Historinha Macabra
— Por que? - repetiu as palavras da figura as suas costas. Descrente, fitando o alvo no fim do corredor escuro. - Me chutaram por causa de um erro! Droga! Um único maldito erro!
Estava parado. Paredes de um armazém à esquerda, de uma loja de bicicletas a direita. Pés descalços sobre solo marcado por lixo. Estava escuro.
Luz vazava de uma pedra de mana atada em um poste ao lado da borda do beco. Branca e delineando a silhueta da pessoa o observando. Com lilases olhos indiferentes a ameaça da marreta em sua mão. Com longos chifres marcados de carmesim nas pontas.
— Nenhum motivo em particular. Só me parece que não está se divertindo - ela, leve. Amigável e quase melodiosa. Loba sob pele de cordeiro, pronta para brincar até decidir jantar. - Por que não vai a casa do pequeno Ivan? Passa pelo quarto da filha dele... não, entra e começa por ela.
''A acorda com uma faca enfiada na garganta''. Quase a ouviu dizer. Ela repetira a historinha macabra duas vezes.
O martelo pesou. Frio entre os dedos do humano, Shimen Seijuru. Engoliu em seco. Gélidos arrepios passeando pela pele sob o quimono. Negro como o beco, como o coração da criatura atrás de si.
Cerrou os punhos. Os dentes. E viu que fitava o chão de pedras cinzas. Tornadas pretas pela noite.
Fez a face subir. Encarar a parede no final do ligeiro espaço entre dois edifícios. A esquerda disso, porta dupla vermelha fechada com correntes. Um grande cadeado de base amarela entre quatro dos elos de aço.
O arrebentaria.
— Humm, acho que pode precisar de uma cerra. Sabe, para desmembrar a Sophie - a criatura na borda do beco. E então um passo e outro. Contando pela terceira vez sua ideia de ''uma vingança melhor''. - Colocar o braço direito dela no chão diante a porta de Ivan. Dedos apontando a sala. E os outros cinco do esquerdo pontilhando o caminho. Use o sangue para pintar ''siga, papai''. O braço restante e sem dedos enfie em.. sei lá, um candelabro?
As palmas dela caíram-lhe sobre os ombros. O hálito doce e alcoólico tocando o pescoço e final da orelha. Gélido.
Como despencar em um sonho de queda.
— T-talvez eu f-faça isso...! - respondeu, a voz trêmula. A mão esquerda dela deslizou junto a arrepios até a de Seijuru. Um homem com cabelos negros amarrados em um rabo de cavalo. Barba curta mal aparada. Suor frio caindo a partir da têmpora esquerda.
Olheiras sob os olhos pretos. Vermelhidão na região nasal e ocular.
Ela segurou o outro lado do cabo do martelo que ele tinha. Pesado. As palavras da oni. Da amiga de sua esposa.
Estava irritado e a criatura, a oni, sabia. Fora demitido e Minamoto... grávida. Tinha feito móveis para o Ivan por dez anos.
E somente daquela vez uma de suas mesas de mármore cedera no primeiro uso. Todas as demais eram perfeitas. As cadeiras, os armários, camas. A maldita mesa que fizera ao Wilson fora a única defeituosa. E sinceramente... como?! Aquele chupador de sangue do Wilson armara para ele? Outro? Juventino? Mariluci, aquela balconista com o copo de café sempre cheio?
— Sério? É tão perverso. Estou tão assustada por esse homem mau nesse beco escuro - o queixo pousou no ombro do humano. Tinha feito os joelhos dele dobrarem, abaixando-o até as cabeças pairarem na mesma altura. - O que esse homem cruel fará com seu antigo local de trabalho? Irá preparar explosivos? Haha, já consigo ver os escombros, os membros voando vermelhos. As pessoas esmagadas, rostos queimados. Talvez alguém sobreviva o suficiente para sentir a dor de estar queimado e sobre as pedras do edifício. Haha, que homem divertido. Consegue mesmo abrir aquele cadeado com essa marretinha? Quer ajuda?
Não se moveu. Sob o calor do demônio. Mechas do cabelo escuro dela tocando-lhe o pescoço. Pesados. Todos os músculos de Seijuru no limite da tensão.
Tremeu.
Dezenas de gotas de suor frio juntando-se a que desceu pela têmpora.
Pretendia abrir o armazém. Pegar o dinheiro do cofre, quebrar alguns móveis. E só.
Mas agora? O vislumbre do que aquela coisa faria... quebrava o limite. Exigia uma raiva por assassinatos de familiares, monstruosidades.
Ira trazida por uma demissão? Insuficiente, apagada só pela menção da ideia verdadeiramente vil.
— Acho que já o atrasei tempo demais, certo? Vá em frente - o empurrou. Ele praguejou. Pés indo a frente, as mãos balançando as laterais em busca do equilíbrio. Até encontrar a parede da loja de bicicletas a direita.
Arfando empurrou os tijolos. Ajeitou a postura. O ar noturno no lado leste de Semiramis era frio. Não como Sangue Branco, Musashi ou a nova cidade levantada pela herdeira do Fearblood.
Andou até a porta do armazém. Passos lentos, pesados. Encarando o cadeado. Sentindo os olhos lilases da amiga de sua esposa brilhando em esperança. Esperança pelo cruel, pelo perverso perpetuado pelo humano.
Parou. E soube.
Ela contaria a todos. Polícia, Minamoto, qualquer pessoa que estivesse em sua companhia por mais que alguns segundos. Que melhor modo de perturbá-lo? De arranjar a ele problemas sem fazer de fato algo criminoso?
Virou o rosto e a encarou.
As pequenas sobrancelhas negras sobre olhos lilases dela subiram, a boca tornou-se um ''o'' por um momento. Então sorriso, mão esquerda subindo e acenando.
''Essa puta''.
O filho dela era uma criança ativa e gentil. Fizera um desenho dele e Minamoto. Relativamente bom. Era possível reconhecer quem era quem na obra do garoto de sete anos. Apanhava frutas nas árvores e as distribuía. Organizava partidas de futebol de rua e ajudava a Dolores a ir e vir. Uma velha meio cega que morava ao lado do homem.
Shimen Seijuro não via semelhança da criança com a mãe. Exceto pelo aspecto. Nisso soava como uma versão em miniatura dela.
E às vezes o assustava vê-lo entrar na sua casa. Por um momento incapaz de separar uma existência da outra.
— Você vai contar? - perguntou.
Ela, Liv Ouroboros, gargalhou. Sabia que Liv tinha sido escolhido, o nome oficial o título ́ ́Jormungand''. Minamoto não dissera mais detalhes além de que ela era líder de um grupo familiar de onis de longos chifres.
— Que criança boba - piscou o olho esquerdo. - Eu já contei.
O martelo encontrou o solo do beco. Shimen abriu e fechou a boca. Então de novo. A mão se ergueu na direção dela. Dedos dobrando-se incrédulos.
Cerrou os lábios. Os dentes.
''Maldita puta'' praguejou.
— Que droga...! - soltou antes de começar a correr. Liv riu e disse ''Corra, Shimen, corra!''.
O pé do humano deslizou e o tronco voou a frente. Aparou com as mãos quando despencou ao chão de pavimento cinza. Uma casca de banana bem próxima do nariz. Palmas arderam. Tornou a se erguer. O pé direito deslizou dessa vez, mas conseguiu se equilibrar. Braços balançando enquanto saia do beco e se colocava ereto.
A risada do demônio ecoando. ''Minha barriga, eu vo morrer de rir'' ela balbuciara no meio.
Passou por transeuntes na rua seguinte. Olharam-no. Na próxima via alguns em grupo murmuraram. Na quarta rua uma criança apontou e foi censurada pela que aparentava ser mais velha.
Cada um deles agulhas tiradas da brasa e enterradas na carne.
Parou na esquina que levava as docas. Mãos apoiadas nas coxas. Arfando. Banhado pelo próprio suor.
Haviam dois barcos de médio porte no cais à frente de plataformas de madeira. O pier cinzento era ocupado por poucos pés. Percorrendo um ligeiro pedaço do local iluminado com pequenos postes. Adornados por pedras de mana, erguidas em filas paralelas no canto direito e esquerdo. Tons amarelos e vermelhos. Quatro homens e uma menina carregavam uma carroça com peixe. Balde após balde os tirando da rede de pesca enorme.
Fediam.
Shimen Seijuru vomitou.
A bebida que tomara no bar. Sua dose de coragem antes de ter ido ao antigo local de trabalho. Porque não era um gênio como a esposa. Não podia lutar como ela. Não podia fazer a contabilidade, entender livros complexos, ser amado por todo tipo de gente... Minamoto conseguia até criar móveis melhores que ele.
Bateu o punho na perna. ''Que merda!''. Vômito voltou a fazer sua passagem para fora. Laranja e verde. Quente, azedo. Impedindo o ar de entrar.
Não queria voltar para casa. Soluçou. Dobrado, fitando o espaço entre os pés calçados com sandálias de couro. Sujo.
Lágrimas desceram pelas bochechas. Um homem medíocre. Agora também um desempregado que bebe, vomita e chora.
Minamoto encontraria um pai melhor para a criança por vir. Um esposo melhor para acompanhá-la.
Olhou para o mar. Além das pessoas o lançando fitares enquanto enchiam a carroça. Cochichando com ondas acima do cochicho deles.
Uma vez fora um pescador. Aos quinze vira um homem cair ao mar. Cordas foram jogadas, dois marujos pularam atrás dele. Mas o sujeito morreu afogado e seu corpo permaneceu na água.
Ele era o melhor nadador. Quando foi levantado pelos que foram salvá-lo. Os empurrou e mordeu.
''Me larguem!'' gritara até ser solto. E afogar.
Agora Shimen Seijuru não conseguia imaginar uma melhor lápide para si do que o grande mar.
Ajeitou-se ereto. Tremia. Pálido, o ar soava como gelo.
— Não devia levá-la tão a sério - Iliati, atrás dele. A esposa da oni. - Não sei o que ela disse, mas provavelmente foi um exagero cruel.
Manteve o olhar no céu escuro encontrando o oceano no horizonte. Quimono negro misturado ao breu noturno. Balançando sob o vento.
— O que está fazendo aqui...? - Shimen perguntou em um tom vazio. Respirou fundo. - Não importa, preciso que presencie minha morte e depois diga a minha esposa... para achar alguém mais capaz.
Suspiro. Ela se aproximou e parou ao lado do humano. Uma elfa negra. O cabelo amarelo cortado curto nas laterais, a parte superior organizada em uma franja feita de três mechas que caiam sobre a testa. Vestia um suéter azul com flocos de neve finos e brancos nas bordas.
Shimen também tinha ganhado um. De Ana, a outra filha de Liv. Silenciosa, diligente, assustadora. Minamoto dizia que não era verdade. Mas a criança parecia, do mesmo modo que a mãe, se perguntar qual seria o sabor da carne do humano.
— Não. Vá para casa e diga a ela você mesmo - o disse, calma. Fitando o mesmo mar que ele. Com olhos azuis. - Minha querida esposa pode ter dito um monte de merda. Mas ela sabe que é um bom homem, Shimen Seijuru. Ou não teria deixado que se casasse com a amiga dela... Ou escolhesse como morrer.
O humano soltou um rápido riso com um breve e curto e amargo sorriso.
— Volte. Posso te ajudar a abrir seu próprio negócio de construção de móveis. Ademir pode fazer propaganda - Iliati.
Segurou a mão dele. A mão suja de vomito. E caminharam para a casa na rua b do bairro Jabuticaba. Larga, pintada de amarelo e com porta dupla de madeira vermelha. A silhueta de uma árvore e treze flores desenhadas brancas na entrada. Era possível ver as jabuticabas na árvore em canteiros no começo e fim da rua.
Olhando para baixo como se prestes a pular no calçamento. Shinmen não disse nada enquanto Ilitia batia na porta. Ou quando Liv a abriu.
— O desgosto foi demais para ela... - disse a oni, o olhar lilás quase ao assoalho. A boca um risco de pontas tendendo para baixo. - Sinto muito.
Silêncio na rua a noite. Vazia por excessão dos dois. A lua com mais de metade do caminho ao crepúsculo do amanhecer.
— Nem eu caio nessa - Shimen respondeu amargo. O gosto azedo ainda na língua.
— É, tá bem óbvio - a elfa negra concordou. A mão livre desceu sobre os cabelos negros da oni. - Tente mais da próxima.
Minamoto riu de dentro da residência. ''Eu avisei''. A oni suspirou e murmurou algo sobre serem tediosos.
Entrou. Liv e Iliati se despediram e partiram.
Shimen foi abraçado pela esposa quando o som dos passos das duas sumira.
— Você não é um extra aqui, não é um peso... - ela. Com a voz embargada e lágrimas caindo pelo rosto. Apertando-o em toda a sujeira do homem. - Seu idiota... não já disse que te amo?
A abraçou de volta. Chorou e pediu desculpas.
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