16: Gosto de Ferrugem
Girei o registro do chuveiro, deixando-me sorver o dilúvio de água gelada que banhou meus poros com seu abraço congelante.
Depois do turno mais agitado do que o normal na lanchonete, tanto pela movimentação maior quanto pelo fato de Lea ter precisado faltar e, consequentemente, ter sido incumbido de trabalhar em dobro, um banho frio soava muito bem vindo.
A temperatura baixa fez minha cabeça latejar ainda mais por alguns instantes, pulsando em uma cacofonia de dor com gosto de ferrugem enquanto as gotas geladas se dissolviam por entre as madeixas do meu cabelo.
Fiquei debaixo do fluxo líquido por tempo o suficiente para quase virar um cubo de gelo tamanho família, com somente o ruído da água que trilhava rotas indefinidas pelo meu corpo embalando meus tímpanos e o ribombar do órgão fragmentário que se alojava na minha caixa torácica, palpitando no ninho do meu pássaro azul que aparentemente resolvera dar uma volta aérea por algum canto indefinido da cidade.
Depois que saí do chuveiro, coloquei as lentes e estacionei em frente ao espelho. Meus fios escuros se uniam em mechas que desaguavam como algas feitas de noite em todas as direções, moldando minhas feições embebidas no cansaço notável proveniente de mais uma péssima noite de sono.
Esperava conseguir dormir direito na próxima noite, porque a última coisa que gostaria era ter que voltar a me entupir dos comprimidos que o meu antigo médico receitou, para acalmar as marés da minha agitação mental e me permitir pegar no sono com menos tentáculos de Kraken apertando meus neurônios.
Julieta não sabia disso, e eu não pretendia contar a ela. A última coisa que queria era que pensasse que eu era tão fraco a ponto de precisar de remédios para fazer uma coisa que eu naturalmente deveria executar sozinho. Quer dizer, ela sempre foi tão forte... nunca precisou de quaisquer válvulas de escape além da arte, e nenhum remédio que fosse além de frascos de tinta e pincéis de ponta desbotada. Não queria que tivesse consciência da magnitude do meu estrago.
Levei os dedos aos fios cor de petróleo que insistiam em resvalar rumo à maçã do meu rosto, empurrando-as para trás.
- Romeu, teu celular tá tocando! - o grito de Lia cortou o ar.
Estreitei as sobrancelhas para minha imagem, confuso sobre quem deveria ser aquele horário dentre as pessoas que me ligavam sem avisar. Certamente, a principal delas era Julieta.
Ciente da autoria da ligação, peguei a toalha no suporte, enxuguei o rosto e passei o tecido áspero pelo cabelo, enrolando-o no quadril logo depois. Desci as escadas e, após adentrar na sala, fui até o sofá, onde tinha deixado o aparelho eletrônico quando cheguei, juntamente com minha mochila no meio da perfeita organização de almofadas e objetos do cômodo.
Como minha mãe não tinha ameaçado arrancar minhas orelhas para fazer sopa ainda, por ter maculado sua ordem incrível com minha bagunça?
Capturei o celular, atendi a chamada e levei o retângulo eletrônico ao ouvido, recebendo quase de imediato o olhar ligeiramente apertado da minha irmã sobre mim, por trás do balcão que separava o cômodo da cozinha.
Ela comia alguma coisa com cereal, como de costume, por detestar as refeições saudáveis de mamãe e ter preguiça, na maior parte dos dias, de fazer algum almoço mais atrativo para si.
- Oi? - murmurei, desviando as orbes para a sala de jantar do outro lado da escada, onde Lisa costumava dar aula para suas turmas de reforço, utilizando-se da mesa com inúmeros lugares que tínhamos e das estantes de livros que recobriam duas paredes inteiras para compor um cenário estudantil.
Felizmente, os alunos da tarde ainda não tinham começado a chegar. Porque se tivesse algumas daquelas almas ali, provavelmente ter aparecido só de toalha na frente desse pessoal entraria para a minha lista de maiores vergonhas do mundo.
- Romeu, eu preciso de você. - A voz de Julieta se fez audível.
- Isso soou bem melodramático. - Não pude conter a brincadeira, soprando um riso baixo. - Talvez, um pouco romântico.
- Eu tô falando sério, idiota. - Tentou soar firme, mas pude sentir uma risada escondida na frase. - Aconteceu uma coisa e eu preciso da sua ajuda. Quer dizer, não exatamente preciso, poderia fazer isso sozinha, mas... me fizeram prometer que iria com alguém. - A última frase soou ligeiramente incerta, como se houvesse algo carimbado por trás dela que minha amiga optou por não dizer.
- Não precisa esconder o quanto você ama a minha companhia, jujuba.
Pude ouvi-la bufar do outro lado da linha, e, apesar de não a ver, tive certeza que rolou os olhos.
- Me erra. Ainda não tô totalmente de boa com você.
- Certo, desculpa. - apressei-me em falar, sentindo a culpa se amontoar em dezenas de esferas de chumbo nos meus pulmões. - O que quer de mim?
- Eu recebi uma caixa cheia de desenhos e outras coisas da minha mãe. - a última palavra saiu embolada, como se tivesse colocado alguma coisa na boca. Parecia que estava perambulando de um canto a outro enquanto falava, dados os ofegos ocasionais contidos por entre as sílabas. - E eu quero descobrir o que algumas dessas coisas significaram para ela. Tenho um ponto de partida, que é a casa do moço que guardou tudo durante esses anos. Tô trocando de roupa para ir lá. Tem alguma coisa para fazer agora à tarde?
Entendi de imediato o que estava querendo. No entanto, a ideia de sair de casa rumo a um território desconhecido disparou faíscas eletrizantes na minha corrente sanguínea, que se infiltraram no meu coração e o fizeram ribombar contra meu esterno.
- Não. - respondi, após alguns segundos. - Vou com você.
- Ótimo! - Sua entonação foi empolgada. - Eu passo aí daqui a... - Fez uma pausa. - sete minutos e meio.
- Tudo bem.
Assim que encerrou a chamada, expulsei o ar em um suspiro e joguei o aparelho novamente no estofado que o abrigava há pouco, passando a mão pelos meus fios desordeiros em direção à nuca. De súbito, a risada de Lia preencheu o ar, atraindo minha atenção para a garota, que batucava as unhas pintadas em uma mistura de estampas que não fazia qualquer sentido contra o balcão.
- Você está com uma... - Seu indicador viajou até um ponto da própria clavícula. - Mancha, bem aqui.
Tateei a área de imediato, e o sangue borbulhou com fervor no meu rosto assim que me lembrei da marca visível deixada por Julieta em contraste com o tom glacial da minha pele, cujo mínimo impacto já era capaz de arroxear.
- Pare de me olhar como se eu tivesse assaltado o banco da Espanha. - falei, na expectativa de dissolver o brilho sugestivo que nadava nas íris da minha irmã.
Ela soprou um riso.
- Eu não disse nada. - Ergueu as palmas em redenção. - A propósito, você ainda não me pediu desculpas por ter sido escroto ontem.
Inflei meus pulmões de ar. As palavras pareciam um par de meteoros entalados na minha garganta.
- Me desculpa.
Sua sobrancelha se ergueu.
- Acho que não ouvi. O que disse? - Ergueu a palma em concha ao lado do ouvido, como se tentasse pescar algum som em meio à estática.
Bufei.
- Me... desculpa. - Aumentei o timbre em uma oitava.
Um sorriso satisfeito riscou suas bochechas.
- Viu como não foi tão difícil? - A pergunta foi retórica. - Assim como não seria tão complicado quanto você imagina contar para a Julieta que gosta dela.
Estreitei as sobrancelhas, confuso com o que acabara de ouvir.
- O quê? - Expurguei minha dúvida. - Por que acha isso?
- Porque você ficou sorrindo do início ao fim da ligação, talvez. - O apontamento me pegou de surpresa.
- Fiquei? - apertei os cílios, confuso por não ter percebido o esticar dos meus lábios durante a chamada.
Ela estalou a língua, despejando um riso nasalado em seguida.
- Deixa pra lá, garoto. - Balançou a mão no ar. - A propósito, o Jonas, aquele cara da britadeira, me chamou para irmos a uma espécie de luau na casa dele no próximo final de semana, já que é bem em frente à praia. Vai estar vazia, e sabe como a cabeça de homem costuma funcionar. Coisas íntimas dentro de coisas íntimas por um período igual ou inferior a três minutos. Mas eu não tô afim de ficar sozinha com aquele idiota de novo depois de todo aquele espetáculo sonoro, então pensei em juntar uma galera, tipo, muito grande e curtir todo mundo junto.
- Está me propondo a te ajudar a fazer um grande bacanal?
Ela riu.
- Tipo isso, mas sem a parte de todo mundo transando feito um bando de coelhos no apocalipse.
Torci o nariz em uma careta pensativa.
- É, tem pessoas que eu posso convidar. Mas ele não vai ficar muito chateado?
- Claro que não. - Pressionou a colher com força dentro do pote, e o estalo de uma centena de flocos de milho se estilhaçando preencheu o ar. - Ele meio que tem medo de mim. - Sua entonação casual contrastou com a pressão que fazia contra os pobres cereais, trucidando um monte deles sem dó nem piedade como se os coitados fossem versões em miniatura de ditadores tiranos.
- Não consigo imaginar o porquê de um absurdo desses. - ironizei, rindo.
Ela me mostrou a língua, mas riu também.
- Vem cá... - Não podia perder a chance de fazer aquela pergunta. - Ele realmente usa camisinha extra G?
- Extra G? - Sua risada eufórica preencheu o ar. - Aquele negócio de átomo mal me fez cócegas. E esse nem é o problema, a questão é quando a pessoa não faz o menor esforço para satisfazer quem ela está de outras maneiras, e só aproveita tudo sozinha feito um mamute que sabe que está à beira da extinção. - Rolou os olhos.
Uma gargalhada me escapou.
Já devia ser o centésimo cara bizarro que a minha irmã saía desde o fim do colegial, há dois anos. Todos os seus casos depois disso se resumiram a uma enxurrada de garotos com gostos peculiares que fizeram resultar em desastres de proporções cataclísmicas, a exemplo de um rapaz que tinha fetiche em fazer sexo com comidas doces pelo meio, mas aparentemente não sabia muito bem como realizar isso, porque, mais tarde naquela noite, eles já estavam protagonizando uma festa muitíssimo esquisita, composta pelos dois e uma coleção de formigas em cima da cama.
E essa história nem era a pior.
- Vai vestir logo uma roupa, que tá sendo bem estranho conversar com você seminu. - ela disse, de súbito.
Dei risada, pondo-me a subir os degraus rumo ao meu quarto. Vesti uma combinação qualquer de camisa branca e calça jeans, e, logo que terminei de calçar meus tênis fortemente desbotados por lavagens e sol, retornei ao andar de baixo.
Lia havia saído há pouco, pois seu perfume floral ainda estava impresso no ar. Abri o armário e capturei algumas porcarias culinárias, jogando-as dentro da mochila em cima do sofá. Não me agradava o pensamento de gastar dinheiro comprando lanches na rua caso ficasse com fome em consequência do meu almoço limitado a batatas fritas que peguei da lanchonete, muito menos contrair alguma bactéria Salmonella ou Estafilococos extremamente competentes na arte de me deixar com intoxicação alimentar por causa disso.
Enfiei o celular em um dos compartimentos da mochila e, quando pendurei as alças nos ombros, o tilintar da campainha sacudiu meus tímpanos.
A primeira coisa que reparei ao atender, foi que Julieta estava muito mais eufórica do que o normal.
Seus lábios estavam comprimidos e o olhar castanho se perdia nas dobras metálicas do portão, faiscando em uma ânsia que se refletia também em um dos pés cobertos pelo seu habitual tênis amarelo batendo contra a calçada em um tique frenético.
Assim que suas íris caíram nas minhas, ela esfregou as palmas na calça do macacão jeans polvilhado com manchas de tinta em alguns lugares, levando-as para as alças da sua mochila logo depois.
- Tudo bem? - indagou, deixando os lábios se curvarem em um sorriso sutil.
Dei de ombros.
- Acho que sim. E você?
Seu nariz se torceu em uma careta.
- Agora, um pouco melhor.
- Isso pareceu uma cantada. - apontei, com evidente descontração.
Ela rolou os olhos, a boca tremendo suavemente em um sorriso que lutou para conter. Percebi que não precisaria lhe pedir desculpas por ter sido instável no dia anterior, porque, dado o fato de ter conseguido fazê-la sorrir, era fácil de constatar que o acontecimento já se esvaíra da sua memória para dar espaço a toda a galáxia de furor que se expandia nas suas veias.
Sua mão fisgou a minha e ela começou a andar, não me dando outra opção a não ser acompanhá-la.
Morávamos ao lado da parte comercial da cidade, de modo que rapidamente adentramos nela.
O sol estava abrasador de um jeito que o astro-rei parecia ter sido chutado centenas de anos-luz para mais perto da Terra. Incidia no asfalto que pavimentava o centro por onde andávamos em um dilúvio de raios de óleo, bem como nas faixadas coloridas dos estabelecimentos que se acumulavam no lado direito da rua, enquanto o outro se abria para o mar que chapinhava suas ondas frescas na areia.
Demorou alguns segundos para que a espuma marítima saísse do nosso campo de visão. Fizemos a curva em uma rua razoavelmente movimentada, desviando de algumas pessoas que caminhavam pela calçada. Seus passos e falas formavam arabescos no ar, enovelando-se ao ruído do motor dos carros que tossiam quando passavam na pista ao nosso lado, em uma cacofonia urbana que me fez encolher sob mim mesmo.
- Por que quer tanto fazer isso? - questionei à minha amiga, sem qualquer ar de censura; apenas por curiosidade.
Ela demorou alguns segundos para formular sua resposta.
- Pensei que seria legal tentar descobrir mais sobre quem foi minha mãe. - Olhou-me novamente, os lábios se repuxando em uma careta. - Sabe, eu... sempre quis conhecê-la, você sabe disso. Nunca vou poder fazer isso pessoalmente, mas posso tentar entender o rastro que ela deixou com essas coisas, porque esses rastros meios que... são ela. Eles são pequenos, porém enormes, tipo o que ela parece ser. Acho que minha mãe foi muito grande, Romeu.
Assenti, sorvendo suas palavras e o peso de chumbo que elas carregavam.
Era estranho para mim imaginar um mundo onde minha mãe não estivesse fisicamente. Não conseguia pensar em como seria não a ter conhecido, nem a carga que provavelmente existiria nos meus ombros por ter uma saudade diferente de todas as outras; a de algo especial que nunca se teve, e nunca se teria. Uma falta que, certamente, nada conseguiria preencher, moldando um espaço oco no meu interior que sempre latejaria um pouco para me lembrar de que ele existe e sempre existirá.
Pensei, durante alguns segundos, na sorte que eu possuía de ver e ser capaz de falar com a minha genitora todos os dias, e que poucas vezes havia parado para refletir sobre o tamanho disso.
- E eu fui a primeira pessoa que você pensou para te acompanhar? - questionei, alternando o olhar entre seu rosto e o mundo que se erguia à frente, com medo de dar de cara em algum poste e protagonizar uma cena estupidamente vergonhosa.
- Foi a única. - ela admitiu, balançando os ombros.
O gesto fisgou a minha palma e, só então, percebi que ainda estava com os dedos mergulhados por entre os de Julieta dentro daquele contato que ela costumeiramente evitava, por dizer que sua mão suava de um jeito que parecia ter uma lesma escorregando nela, e era uma sensação tremendamente desconfortável.
Sempre me questionei se isso era de fato verídico, ou apenas uma das suas inúmeras justificativas forjadas para não se deixar fazer coisas que lhe pareciam íntimas demais com outra pessoa.
De qualquer forma, não importava. Ela tinha, de forma inédita, me deixado segurar sua mão por mais de cinco segundos, e a constatação disso fez o vento ficar ainda mais quente do que já estava.
- Vai ser uma honra embarcar nisso com você. - afirmei, atraindo a sua atenção.
Ela abriu um sorriso que pareceu carregar o sol inteiro.
- Sério? - seu tom foi incrédulo.
Soprei uma risada.
- Não é como se você tivesse me dado opção, Julieta.
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