olha para frente.
Obedeci. Os gigantescos olhos de gude de Julieta me fitavam por trás do balcão, cintilando debaixo dos cílios longos que pareciam pegar fogo sob as réstias de luz oleosa proveniente da janela. Seus fios azuis estavam presos em duas tranças ligeiramente desgrenhadas que lhe escorriam pelos ombros cobertos pelo seu suéter vermelho de pizzas sorridentes.
Antes que eu pudesse falar qualquer coisa, ela ergueu o braço e depositou uma sacola no tampo amadeirado entre nós.
— Trouxe salgadinho e chá gelado para você. Acho que nunca vou entender como consegue gostar do paradoxo que é um chá gelado, mas tudo bem. Sei que não tomou café, porque sempre que você diz que se atrasou para o trabalho, não come antes de sair, então eu pensei em te trazer um lanche. Ah, oi, Léa! — E sorriu daquele jeito florido que sempre fazia ao realizar uma gentileza espontânea.
Quer dizer... era, de fato, espontânea? Até que ponto poderia confiar nisso?
Droga. As indagações despertadas pela fala da minha colega de trabalho iriam facilmente me deixar biruta.
— E aí, Ju. — Um sorriso se desenhou as feições de Léa.
— Obrigado pelo lanche. — agradeci, sorrindo também, mais do que disposto a jogar todos os meus questionamentos em algum tipo de foguete mental com destino à galáxia mais próxima. — As pizzas com carinhas na sua roupa ressaltam o seu sorriso. Ele tá bem bonito. Tipo uma... anã-branca com muito hélio para queimar. Não tô te chamando de gasosa, é só que... — Torci o nariz em uma careta, e Julieta explodiu em uma risada eufórica. — Porcaria. Preciso mesmo comer.
— Com certeza. Você tá mais lunático que o normal hoje. — riu novamente, as bochechas retintas crepitando na luz matinal como se ela fosse toda solar. — Eu vou na Relicário depois do almoço. Quer ir? — inquiriu, espalmando as mãos no balcão com toda aquela energia indescritível que perpassava seus poros e rodopiava ao redor do seu cabelo colorido feito ondas gravitacionais que a tornavam magnética, hipnótica e quase entorpecente aos olhares humanos.
Sempre pensei que Julieta era feita de pó de estrelas, e eu, de matéria escura.
— Claro. Estarei lá. — respondi, mas tive dúvidas se ouviu graças à conversa que havia engatado com Léa.
Saudações, terráqueos!
Gostaram de conhecer mais sobre o nosso Romeu Romelius e seus traumas particulares?
E dos devaneios sobre a Julieta?
E da participação da Léa?
Para quem não leu "Eu Definitivamente Não Deveria Estar Aqui Com Você", Léa é a irmã de um dos protagonistas. Romeu e Julieta se passa após os acontecimentos desse livro, porém antes de "Eu Não Faço a Menor Ideia do Que Estou Fazendo Aqui". Digo isso, pois alguns personagens da história de Carmelita e Jader vão brotar por cá, também.
Sim, eu adoro um universo compartilhado. Como adivinharam?
Ah! Gostaram da Julieta nesse capítulo?
E do Romeu todo atrapalhado no elogio?
Sem dúvidas, eu sou apaixonado por esses dois, juntos ou separados.
Espero que estejam bem. Beijos de nuvem para vocês!
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