13: Elefante Xadrez e Peixes em Peneiras
Para entender o motivo do meu choque em ver Natália Silva na sala do palco, é preciso rebobinar a fita da minha vida.
Começamos a estudar juntos no nono ano. Na primeira vez em que bati os olhos nela, entrando na sala de aula de um jeito meio atrapalhado com o par de olhos castanhos arregalados por trás das lentes grossas de um óculos, meu cérebro ameaçou dar curto circuito.
Foi o primeiro sinal de que eu tinha me ferrado. O segundo veio pouco depois, quando ela me pediu um lápis emprestado e eu, com o coração tão agitado no peito que parecia ter sido ligado na tomada, entreguei o objeto à beira de um colapso nervoso. Natália, percebendo meu desespero repentino, riu para mim, e eu fiquei sem ar todas as vezes que relembrei de como ela ficava linda sorrindo naquela manhã.
Porém, as coisas não foram exatamente doces depois disso. Passei meses sem qualquer coragem de falar um oi sequer para ela, apenas observando a sua existência de longe e levando petelecos de Julieta para despertar dos transes bizarros que eu mergulhava quando me perdia nos contornos quase etéreos do rosto de Natália.
Porém, quando finalmente puxei determinação de algum canto indefinido de mim, só consegui entoar um monte de aleatoriedades para ela que a fizeram me encarar como se eu fosse a reencarnação falante de algum bicho jurássico esquisito.
Deu que, como era de se esperar, ela zombou de mim. E incitou a sala inteira fazer o mesmo.
Meu coração, que já não estava exatamente nas melhores condições, precisou de uma centena de band-aids imaginários para fechar as rachaduras que se abriram em seu músculo naquele dia.
Eventualmente, as coisas melhoraram e isso foi sendo levado pelo vento, dissipando-se na multidão. Ela saiu da escola no final daquele ano letivo, e eu pensei que não a veria mais.
Por isso, dá para imaginar a surpresa que acometeu meu sistema em uma torrente fervorosa quando a vi entrar por aquela porta.
Meu Deus.
De repente, eu me sentia sem fala, como se ainda fosse o mesmo Romeu-idiota-super-nerd-de-quatorze-anos, apaixonado pela segunda vez e tragicamente fadado a ter o coração amassado e rasgado no peito até se converter em um amontoado de confetes sobre meus órgãos, de novo.
Merda.
Eu queria correr. Correr para o mais longe que minhas pernas permitissem debaixo do crepúsculo, até que o acúmulo de ácido láctico nos meus músculos não me permitisse dar mais um passo. Ou puxar a cerâmica do chão como se ela fosse um tapete gigante e me enfiar embaixo. Ou simplesmente desaparecer, evaporar no ar feito éter e deixar os meus fragmentos serem soprados pelo vento.
Porcaria.
De repente, ela olhou para mim, e começou a caminhar na minha direção. Seus passos pareciam cada vez mais altos na minha cabeça, reverberando por todo o meu cérebro em uma cacofonia que se mesclava ao retumbar insistente do meu coração.
— Romeu? Caramba, quanto tempo! — falou como quem cumprimenta um velho amigo, estacionando à minha frente.
— Sem conversas paralelas, por favor. — Lídia advertiu, em tom suave, e salvou a minha vida.
Mirei Julieta de relance, e percebi que sua atenção não saía de Natália em hipótese alguma. Porém, não a fitava com ódio. Eu não sabia definir o que era, mas parecia quase... triste, com as sobrancelhas apertadas contra os olhos e os lábios ligeiramente curvados em um sorriso invertido.
Era difícil ver aquela expressão no seu rosto, e, sem dúvidas, era a que mais me arranhava por dentro.
— Você está bem? — indaguei à ela, percebendo pela visão periférica que Natália se acomodara atrás de mim.
— Sim, sim. Ótima. Perfeitamente bem. — Balançou a cabeça para dar mais ênfase à sua mentira. — Só me lembrei de uma coisa.
Não discuti naquele momento. Faria isso depois que a aula acabasse.
Os minutos seguinte pareceram ser carregados em cima de uma concha de caracol, tamanha a lentidão que passaram. A professora anunciou os papéis que cada um desempenharia, e me deu o personagem que levava o meu nome na tragédia de Shakespeare. Eu contracenaria diretamente com a minha melhor amiga, que recebeu, da forma mais irônica possível, o papel de Julieta.
Nossos colegas do grupo começaram a rir baixo após o anúncio de Lídia, notando o quanto tudo aquilo parecia uma piada muitíssimo elaborada.
— Por que nós dois? — Julieta indagou, impaciente, os dedos pressionando o pequeno amontoado de papéis do esboço do roteiro com tanta força que parecia prestes a trucidá-lo.
— Vocês dois têm uma relação incrível! Eu não poderia escolher outro par. — a professora elucidou com casualidade, e nos lançou um sorriso. — Só espero que se distraiam menos nos ensaios.
Mais risadas.
Era uma situação... estranha. Irônica. E um tanto desconfortável. Porque seríamos o casal mais melodramático da história, na frente de um amontoado de pessoas com pares de olhos feitos de adagas ou flores. Não dava para saber. E também... Merda, eu não sabia explicar, mas me sentia aliviado em ter sido convocado para ser o Romeu dela, ao invés do Luís.
Não que eu não gostasse do sujeito. Não havia nenhum motivo para cultivar uma inimizade com ele. Era só que... imaginar Julieta em seus braços, recitando palavras de amor, mesmo que fossem decoradas de um pedaço de papel para fins artísticos, me fazia pensar em como seria quando ela encontrasse alguém para quem falaria coisas parecidas, de verdade. E, talvez, esse alguém pudesse até mesmo ser o próprio Luís. Eles poderiam se aproximar muito durante os ensaios, e esse garoto era... tudo de bom. Bonito, aparentemente inteligente, dotado de uma centena de habilidades que eu não tinha e duvidava que algum dia teria. Ou seja, muito melhor do que eu.
Não que eu não quisesse que ela fosse feliz com alguém. Era só que... apertava meu peito imaginar isso acontecendo, embora soubesse que era inevitável. Uma hora, mesmo a garota alegando não querer, alguém a cativaria. E eu não podia fazer nada com relação a isso, além de deixá-la livre e... ficar triste por vê-la escorrendo para longe.
Depois do pronunciamento de Lídia, o resto da aula se transcorreu rápido, entre uma pequena análise em grupo do roteiro, na qual a maioria votou por ser revisado, e um ensaio curto para se ter noção de como cada um de nós ficaria em nossos papéis.
Quando tudo acabou, tive a visão metaforicamente tapada por Natália, que estacionou à minha frente, impedindo-me de sair da sala.
— Cara, você está bem diferente do que eu me lembro! — Soltou um riso descontraído. — É bom te ver de novo.
— Igual...mente. — gaguejei feito um boboca, em um misto de surpresa e embaraço por ter sido o alvo súbito da sua atenção. — Você está bem?
— Ah, sim, muito bem. Quer o meu número, para conversarmos melhor depois? — indagou, casualmente. — Não tenho tempo agora, minha namorada está me esperando.
A tensão pulsava nos meus átomos, e sentia cada fragmento da minha nuca em combustão. Ao olhar rapidamente na direção do par de olhos que me fitava, deparei-me com uma Julieta de braços cruzados e sobrancelha erguida há alguns metros, parecendo impaciente. Era justificável. Tínhamos combinado de lanchar juntos após o ensaio e, em seguida, irmos ao mercado comprar algumas coisas que estavam faltando em casa à pedido da minha mãe, para que ela fizesse uma receita de bolo com poucas calorias que viu na Internet. E minha amiga não era exatamente fã de esperar.
— Certo. — falei, após uns três segundos, fisgando o celular do bolso.
Natália anotou meu número e me fez fazer o mesmo com o seu, quase nunca abandonando o sorriso do rosto. Desconfiei que não deveria sequer se lembrar da reação em cadeia de bullying que desencadeou há mais de três anos para mim, no dia em que mandei meu universo inteiro de paranoias para o espaço e tentei engatar o primeiro assunto aleatório com ela que o meu cérebro bagunçado conseguiu pensar.
Não me lembro exatamente de tudo o que eu falei, só que, em dado momento, perguntei à ela qual era o seu som favorito, e lhe mostrei o meu em uma imitação extremamente esquisita. Em outro, indaguei se ela não achava a sonoridade da palavra “camarão” muito interessante.
No faço ideia de onde tirei esse combo de trambolhos mentais. Mas, quando contei para Julieta mais tarde naquele dia, ela garantiu infinitas vezes que eu não tinha sido ridículo como estava me achando, encolhido de vergonha na minha cama e agarrado ao travesseiro.
A melhor coisa sobre ter sido rejeitado foi ter ganhado uma panela imensa de brigadeiro com morango feito por Julieta, na tarde seguinte. Com bolinhas de chocolate, também.
Ela sabia como ninguém levantar o meu astral.
A memória trouxe uma paradoxal mistura de calor e gelo ao meu peito, mas a sensação abrasadora se sobressaiu no momento em que estacionei ao lado da minha melhor amiga na sala que se esvaziava gradativamente, aquecendo minhas veias até fazer o sangue entrar em ebulição.
Não sabia até que ponto gostava do seu efeito sobre mim, porém tinha consciência que não adiantaria tentar escapar daquilo por muito mais tempo. Era o mesmo que criar um elefante xadrez dentro do próprio quarto na esperança de que ele não cause qualquer desordem, ou tentar pescar peixes com uma peneira.
— Pretende sair com ela? — Minha amiga indagou, puxando-me para a superfície do meu oceano de enleios. — Quer dizer, ela... te deu aquele fora que te deixou muito ferrado. Talvez não valha a pena investir. Ou talvez sim, ela pode... ser uma pessoa diferente agora. — Deu de ombros.
— Talvez. Mas existem coisas que não dá para fingir que não aconteceram. Então, só... não conseguiria sair com ela.
— Com licença. — O timbre açucarado de Lídia se fez audível, próximo a nós. Direcionei minha atenção para a professora, e Julieta fez o mesmo. — Você poderia revisar o roteiro, Romeu? Entreguei uma cópia à Jade, também, e vocês podem entrar em um consenso sobre as mudanças a serem feitas.
Assenti rapidamente, e ela estendeu a pequena coletânea de papéis presos por um clipe em suas mãos no vão entre nós. Tomei as folhas por entre os dedos e fui até a minha mochila apoiada na parede, imergindo-as lá dentro antes de voltar para perto das duas.
— Vou falar com ela. — assegurei.
Um sorriso riscou as feições da professora.
— Obrigada! Tenho certeza de que vai ficar incrível.
— Eu também tenho. — Julieta assegurou, lançando-me um sorriso acalentador.
Sorri também.
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